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Crónicas da Saúde: o Serviço Nacional de Saúde

por Regina da Cruz, em 14.09.13

Ao longo dos próximos tempos irei escrever sobre a saúde. É um tema apaixonante e que me é caro virtude da minha formação académica. Ultimamente tenho (temos) vindo a assistir a uma reestruturação do sistema de saúde português cujos resultados só daqui a alguns anos poderemos aferir com clareza. Pressionados pelos credores a saldar as dívidas contraídas ao longo de anos pelo estado português, todos os portugueses estão a ser chamados a pagar em barda e a qualquer custo, sendo que uns sentem com muito mais intensidade os efeitos desta urgência do cobrador do fraque!

Os impostos aumentaram de forma exponencial mas os serviços prestados pelo estado, para os quais supostamente pagamos todos estes impostos, estão a diminuir. O dinheiro dos portugueses está a ser usado para pagar dívidas e juros de dívidas. O que ficou muito claro desta pressão sobre Portugal é a sua tremenda falta de capacidade negocial e a sua falta de visão estratégica. Parece-me que mais uma vez o governo de Portugal traiu os seus cidadãos. Mas um país que vende a sua soberania por se mergulhar em dívida mais não pode fazer que sujeitar-se à lei do credor, à lei do mais forte.

Podemos e devemos perguntar se poderíamos ter feito as coisas de forma diferente no entanto sabemos que o Portugal moderno tem aversão a fazer o que é diferente e portanto suspeito que enveredaríamos por discussões demasiado teóricas e carregadas de "ses". Este governo de horizontes estreitos e "bom aluno", ou melhor, "pobrezinho mas orgulhoso" é o que temos e, manda o pragmatismo, que trabalhemos com o que temos. É esta a matéria-prima. Resta-me sugerir um plano de contingência, em género damage control. Até porque este governo não é mais que um prolongamento, uma emanação da sociedade portuguesa no seu geral a qual está muitíssimo bem representada por esse documento fossilizado que é a Constituição da República Portuguesa. Como não podemos mudar o povo (que até nem é o pior) e como pelos vistos não é possível tocar na sacrossanta Constituição, a qual suspeito que tenha sido escrita pela mão de Moisés, accionemos um plano de Conservação daquilo que funciona. À boa maneira conservadora, diria mesmo.

Falo do Serviço Nacional de Saúde. Vemos hoje o Ministério da Saúde não só a cortar no que deve e, de forma arrepiante, a cortar no que não deve. Esta é a triste sina deste país: oscilar vertiginosamente entre o oito e o oitenta. Adiar o que é difícil e mexer no que é fácil. Com a falta de dinheiro aflora a falta de discernimento na definição de prioridades. Continua-se a ter 230 deputados na AR, faltam medicamentos nos hospitais.

Prioridades.

Tratando-se da saúde eu sou levada, pelo que tenho assistido, a alertar de que os cortes estão a ir longe demais e a desfigurar o SNS; receio que se esteja a comprometer a qualidade da prestação de cuidados de saúde, o que me inquieta e aflige. Vejo situações a acontecer de que eu jamais suspeitaria quando vi Paulo Macedo nomear um secretário de estado que é médico hematologista. É que se existe um e um só serviço público que eu acho que deve ser mantido é o serviço nacional de saúde e por uma razão muito simples: é o único que funciona bem. Não destruamos algo que funciona e que presta um valiosíssimo serviço à sociedade. Não desprezemos uma instituição que é fruto do trabalho e dedicação ao longo dos anos de tantos médicos, enfermeiros e farmacêuticos que de forma dedicada construíram aquele que é hoje (ou pelo menos, o era antes da crise, certamente) um dos melhores serviços de saúde a nível mundial.

Um pequena pequena busca no google devolve inúmeros estudos em que se comprova o que acabei de dizer. Saliento o mega estudo realizado pela Organização Mundial de Saúde no ano 2000 e que posiciona o SNS português, por performance global, em décimo segundo lugar. Como aprecio o contraditório e por ter consciência que o estudo levado a cabo pela OMS foi deveras ambicioso, e por que os resultados de qualquer estudo de qualquer organização são sempre passíveis de crítica, referencio também o estudo do professor Robert Blendon publicado na revista Health Affairs (volume 20, número 3, ano 2001) no qual, ponderada a satisfação (parâmetro subjectivo) dos grupos de cidadãos das categorias "idosos" e "pobres", posiciona o SNS português em décimo sétimo; nada mau, diria eu, atendendo a que perguntaram a dois grupos de *portugueses* inclinados para a insatisfação (viés) (ver resposta/crítica a este estudo publicado por Murray et al nesta mesma revista).

Qualquer que seja o ângulo de que olhemos, os resultados são muito positivos, estaremos algures entre um décimo segundo e um décimo sétimo, uma grande vitória conseguida num curto espaço de tempo (40 anos aproximadamente). Por vezes encontro aquelas pessoas que por estarem cansadas das asneiras dos políticos (e são muitas!) acham que tudo o que é público é necessariamente algo a destruir. Confundem os políticos e a dimensão absurda do sector público português com a coisa pública em si, o que é um erro grosseiro. Por vezes chego a cruzar-me com defensores de um sistema de saúde totalmente privatizado e gerido por gestores e seguradoras. Confesso que tenho pouca paciência para cegueiras ideológicas de todo e qualquer tipo.

O facto de eu conhecer como funciona, por exemplo, o sistema de saúde norte americano ou pelo privilégio que tive em trabalhar a àrea da Nefrologia, onde tomei conhecimento dos estudos que comparam as taxas de mortalidade das clínicas de diálise privadas versus públicas nos EUA, com resultados alarmantes para as primeiras, fez-me tomar consciencia que na saúde há limites ao "negócio" que devem ser estabelecidos, especialmente na saúde; é que o ser humano não é um ser bom: deixem-no livre e à solta, a obedecer somente aos seus "deuses" e apetites e num instante verão na besta em que se transforma! É a lei do mais forte o que, no nosso tempo, equivale a dizer de quem tem e faz mais dinheiro. Ética?! O que é isso?! Tem alguma sorte Portugal, dada a sua tradição mariana, de manifestar ainda alguma fraternidade genuína, sobretudo nas gentes de outros tempos. É coisa para se extinguir a curto-prazo.

E por que falei da nefrologia, recordo-me de uma reflexão do doutor Pedro Ponce quando nos lembrava, no âmbito de uma reunião dedicada ao tema do cuidado a doentes frágeis, das diferenças fundamentais entre um utente e um doente. Dizia ele, e relato de memória, que um utente é uma pessoa que utiliza um serviço, que goza de relativa saúde, que tem uma opinião, que tem reivindicações, que sabe o que quer, que reclama, que paga taxas moderadoras, etc; já um doente é um ser um pouco diferente. Ou seja: quando o utente adoece a coisa muda de figura: já não há tantas certezas, há medo e há fragilidade. O utente quer melhores serviços o doente, esse, quer viver.

O drama das reestruturações da saúde passa por isto mesmo: as regras e leis são feitas por pessoas que se encontram num status muito diferente daquelas que vão utilizar os serviços de saúde. Receio que um dia olhemos para trás no tempo e suspiremos pelo Serviço Nacional de Saúde. Já estou a imaginar uma reunião de sobreviventes do cancro tratados pelo serviço nacional de saúde, quando havia serviço nacional de saúde...

É que não há mesmo dinheiro que pague a preservação da saúde e em última análise, a continuidade da vida. Eu estou disposta a pagar para que os meus concidadãos tenham acesso a um serviço universal de saúde, gerido da forma mais eficiente possível por profissionais de saúde devidamente auxiliados por gestores, e não o contrário, na defesa intransigente do superior interesse dos doentes. Estou disposta a pagar um SNS e a nunca o utilizar: será sinal de que não preciso.

publicado às 08:37


1 comentário

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De Luis Moreira a 14.09.2013 às 15:19

O SNS é na verdade a maior conquista da democracia.

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