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Nesta infausta e felizmente já "descomemorada" data, nada melhor tenho para fazer, senão publicar uma carta escrita nos finais do já longínquo ano de 1974.

 

Tendo ficado em Lourenço Marques até 1976, a minha avó assistiu a todo o processo de debandada que culminaria com o forçado abandono de Moçambique por parte de toda a sua familia. O seu pai, estabelecido em Lourenço Marques desde o início do século,  ali morreu em 1975 por altura da independência e a sua mãe que jamais visitara o Portugal Continental, também viria para a antiga Metrópole. Como era seu hábito, trata-se de uma longa missiva por vezes quase telegráfica e que ainda caía na tentação do uso do português de outros tempos. Nestes papéis apercebemo-nos da catástrofe que se verificava nos serviços públicos já a mercê do oportunismo de muitos, da incompetência dos neófitos e de uma total desorganização tornada inevitável pela abrupta partida de quadros da administração do ainda Estado de Moçambique. O papel das Forças Armadas Portuguesas foi aquele que bem se conhece, sumariamente podendo ser classificado como prepotente, escandaloso e cobarde. A mencionada requisição de navios que procederam à evacuação de militares e respectivas famílias - não esquecendo os preciosos teres e haveres, muitos destes adquiridos ao desbarato aos "colonos" - é apenas um dos tristes episódios que salpicaram a reputação de uma instituição até então por todos considerada sagrada.

O Miguel, a minha mãe, a Angela e eu, com a avó (L.M. Moçambique, 1966)

Alguns nomes foram por mim deliberadamente ocultados, evitando a reabertura de pequenas feridas - que hoje não têm qualquer relevância - perpetradas por gente excitada pelos acontecimentos e que talvez não tenha querido hesitar antes da tomada de algumas atitudes desnecessárias. 

 

Existem muitas dezenas de cartas deste período, ciosamente guardadas pelo meu pai, um felizmente incorrigível arquivista. Estes papéis são verídicos testemunhos de muitos acontecimentos completamente desconhecidos pela sociedade portuguesa. Convém guardá-los e dá-los a conhecer, pois a preservação da memória é o que nos resta. 

 

 

"Lourenço Marques, 8/11/74

Meus queridos filhos e netinhos

Anteontem pouco antes do meio dia foi quando escrevi as últimas linhas da carta que enviei via "Expresso". Não sei se me expliquei claramente, assim volto a dizer agora o mesmo.
Na CCN (1) dizem que a "sede aí é é que tem de mandar aviso Telex para a filial aqui com ordem de pagamento a ser feita cá". Eu já levava dinheiro para o fazer e nada adiantei. Tratar quanto antes do assunto que eu para a semana vou passando pela CCN a saber se já mandaram a ordem de pagamento. Meu Deus, tantas arrelias juntas. Disseram-me que a culpa foi de quem mediu os contentores, é melhor ir sempre a mais e pagar cá. Estava lá uma senhora a dizer que sabia como era. Mediam a menos para se valerem e mesmo receber gorjeta e os interessados que se arranjassem aí. Que sabia de muitos casos. Só penso que se já têm casa (2) devem estar mortinhos para a ter arranjadinha, o tempo como está? Já deve fazer frio. 
Fui à Inspecção de Crédito falar com a D. Irene Santos. Foi ela quem tratou da renovação do cartão da mesada da Prazeres (3) (ainda não lhe mandei o cheque de Setembro, não tenho cabeça nem disposição para escrever). Disse-me que as transferências estão suspensas e é verdade. Que os funcionários que foram "via turismo" não têm direito mesmo que houvesse dinheiro porque foram à sua custa, e é o teu caso, não é assim, Ana Maria? Deram-te a licença graciosa mas não as passagens. Pode ser que eu esteja enganada, mas lembro-me de ouvir qualquer coisa sobre isto antes de embarcarem. Mesmo no BNU estão as transferências suspensas. Não sei quantas vezes eu lá fui e quando lá chego antes de abrir as portas já a bicha é enorme. Enquanto estiver o aviso afixado na porta a dizer que estão suspensas as transferências, nada feito sobre as pensões. 
Se não me engano já mandei dizer qual o dinheiro vosso que tenho. Em caixa deixado por vós antes de partirem = 700$00 mais 25$50 em moedas 2.000$00 pagos por M. Graça Fernandes = 2.725$50.
A XXXXXXXX veio pagar domingo passado 14.000$00 pelo aparelho de ar condicionado. Quando lhe telefonei disse-lhe que preferia em dinheiro em vez de cheque como queria pagar. Que não podia fazer. Lá tive que ir depositar o dinheiro e assim quando preciso de dinheiro só posso levar dez contos por semana, um dia = 4 contos, outro dia = 4 contos e no terceiro dia = 2 contos. É uma bicha tremenda. Quando estranhei serem só catorze contos e lhe mostrei a factura que tinha mesmo ao lado da mesinha do telefone disse-me logo que lhe tinhas falado em catorze e não em catorze e quinhentos. Sempre quero ver se dará o que falta. Também me disse que os 4 contos não eram divida dela mas sim do irmão e da cunhada, que tinha ficado acordado contigo pagar mil escudos por mês. Que quando eu fosse novamente com a tia Mimi à consulta (vou na terça dia 12), a cunhada me pagaria qualquer coisa. Eu que ando a pé e sou velha é que tenho de lá ir. Esta gente não é nada atenciosa. A YYYYYYYY está na África do Sul, só para o fim de semana é que virá. Foi o que me disseram quando telefonei. O Sr. Inácio Ribeiro foi mais cortez, mas é pouca coisa o que tem para me entregar.
Agora vende-se tudo ao desbarato, por este andar só quem mesmo não pode é que não procura novos horizontes. No mercado negro dizem que para receber 100$00 daí temos que dar 300$00. Quando se pergunta quem o faz ninguém sabe e qualquer dia estará a 400%. Anda tudo louco. Não há navios para passageiros e carga. Até Março é para militares e famílias e material de guerra. Estamos abandonados. Não é costume nestas ocasiões fretarem navios e mesmo aviões para quem quer ir embora? Coitado do Avô (4). Diz que da sua casa não sai, mas está tão abalado que não sabemos quanto mais viverá. É a velhice. Vai-se apagando pouco a pouco. A Avó tendo que sair prefere ir para a A. do Sul que é clima mais quente, o Carlos, a Bolívia e a Mimi (5). A Maria Jesus (6) diz que vai com os filhos para lá, só está à espera do emprego que lhe prometeram em Durban. Mais ou menos o mesmo que cá faz. O Zeca (7) começa a trabalhar lá em Janeiro, a Laura (7) já está a desmantelar a casa. Enfim, a família vai cada um para seu lado. A Loti (8) conta embarcar no fim de Dezembro. Eu que faço? A Adélia (9) embarcou domingo passado com os miúdos e a mãe. Estão a viver em Portimão. O Mário (9) para o mês que vem embarca a gozar férias. Conta ficar uns tempos por cá e prefere então ir para o Brazil. Já está a tratar para ali se fixar. Fala em Porto Alegre. O Mário vai passar o natal aí e volta para cá até ir para o Brazil. O mobiliário já está a ser encaixotado e segue no fim de Dezembro para o Brazil. Vai junto com bagagem de uma família amiga. 
Eu ando a tratar da minha pensão de sobrevivência. A Adélia andou lá mas tudo agora é muito moroso. mandaram-me ir para a semana. Quero ver se ainda tenho chance de a transferir para aí antes de vinte e cinco de Junho, tenho até morrer. Assim não perco tudo, bem basta a casa ficar cá. Pena tenho eu de não a poder levar às costas. Eu ando muito nervosa (quem não anda?) quantas vezes não digo que era preferível morrer, tanta cousa triste neste último ano! Não sei se leve a tralha (caso haja navios de carga) e venda aí mesmo ao desbarato mas o dinheiro corre no mercado e o de cá só se for (10) para limpar o...! As lojas estão vazias, as pessoas que foram, como não dão transferências gastaram todo o dinheiro que cá tinham. Foi uma das razões porque os bancos agora só deixam levantar dez contos por semana. Mandem dizer o que na minha casa vale a pena levar. Parece-me que há gente da A. do Sul interessada em mobílias de talha, pagam em rands. Sendo assim vendia a mobília de quarto. Para mim um divan faz de cama e o resto do quarto a fazer de salinha com as minhas recordações já me chega. Ao que a gente chega. Nem se pode morrer em paz. 
Esta semana fui ter com o Jorge (11). Disse-lhe também que já tinha vindo a minha casa, ao sábado e domingo na verdade nunca estou.  Ao sábado casa da tia Bolívia e Avós e ao domingo com a Adélia e Mário. Ontem à noite o Mário veio buscar-me e fomos ao cinema ver uma comédia. Nunca julguei que pudessem fazer filmes tão cómicos, sem ser as parvoíces de outrora. Agora metem política e é cada uma. Olha, fartei-me de rir. O filme de bonecos animados era mesmo bom. Passado numa escola. Como estava dizendo estive a conversar com o Jorge. Diz que vai haver barulho lá mais para diante. Como a Vira (12) também passou e ficámos a conversar, não adiantou mais nada, de maneira que não sei o que conta fazer. Sobre a tua mãe, Ana Maria, nada sei. Uma senhora que estava ao balcão é que perguntou se eu era a mãe do Vítor e que quando fosse à Caixa para lá passar, pois tinha uma encomenda para ti. O Jorge falou em cheque... mas nada havia. O contrário é que seria de admirar. É a tal Margarida de que falaram numa carta.
Sobre o emprego estão satisfeitos? Aparecendo cousa melhor é aproveitar. Escuta aqui, escuta acolá e olho vivo poderá ajudar para cousa melhor. O que interessa é na verdade ganhar para comer, para a casa e para os estudos. Como está a Angelinha? O Miguel e o Nuno, bons? A Ana Maria não diz nada sobre a saúde, bem agasalhados por causa do frio é o que eu peço para fazerem. Fui agora à caixa do correio mas não tenho correspondência. A semana passada recebi duas cartas em dois dias seguidos ou foi no princípio da semana? Desculpem a minha cabeça anda tão cansada. Isto é uma baralhada medonha! Quando estou sozinha farto-me de chorar, e quando quando ando na rua melhoro mas, o pior é que quando chegou a casa está tudo por fazer. Não encontro tempo para tudo.
Todas as pessoas amigas vos mandam muitas saudades. Mais uma vez o seguinte: (quanto antes têm que ir à sede CCN pedir para mandar para a filial de cá um Telex a confirmar o pagamento cá. Não vindo a ordem da sede aqui não recebem o dinheiro) Entendido?
Muitos beijinhos e muitas saudades da mãe e avó muito e muito amiga
Irlanda"


(1) CCN, Companhia Colonial de Navegação.


(2) Vivemos no Parque de Campismo de Monsanto até ao verão de 1975.


(3) M. dos Prazeres, a irmã do meu avô, residente em Valença do Minho.


(4) O meu bisavô. Vivia em Moçambique desde o início do século XX.


(5) Carlos, Bolívia e Mimi, irmãos da minha avó.


(6) Maria Jesus Branquinho, cunhada da minha avó.


(7) Zeca e Laura , irmão e cunhada da minha avó.


(8) Leontina (Loti) Tenreiro, irmã da minha avó.


(9) Adélia e Mário, a nora e o filho da minha avó, meus tios paternos.


(10) Uma conhecida expressão de desânimo que a minha avó substituiu por reticências.


(11) O tio Jorge, irmão da minha mãe.


(12) Elvira, uma prima do meu avô.



publicado às 19:20


2 comentários

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De Umbila a 06.10.2013 às 21:27

Olá Nuno,

Também vivi tudo isso em LM, (embarquei em Março de 76). Nao me é possível descrever por palavras tudo o que senti e relembrei quando li a carta da sua avó.
 Obrigado "do coracao" por ter publicado este testemunho, e por me ter dado a possibilidade de a ler.

 Ambanine
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De Nuno Castelo-Branco a 08.10.2013 às 00:14

Umbila, não perderá pela demora. Irei publicando carta após carta e da autoria de várias pessoas. 
Relatam desagradáveis experiências e as misérias de gente que se aproveitou indecentemente dos signatários das cartas. Poderá ler as tropelias das nossas pretensas "autoridades", os roubos, abusos, indignidades. Amanhã sairá mais uma. Não se trata de recalcamento ou vingança, mas sim o contar da história como ela foi. Estão todas datadas e na sua maioria ainda possuem os envelopes com a data de envio. Para que conste... :)

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