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Estávamos à beira da piscina de água salgada do hotel da Inhaca. Todos os anos, o escusado feriado do 5 de Outubro servia para passarmos três dias naquela ilha situada na baía do Espírito Santo, diante da cidade de Lourenço Marques. Organizado o grupo de turistas ocasionais, os nossos pais aproveitavam o início do verão austral para uns dias de descontracção, desfrutando do convívio com os amigos e a excelente gastronomia propiciada pela cozinha do hotel. Naquele dia 6, alguém nos informou que os árabes tinham iniciado um ataque às posições israelitas na linha Bar-Lev no Sinai, reeditando em sentido contrário, o efeito surpresa de 1967. Em 1973, uma nítida prevalência do politicamente correcto imposto pela esquerda já todo-poderosa nas mentes dos círculos esclarecidos pelos pontapés nas latas de lixo do Maio 68, ditava a necessidade da eliminação de Israel, o "agente sionista que servia os interesses do imperialismo norte-americano" no Médio Oriente. Recordo-me da expressão preocupada da minha mãe, uma indefectível pró-Israel, acabrunhada pelas primeiras notícias chegadas da frente de combate e divulgadas pelo Rádio Clube de Moçambique. O desastre parecia irreversível e a destruição das forças israelitas, um indesmentível facto comprovado pelas pilhas de soldados mortos, canhões capturados e carcaças de tanques calcinados no Sinai. Era a hora das ululantes celebrações para alguns dos habituais convivas das tertúlias lá de casa, onde pontificava o histrionismo estalinista de um conhecido jornalista da revista Tempo. Militante do PC e seguidor fiel dos interesses geopolíticos da União Soviética, era com incredulidade que o ouvíamos discursar desabrida e violentamente contra a posição portuguesa em África e a irreversível vitória final do comunismo no mundo. Naquele tempo, já há muito se tinham evaporado as esperanças de um Israel vermelho e peão de Moscovo numa região ainda fortemente dominada pela presença ocidental. Estaline esperara-o com ânsia e dera as suas ordens para o reconhecimento do novo Estado na ONU. A realidade imposta pela memória recente do dúbio papel dos soviéticos antes e durante a guerra mundial, foi o cadinho onde se forjou a aproximação de Telavive ao Ocidente.
A primeira semana foi a de todas as esperanças numa blitzkrieg que trouxesse os T-55 russos às portas de Jerusalém, destruindo a existência de um país ainda com pouco mais de duas décadas de independência. Cantavam-se hinos à excelência do equipamento soviético e à perícia genial dos instrutores russos que tinham conseguido organizar as pungentes massas de fellahs, em hostes de guerreiros bem armados e invencíveis. Ninguém procurava nem falava em qualquer tipo de cessar-fogo, pois a vitória era certa. Não importava o número de baixas, mas sim o esmagar do odiado obstáculo aos objectivos moscovitas.
A posição da administração Nixon foi clara, rápida e eficaz e esta resposta contou também com a anuência portuguesa que permitiu o reabastecimento urgente das IDF através dos Açores.
Sabe-se qual foi o resultado da contenda. Dez dias decorridos após o ataque árabe, o exército israelita já tinha atravessado o Suez e estava a 100 km. do Cairo, iniciando-se assim, a frenética exigência soviética - com ameaça nuclear - pela cessação das hostilidades, salvando os seus aliados do colapso e da vergonha de uma estrondosa derrota militar de imprevisíveis consequências.
A guerra do Yom Kippur e o parcial sucesso obtido pelos egípcios no seu início, consistiu no providencial salvar da face do regime do general Anwar el-Sadat, sem dúvida um homem moderado e de grande dignidade pessoal. Quando do cessar fogo, os russos tinham perdido para sempre o mais poderoso aliado na região e iniciava-se o processo político que conduziu ao tratado de paz e estabelecimento de relações diplomáticas entre o Egipto e Israel. Para grande desespero dos amigos militantes do PCP que povoavam a nossa sala de jantar e para o nosso vingativo gáudio - da minha mãe, meu e do Miguel-, a União Soviética tinha averbado um pesado revés, tão mais grave porque comprometia irreversivelmente o seu prestígio em todo o chamado mundo árabe. Recordo-me de então ouvirmos no nosso quarto e com o som ao máximo, discos das Barry Sisters e de Rika Zarai, enquanto na sala de visitas, alguns espumavam de raiva: Bei mir bist du schejn...
Nesta questão do Médio Oriente, os interesses económicos mesclam-se naturalmente com a luta pela supremacia geoestratégica dos principais intervenientes na cena política mundial. Liquidada a URSS e para sempre pulverizado o seu império em realidades políticas nacionais, os EUA fizeram exercer o seu papel tutelar e mesmo apesar do contratempo imposto pela mal conduzida política no Iraque, ninguém contesta hoje o forte pendor ocidental de regimes como o jordano, saudita, egípcio e dos Estados menores da área do Golfo.
Israel foi ao longo de cinquenta anos, a espada que zelou pela segurança de uma Europa entorpecida pela decadência da sua outrora poderosa influência na política mundial. Os ímpetos do extremismo islamita que apontam a própria península ibérica como um objecto de futura reconquista e a desejada desestabilização do Magrebe, oferecem um preocupante cenário de irresolúveis problemas futuros nos quais o nosso país será fortemente envolvido. A corrupção, inépcia, esterilidade da produção intelectual e brutal forma de organização social nos países "árabes", tornam Israel no preferencial e mais seguro aliado do ainda existente Ocidente.
Há perto de cinco séculos, no exacto momento em que a Europa era pelos otomanos invadida através dos Balcãs, as galeras do sultão faziam aguada no porto de Marselha, contando com o beneplácito de um Francisco I desejoso do enfraquecimento do imperador Carlos V. No século XVII, quando da derradeira incursão turca na Europa central fez chegar os janízaros às portas de Viena, Luís XIV atacava a rectaguarda cristã representada pelos territórios dos Habsburgos na Flandres e em Espanha Desta forma, prejudicava gravemente a posição de Leopoldo I que sempre contou com o auxílio dos tercios enviados pelos seus primos de Madrid. Em 1717, a esquadra francesa deixava os seus aliados isolados para enfrentar a armada turca no Cabo Matapan, fugindo para um porto seguro. A vitória conseguida pelos portugueses, impediu a ameaça à segurança marítima do Mediterrâneo oriental. Quando décadas mais tarde Bonaparte entrou efemeramente vitorioso no Cairo, declarou-se muçulmano, procurando estabelecer no antigo reino dos faraós, a sólida base para as ambições do seu poder pessoal.
Ciclicamente, as actividades diplomáticas do Quai d'Orsay, são consentâneas com a tradicional política francesa de obtenção de vantagens egoístas, olvidando a nova realidade política europeia da qual a França é fundadora e elemento de primordial importância. O simples factor de pressão psicológica que é representado pela presença de muitos milhões de "árabes" dentro das suas fronteiras, torna a posição de Paris bastante previsível e inóqua na seriedade da sua política que não pode deixar de ser equacionada sob o prisma da desconfiança e inconsistência.
Pouco conheço acerca da cultura judaica e creio jamais ter conhecido um judeu ou um israelita. Já me cruzei com alguns nas ruas de Paris, Londres, Nova Iorque e até em Lisboa, ao sábado, quando frequentam um café da zona do Rato, após o cumprimento dos seus afazeres religiosos na sinagoga. No entanto, estou seguro da minha convicção acerca da proximidade que existe entre a forma de organização política e social vigente em Israel e aquela que a totalidade dos países do Ocidente perfilha. É este exemplo prático da política o que é mais importante e verdadeiramente interessa. Tudo o mais são meros artifícios, divagações e preconceitos de outros tempos. Deixo apenas uma questão, talvez de pormenor, acerca da categoria moral em que esta guerra pode ser avaliada:
- Como teria a comunidade internacional reagido nos anos 60 e 70, se o exército português se tivesse entrincheirado em quartéis construídos no meio da população civil, fazendo-a pagar o elevado preço dos normais danos colaterais infligidos pelo inimigo?
É exactamente esta, a situação imposta pelo Hamas ao seu próprio povo.
Na verdade, Israel tem sido ao longo deste último meio século, o eficiente guerreiro que combate com a espada de Jan Sobieski. Saibamos compreendê-lo, pois a velha máxima do ..."inimigo do meu inimigo"... é actual e inultrapassável.