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Oportunismo, duplicidade e cinismo, são três temíveis características na definição de qualquer ser humano geralmente desprezado pelos demais. Se aplicarmos estas mesmas palavras à arte da diplomacia ou aquilo a que chamamos política internacional, teremos forçosamente de reconsiderar. A duplicidade e o oportunismo servem como recurso de sobrevivência para aqueles países com escassas possibilidades de garantir a sua própria segurança ou independência.
Decorridos duzentos anos da primeira invasão francesa, muitos contestam ainda a política de duplicidade e de oportunismo que marcou a o período da Regência, na difícil tarefa de negociar com uma agressiva e conquistadora França revolucionária - a grande potência militar continental - , mantendo simultaneamente intacta a aliança inglesa, essencial para a preservação do império colonial e em último caso, da própria existência do reino. A capacidade dilatória que exasperou o arrivismo de Napoleão, a concertada paciência nas inevitáveis cedências quanto ao prestígio e os claros subornos de índole económica, adiaram a invasão até a um momento em que após a derrota de Trafalgar, a França e a Espanha já não eram potências navais comparáveis à Inglaterra. A política portuguesa satisfatoriamente cumpriu o que se lhe exigia quanto à defesa daquilo que consideramos ser o interesse nacional. No início do século XIX, Portugal ainda podia ser considerado como uma potência, devido ao seu património colonial e à nada desdenhável dimensão da sua marinha que aliás, possibilitaria a transferência da sede do governo para o Brasil, missão logística de espantosa envergadura e perícia técnica, impensável nos nossos dias. Há contudo que reconhecer que a exiguidade territorial e fraqueza demográfica - além de factores relativos à geografia e organização social e económica - condicionavam fortemente a autonomia do país no concerto das nações, tornando imprescindível a aliança inglesa.
As relações de um pequeno país com a potência dominante ou tutelar, tem-se pautado pela conformação aos desígnios estratégicos da hegemonia, disso dependendo uma multiplicidade de interesses, desde a economia, à própria existência de facto desse elo mais fraco da "aliança". O relacionamento entre países não obedece a critérios de humana e súbita paixão cimentada por sólida amizade. As alianças existem porque servem o interesse de ambos os signatários dos tratados que a confirmam e o caso português é exemplificativo da constante necessidade da procura de conformar as obrigações decorrentes das alianças, com os interesses mais directos do próprio Estado, em tudo o que isto implica. Se durante séculos a aliança inglesa foi essencial para a manutenção das possessões portuguesas espalhadas pelo mundo e para refrear os avanços de Castela no sentido de uma forçada unificação peninsular - destruindo o chamado equilíbrio europeu -, o caso americano é diferente.
Durante a II Guerra Mundial, a política do Departamento de Estado norte-americano e do próprio presidente Roosevelt, consistiu no privilegiado entendimento com a União Soviética, a verdadeira força militar continental capaz de impedir a vitória alemã na Europa. Consciente das vantagens que adviriam para as ambições económicas das empresas americanas, Roosevelt entusiásticamente iniciou com Estaline os preparativos do chamado movimento da descolonização, cujo principal lesado seria obviamente, o Império Britânico. Na Conferência de Teerão essa sintonia americano-russa tornou-se patente aos olhos de Churchill e teve consequências de uma dimensão tal, que conformaram todo o mundo durante décadas, ainda hoje se fazendo sentir os seus efeitos. Se compararmos a posição portuguesa face à Inglaterra dos séculos XVII, XVIII e XIX e a declinante situação britânica desde o início da I Guerrra Mundial, fácil será verificar que o móbil de aproximação à potência hegemónica, é a manutenção do conjunto territorial colonial. O ocaso do poder europeu nas ruínas de 1945, obrigou a uma reformulação das alianças e desta forma, a participação portuguesa na NATO procurou garantir a protecção face à vitoriosa Rússia soviética, pretendendo-se incluir o país num âmbito mais vasto de comunhão de interesses que garantiam o modelo de sociedade ocidental e a intangibilidade das fronteiras na Europa e no além-mar. O interesse norte-americano pela descolonização, tem sido apontado como lógica consequência da sua própria génese como antiga colónia dependente de uma metrópole europeia, mas a verdade residirá mais na procura do firmar de posições de índole económica, onde o acesso a matérias primas não pode ser menosprezado. Os motivos de ordem ética já há muito se tinham eclipsado na agressão a Espanha em 1898 e consequente anexação das Filipinas e Porto Rico. Após a partilha do mundo em Yalta, a América pretendia uma generalizada descolonização, porque isso era um factor essencial à penetração nos mercados exóticos, agora formalmente controlados por inexperientes e volúveis entidades políticas adventícias no mundo da diplomacia. Simultaneamente, concorria o facto de poder agora livremente, proceder à instalação de bases militares em todo o sudeste asiático, na própria Europa e no Índico.
Terminado o ciclo do Império, Portugal deixou de poder sofrer pressões quanto à manutenção das possessões ultramarinas. O país inseriu-se naquela que ainda hoje é apenas uma União económica - a União Europeia -, participa na Aliança Atlântica e desenvolve estreito relacionamento com a superpotência do século, sempre no mesmo e tradicional sentido de manutenção da integridade da soberania. A cedência de facilidades muito alargadas nos Açores, a resposta pronta ao apelo de auxílio - mesmo que simbólico e conformador aos olhos do mundo daquilo que parece ser uma Aliança - e a adequação do discurso político nas organizações internacionais como a ONU, cumprem cabalmente as obrigações decorrentes da posição de potência subsidiária. No entanto, o desaparecimento da União Soviética e do latente perigo de conflito bélico com o Pacto de Varsóvia, possibilita alterações na condução de uma política externa que possa ser considerada como "nacional". A sempre omnipresente chantagem quanto aos territórios ultramarinos, desapareceu. A derrota do gonçalvismo implicou também o progressivo apagar da chama secessionista nos arquipélagos atlânticos e Portugal enveredou correctamente por uma política de proximidade com os EUA durante as décadas de 80 e 90, almejando obter a benevolência de Washington quanto ao pendente problema timorense. A paciência e porfia nas movimentações diplomáticas - inegavelmente facilitadas pelo ingresso na então CEE - , conduziu à vitória da obtenção do referendo para a autodeterminação de Timor Leste, impossível sem a plena aquiescência americana. O nosso país participa em numerosas missões de manutenção da paz sob a égide das Nações Unidas, mas que de facto, servem a política gizada pelos americanos: Bósnia, Kosovo, Timor, Afeganistão ou Iraque, consistem em alguns pontos do globo onde a chamada ao dever das forças armadas portuguesas, cumpriu os pressupostos da Aliança, mostrou a bandeira e manifestou a vontade de afirmação soberana.
Marcado pela inqualificável posição moral dos EUA quanto ao início do conflito no Ultramar no início dos anos sessenta, não me é fácil nutrir qualquer tipo de simpatia para com aquele país, responsável na sua política imperial, por muitos desastres de incalculável dimensão em todos os continentes. A América é antes de tudo, uma potência económica, logo militar. Obedece a todos os requisitos exigíveis a um Império e segue o programa que lhe garante a hegemonia conquistada pelo poder do dólar e dos tapetes de bombas despejadas pelas Fortalezas Voadoras. A relação de Portugal para com a tutela, deve permanecer conforme aquela política já estabelecida há sete séculos e que sempre serviu plenamente o interesse nacional. Mas num mundo em que os pruridos de ordem sentimental, ideológica ou moral se esbatem quando confrontados com os importantíssimos interesses de ordem material que garantem o bem estar da sociedade no seu todo - a nação independente -, há que ter em atenção as oportunidades que se oferecem. Desta forma, as viagens dos membros do governo - seja este do PS ou do PSD - a países onde a situação política interna e o esmagador poder exercido pelas castas dominantes ocasionam dúvidas de ordem moral, terão forçosamente de ser encaradas como um estratégico serviço prestado ao nosso bem comum. A aproximação a Luanda ou Caracas, não obedece a qualquer veleidade de cópia de um modelo político que não se conforma à nossa realidade, mas sim à obtenção de essenciais vantagens económicas para Portugal. A fraqueza da posição americana ou espanhola na Venezuela, deve ser aproveitada como uma magnífica oportunidade a não desperdiçar. Neste caso, o oportunismo deve prevalecer. A duplicidade já é consagrada pelo irrepreensível papel cumprido no âmbito das obrigações estabelecidas pelo Pacto do Atlântico. E o cinismo consiste afinal, na imperturbável actividade das actividades da diplomacia nacional que antes de tudo é portuguesa. Não deve ser europeia, nem americana, mas apenas cumprir aquilo que é vital para o nosso interesse.
Pouco ou nada devemos aos Estados Unidos. Portugal não aguarda qualquer tipo de novo Plano Marshall que resgate a nossa economia da incipiência. Não temos de lhes agradecer o usado ou obsoleto equipamento que proporcionaram às nossas forças armadas. Não temos de manifestar reconhecimento pela pressão exercida em 1975, pois isso serviu antes de tudo a posição norte-americana no mundo. Devemos continuar a surgir em fotos como aquela da Cimeira das Lages, por muito que reconheçamos a injustiça do programa militar delineado pela ambição económica de Washington. Continuaremos a facilitar a utilização das bases como garantia de serviço aos interesses geo-estratégicos americanos. No campo económico, se tivermos de prejudicar a América na Venezuela, Angola, ou em qualquer outra parte do mundo, devemos fazê-lo, pois poucas ou nenhumas consequências sofreremos, desfeita a chantagem colonial. Paradoxalmente, acabaremos por ser mais respeitados. Na política internacional não existe lugar para o sentimentalismo e se as alianças permanecem no tempo, isso apenas acontece porque interessam a todos os países que as assinam, não sendo por isso os seus membros obrigados a imolar-se em nome de uma causa alheia aos pressupostos que a fundamentaram. Nem a América o merece, Prejudicou-nos enormemente ao longo da maior parte do século XX, jamais compreendeu ou quis compreender o que para Portugal era um interesse nacional e economicamente, a sua contribuição para o nosso progresso foi, é e será absolutamente ínfima. Tal como perante o resto da Europa, as relações de Portugal para com os Estados Unidos, devem seguir apenas a lógica da oportunidade e do nosso interesse. Se o cinismo aflorar em qualquer momento necessário, não devemos hesitar. A isto, chama-se maturidade.
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Durante a Conferência de Teerão.
Churchill : ..."Deus está connosco"...
Estaline : ..."e o Diabo está comigo. Esta aliança é assim invencível!"