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Zapatero é um personagem espirituoso. Vejam, por exemplo, o título escolhido para o livro que o ex-primeiro-ministro espanhol acaba de lançar: "El dilema, 600 días de vértigo". O estilo é pomposo e grandiloquente, e garante, de um modo desassisadamente extremado, o riso cacofónico dos leitores, não só pela falácia intrínseca ao suposto "dilema", mas, também, pelo despudor com que Zapatero retrata os seus últimos dias à frente do executivo espanhol. De tudo o que tem sido escrito na imprensa a respeito deste livro, há, no entanto, um ponto que merece, a meu ver, alguma atenção, e que deveria, em bom rigor, interessar a todos aqueles que não se revêem no modus operandi das instituições europeias. Refiro-me, pois claro, à carta enviada por Jean Claude Trichet ao Governo espanhol, exigindo a aplicação de uma série de reformas em troca do apoio financeiro concedido pela instituição sedeada em Frankfurt. Em primeiro lugar, é notável, no mínimo, que Zapatero só agora se tenha lembrado de publicitar essa carta. Como os leitores mais atentos certamente recordarão, na altura, Zapatero, não obstante as pressões esgrimidas em múltiplas direcções, refutou, terminantemente, a publicitação da dita carta, com o argumento, novamente sublinhado, de não colocar em risco a estabilidade do país. Contudo, passados dois anos, e sem que tenha terminado a crise política e económica que assola há já alguns anos o país, Zapatero entendeu que era chegada a hora de mostrar aos seus concidadãos a carta remetida pelo BCE. O sentido de oportunidade deste socialista moderno é, de facto, bastante estranho. Em segundo lugar, ainda que o método seguido por Zapatero seja bastante questionável, como foi, aliás, tudo o que fez e realizou enquanto chefe de Governo, não há como descurar a imperícia autoritária com que as instituições europeias têm lidado com os países em crise. Esse autoritarismo ganha ainda maior acuidade no caso do glacial BCE. Na prática, estamos a falar de uma instituição destituída de qualquer mandato politicamente sufragado para realizar a política que, nos últimos anos, com particular destaque para os últimos dois, tem vergado os países arruinados do sul da Europa. A realidade é simples e matemática: o BCE tem despejado orgasticamente dinheiro atrás de dinheiro sobre um poço sem fundo, impondo, em simultâneo, um conjunto de directrizes ao arrepio das soberanias nacionais. Bem sei que, nos tempos que correm, a interconstitucionalidade de que falava abundantemente Lucas Pires é uma realidade que não vale a pena denegar, mas, ainda que isto possa ser considerado uma pecha por alguns, não consigo aceitar a intromissão grosseira que instituições da laia do BCE repetidamente perpetram nas soberanias nacionas dos estados-membros. É por isso que, como tenho escrito noutras ocasiões, olho para a Europa com muita desconfiança. A centralização absurda que, desde há alguns anos a esta parte, tomou conta do processo político europeu, assim como, o construtivismo político despido da necessária e tão ansiada sindicância democrática, não auguram nada de bom a um continente que precisa desesperadamente de uma guinada. É claro que Zapatero não passa, nesta engrenagem suicida, de um mero grão de areia, cuja relevância se limita, presentemente, aos escaparates da "La Central". Porém, seria bom que quem tem responsabilidade e voto na matéria não se esquecesse do exemplo dado pelo verborreico socialista espanhol nos idos de 2011. É que, para todos os efeitos, a bazooca do BCE continua a disparar e a ferir milhões de cidadãos um pouco por toda a Europa, impondo aos capachos nacionais toda a sorte de malefícios confiscatórios.