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Eu sei que é mais fácil falar do que fazer. Eu sei que é mais fácil imaginar o fogo real do que queimar as mãos. Eu sei que provavelmente produzo reflexões de barriga cheia, corpo meio-cheio que mesmo assim transborda de reclamações, amparado pelo conforto da relativa segurança. Mas prossigo com o meu intento de escrutinar o guião do desemprego. Tento, sem grande aval, reproduzir os passos dessa condição de agrafo. O simulacro da abstinência laboral não passará disso mesmo, de um exercício incompleto - a ficção mais distante que próxima, da substância, um dia na vida de um dispensado. Se a depressão atrasa os movimentos e retarda o despertador como pilha falida, a fala que não sai, anula o gosto dos outros e do café. E as horas, essas que custam mais, agora passam mais vagarosas e ostentam outra tarifa - encarregam-se de arrastar o calendário para um outro temporal. A cara, salpicada pela neblina ranhosa da noite, já não carece da lavagem porque ninguém verá a rosada, a bochecha - a barba áspera tratará do resto. Camufla o mal-estar e uma parte da comichão, do bicho que tomou a floresta como sua lua. E a mãe brada do corredor que já são horas de levantar. O café já abriu para os rotos enquanto o pão chegou de véspera, fermentado pela dureza, agrafado pelo dente que sobreviveu à mordedura de uma sobra. O matutino que sobeja serve para a descasca da batata, mas ainda se vislumbra o craque da bola, o brilho dos olhos que condiz com o brinco, o resultado da taça. A fila que rodopia o quarteirão é totalmente dele. É dele. É ele que é ela que é ele que já foi ele - agora mero elo. Como linhas. Como linhas cruzadas ao almoço. Esparguete que se contorce como engodo de si - morde-se. E há tardes também habilitadas a idêntico desfecho, alinhadas debaixo de um sexto do quadrante, a parte da bússola que aponta para uma alvorada anunciada em sessões contínuas de desavindos com o engano. A luz está ao virar da esquina - dizem eles. A luz aprendeu a dobrar as curvas - garimpam eles. E a conversa faz parte do desmaio, da ocasião tornada obesa, dominante. Escuto apenas gargarejos de palavras, oiço a proveniência duvidosa, vejo as naturezas quase mortas de um juízo acertado, acartado às costas para aquecer a noite ferida que se avizinha. Mas ainda fala sobre a força para a derradeira bomba de ar - quer encher os pneus da pedaleira para rumar, sem assentar os pés em terra. Quase voar, quase voltar a ter razões que chegam, sobressalentes. O pedido do outro passa a ser religião. A encomenda para durar uma época apenas. Mais tarde chegará outro desejo, aquele foi adiado pelo freio - o travão de emergência onde a mão se enforca, a mão anónima que puxa a alavanca e trava o eléctrico, e o que escapa por entre o dia é mais um não igual ao anterior, semelhante ao não que se segue. Como mandar recados na volta do correio.