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Nas semanas que antecederam o início da Operação Barba Ruiva, os soldados alemães, conscientes da grande colaboração existente entre o Reich e a URSS, dedicavam-se a aventar as mais mirabolantes fantasias justificadoras daqueles preparativos bélicos. Muitos duvidavam da possibilidade de um conflito entre ambas as potências e dizia-se que Estaline teria arrendado a Ucrânia à Alemanha, garantindo assim o abastecimento de matérias primas ao Reich em guerra com os ingleses e seus aliados. Uma guerra contra os russos parecia inacreditável aos soldados da Wehrmacht, conhecedores da estreita colaboração entre ambas as lideranças. No campo Aliado e após o ataque soviético à Finlândia, chegava-se ao ponto da URSS ser considerada como um membro informal do Eixo.
A propósito da situação a que já há muitos anos temos assistido na Ucrânia, Daniel Oliveira deixa-nos o seu ponto de vista num artigo no Expresso. Passando sobre as considerações acerca da política portuguesa que vão servindo como justificação comparativa a tudo o que mexe sobre o planeta Terra, o artigo destaca o regresso alemão à zona leste da Europa, neste caso uma Ucrânia que após a I Guerra Mundial, era encarada por Berlim como um apetecível espaço fornecedor de matérias primas industriais e de produtos agrícolas.
A queda dos Romanov permitiu que durante os anos subsequentes se gizassem alguns projectos de construção de novos estados, principalmente quando a Europa receava o poder de contágio do regime soviético saído vitorioso da guerra civil. O traçado das fronteiras a leste também obedeceu à necessidade de um ao tempo chamado Cordão Sanitário que significasse uma barreira a um proselitismo leninista já demasiadamente activo na Alemanha e Hungria. A Polónia foi reconstituída da forma que sabemos, desde logo incluindo numerosas minorias nacionais que desmentiam os 14 Pontos proclamados por Wilson como fautores da futura paz universal. Além de terras com alemães a ocidente e no norte, a Polónia anexou a Galícia oriental até então parte integrante do império austro-húngaro, território este povoado por ucranianos. A sul, a nova Checoslováquia - tal como a Polónia e a Jugoslávia, mais uma construção retintamente francesa -, também recebeu um território ucraniano, a Ruténia, enquanto uma engrandecida Roménia beneficiava das derrotas de húngaros e russos. Estavam assim criadas as condições para o inevitável revisionismo de tratados que nada mais foram senão imposições alheias aos pressupostos pelos quais os Aliados alegaram combater os Impérios Centrais.
Após a sua tomada do poder, o regime de Estaline foi por Trotsky - ele próprio um responsável por todo o tipo de brutalidades perpetradas sob seu comando durante a guerra civil - denunciado como centralista e burocratizante, encarando os territórios não russos como colónias ou semi-colónias, enfim, precisamente aquilo que durante décadas se denunciaria no ocidente dos tempos da Guerra Fria. De facto, em todo o espaço compreendido pelas fronteiras daquilo que internacionalmente foi conhecido como URSS, a afirmação de Trotsky não deixava de ser verdadeira, prosseguindo-se as políticas de colonização, desenraizamento e transferência de populações, as limpezas étnicas e a produção obrigatória segundo as conveniências ditadas por Moscovo. Holodomor não foi um caso único, sendo apenas o mais conhecido.
Quem escute as reportagens vindas de Kiev, será tentado a considerar o problema ucraniano como mais um episódio do imperialismo moscovita e nem por isso muito diferente do que há vinte anos aconteceu nos países bálticos ou no Cáucaso. A verdade é que se trata de um caso muito diferente, confrontando-se aqueles que hoje encontram referências libertadoras da hegemonia russa em Stepan Bandera e os pan-eslavistas que inevitavelmente tenderão para a continuidade da situação que já vem desde os tempos de Catarina A Grande. Partindo da suposição de que "os inimigos dos meus inimigos, meus amigos são", Bandera faria precisamente um simulacro daquilo que Estaline e o regime soviético não hesitaram em encetar de forma muito mais decidida, ou seja, uma intermitente colaboração com a Alemanha. Os ucranianos - a Crimeia é uma caso diferente - encontram-se então divididos entre aqueles que a ocidente tenderão para encarar a Europa como um destino seguro que conduz à prosperidade e os não menos numerosos pró-russos, sem dúvida atraídos pela imagem de firmeza transmitida pelo regime de Putin e sem dúvida, pelo eslavismo e consciência da clara dependência económica e estratégica em que a Ucrânia se encontra. Imaginemos então o que para países como Portugal, já fustigado pelo ainda recente ingresso dos estados do leste europeu na UE, representaria a entrada da Ucrânia? Estão permanentemente estilhaçadas todas as suposições internacionalistas da esquerda europeia, enquanto o socialmente restrito mundo dos negócios decerto olhará com esperança para mais esta hipótese de mão de obra barata - muita da qual é qualificada - e um grande potencial económico no que a matérias-primas se refere. Muito há para dizer quanto a este assunto que não se circunscreve apenas a lutas pelo predomínio económico na região. O próprio Putin consiste num sério factor a ter em conta, conhecendo-se a sua declarada antipatia para com aquilo que se verifica em muitos países da Europa ocidental onde o islamismo levanta cabeça. Aqui Putin encontrará muitos tácitos aliados na direita política e numa esquerda musculada que minimizará os traumas provocados pelo derrubar de estátuas e o picar das estrelas, foices e martelos dos edifícios públicos russos. Se para aqueles o dirigente russo até poderá restaurar a Monarquia, para estes não deixou de ser um homem forte dos tempos da extinta URSS.
No caso ucraniano, não se trata de um mero confronto entre os desejos de predomínio de alemães e russos, até porque a aproximação entre ambos parece sólida e com perspectivas de durabilidade. Por muito que isto desagrade aos memoralistas dos tempos do Reich, a Alemanha dos nossos dias encontra-se numa situação muito inferior àquela que se lhe reconheceu até 1945. Na Europa ocidental, muitos já entenderam o cada vez maior interesse da Alemanha na sua tradicional área de influência na Europa central e de leste, secundarizando os problemas que a ocidente já parecem irremediáveis. O alargamento da União Europeia a leste apenas consolidou esta perspectiva. Ninguém seriamente imagina um aberto confronto entre Berlim e Moscovo a propósito da hegemonia sobre a Ucrânia, pois os alemães nem sequer dispõem dos recursos políticos - a memória da II GM é forte - e militares - a Alemanha é militarmente quase nula - para tal aventura que pressagiaria um desastre a curto prazo. Talvez se possa antever algum desejo de mitigar a retoma do expansionismo russo, obtendo-se algumas concessões que o ingresso da Ucrânia poderia significar, num primeiro passo a dar para uma ainda muito longínqua entrada russa na união. É isto mesmo o que há a reter daquilo que Daniel Oiveira aponta como ..."um confronto económico entre a Alemanha (que quer o acordo de parceria) e a Rússia (com a sua união aduaneira)." A Alemanha parece estar a usar a arma política - não descurando a apetecível tecnologia - para a obtenção de vantagens económicas não apenas na Ucrânia, mas também na própria Rússia. Quem julgue existir alguma pretensão a domínio territorial ou militar, encontra-se perdido num passado de impossível revisitação. Aos alemães, a Ucrânia apresenta-se então como um facto consumado da influência russa e a menos que ocorra uma catastrófica revolução em Moscovo, não se vislumbram alterações quanto a esta situação. Deverão então os alemães estar bem conscientes da sua força económica - aliás sublinhada pelo Euro fatalmente exigido pela França - e a sua fraqueza histórico-política e militar. Quanto a isto, não terão quaisquer dúvidas. Merkel e Putin sabem-no tão bem como qualquer outro comum mortal e a proposta da entrada da Ucrânia para o Zollverein delineado por Moscovo, decerto trará claras reminiscências de uma história de unificação que a Alemanha muito bem conhece e aproveitou.
O acordo germano-russo, já pressupõe uma radical alteração geoestratégica de uma Europa durante três gerações fortemente ligada aos EUA e consequentes políticas atlanticistas. Muitas são as razões a apontar para o declínio daquilo que um dia se chamou CEE e o seu desmesurado alargamento não deixará de configurar o lugar cimeiro daquelas. Enquanto a Europa foi essencialmente ocidental - com a própria existência de uma Alemanha dividida -, jamais se colocou em causa a solidariedade atlântica, servindo o expansionismo russo-soviético como instrumento de coesão e de todos os tipos de solidariedade. A derrota sem apelo de todos os regimes comunistas de leste alterou profundamente essa mesma ideia de Europa, sendo impossível negar a polacos, checos, romenos ou bálticos, aquilo que era um dado adquirido para dinamarqueses, franceses, italianos, belgas ou portugueses. O problema passou então a radicar nas relações que esta subitamente vasta união europeia teria com os novos vizinhos russos, ao mesmo tempo que uma NATO também alargada trazia outros tipos de problemas que a presença americana implicava no diálogo com o Kremlin. Tudo dependerá então da forma como europeus e americanos quiserem encarar uma Rússia que não se conforma exactamente ao mesmo modelo democrático que nas últimas duas décadas tem vingado de Lisboa a Varsóvia. Querermos ver a Rússia como uma potência exactamente como qualquer outra - seja ela a França, o Reino Unido, a Itália ou a Alemanha -, consiste num evidente erro que antes de tudo é liminarmente rejeitado pelos próprios russos, estando estes conscientes da sua grandeza territorial, potencial militar e imensos recursos económicos. Pede-se apenas a resolução de um difícil equilíbrio entre o ocidente e o leste, estando desde já certos que Moscovo não deixará de exigir a não intromissão na sua tradicional esfera de influência, i.e. os territórios que um dia pertenceram à soberania czarista e correspondente sucessora soviética. Isto supõe uma certa liberdade de acção russa na Bielorrússia, no Cáucaso e uma forte influência na Ucrânia. Aos desejos alemães de obtenção de vantagens económicas na Ucrânia, contrapõem-se outros que se estendem ao domínio militar - o Mar Negro e o Cáucaso - e da segurança interna: os da Rússia. A ninguém estranhará a praticamente inevitável preponderância desta última. O mais curioso será observar que estes desejos servem plenamente a segurança europeia.
Qual a alternativa que a Europa, ou melhor, a Alemanha poderá propor aos ucranianos fortemente dependentes quanto ao abastecimento energético e que partilham milhares de km de fronteira e redes de comunicações com a Rússia? Como poderá a Europa, hoje paulatinamente se distanciando dos EUA que cada vez mais se interessam pelo Extremo Oriente, explicar a manutenção do antagonismo com a Rússia que se apresenta ela própria como europeia e defensora do perímetro de defesa do continente? Para os entusiasmados continentalistas da esquerda europeia, no momento em que se conhecem grandes dificuldades na contenção da chegada de contingentes humanos que representarão o fim do próprio conceito de Europa, torna-se muito difícil rejeitar o estreitamento da cooperação com a Rússia, mesmo que a muitos o regime de Putin surja como algo de insólito - quando foi precisamente a esquerda europeia quem contemporizou com o sistema soviético - e de contrário à ideia que a ocidente se tem acerca daquilo que é ou deverá ser uma democracia. Além do modelo económico que até à globalização se conformou ao bem-estar social, o vertiginoso desarmamento a que os países europeus se sujeitaram ao longo de muitas décadas, também será um dos factores a considerar para este mais que certo resvalar para a crescente influência russa, aliás nada que já não tivesse sido previsto pelos políticos que cercavam o Kaiser no alvorecer do século XX.
Aquilo que os nossos comentadores agora deveriam estar a congeminar, é a possibilidade do afastamento de alguns países europeus do supra-centro dirigido por Berlim. Existem factores que poderão influenciar esta suposição e o alargamento do Canal do Panamá - conducente a mais uma enxurrada chinesa - decerto obrigará os EUA ao regresso do seu interesse pelos seus fiáveis aliados em Londres, Lisboa e outros. Pensem no assunto, é coisa para os próximos quinze anos.