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O JAN SOBIESKI do nosso tempo

por Nuno Castelo-Branco, em 09.01.09

 Estávamos à beira da piscina de água salgada do hotel da Inhaca. Todos os anos, o escusado feriado do 5 de Outubro servia para passarmos três dias naquela ilha situada na baía do Espírito Santo, diante da cidade de Lourenço Marques. Organizado o grupo de turistas ocasionais, os nossos pais aproveitavam o início do verão austral para uns dias de descontracção, desfrutando do convívio com os amigos e a excelente gastronomia propiciada pela cozinha do hotel. Naquele dia 6, alguém nos informou que os árabes tinham iniciado um ataque às posições israelitas na linha Bar-Lev no Sinai, reeditando em sentido contrário, o efeito surpresa de 1967.  Em 1973, uma nítida prevalência do politicamente correcto imposto pela esquerda já todo-poderosa nas mentes dos círculos esclarecidos pelos pontapés nas latas de lixo do Maio 68ditava a necessidade da eliminação de Israel, o "agente sionista que servia os interesses do imperialismo norte-americano" no Médio Oriente. Recordo-me da expressão preocupada da minha mãe, uma indefectível pró-Israel, acabrunhada pelas primeiras notícias chegadas da frente de combate e divulgadas pelo Rádio Clube de Moçambique. O desastre parecia irreversível e a destruição das forças israelitas, um indesmentível facto comprovado pelas pilhas de soldados mortos, canhões capturados e carcaças de tanques calcinados no Sinai. Era a hora das ululantes celebrações para alguns dos habituais convivas das tertúlias lá de casa, onde pontificava o histrionismo estalinista de um conhecido jornalista da revista Tempo. Militante do PC e seguidor fiel dos interesses geopolíticos da União Soviética, era com incredulidade que o ouvíamos discursar desabrida e violentamente contra a posição portuguesa em África e a irreversível vitória final do comunismo no mundo. Naquele tempo, já há muito se tinham evaporado as esperanças de um Israel vermelho e peão de Moscovo numa região ainda fortemente dominada pela presença ocidental. Estaline esperara-o com ânsia e dera as suas ordens para o reconhecimento do novo Estado na ONU. A realidade imposta pela memória recente do dúbio papel dos soviéticos antes e durante a guerra mundial, foi o cadinho onde se forjou a aproximação de Telavive ao Ocidente. 

 

A primeira semana foi a de todas as esperanças numa blitzkrieg que trouxesse os T-55 russos às portas de Jerusalém, destruindo a existência de um país ainda com pouco mais de duas décadas de independência. Cantavam-se hinos à excelência do equipamento soviético e à perícia genial dos instrutores russos que tinham conseguido organizar as pungentes massas de fellahs, em hostes de guerreiros bem armados e invencíveis. Ninguém procurava nem falava em qualquer tipo de cessar-fogo, pois a vitória era certa. Não importava o número de baixas, mas sim o esmagar do odiado obstáculo aos objectivos moscovitas.

 

A posição da administração Nixon foi clara, rápida e eficaz e esta resposta contou também com a anuência portuguesa que permitiu o reabastecimento urgente das IDF através dos Açores. 

 

Sabe-se qual foi o resultado da contenda. Dez dias decorridos após o ataque árabe, o exército israelita já tinha atravessado o Suez e estava a 100 km. do Cairo, iniciando-se assim, a frenética exigência soviética - com ameaça nuclear - pela cessação das hostilidades, salvando os seus aliados do colapso e da vergonha de uma estrondosa derrota militar de imprevisíveis consequências.

 

A guerra do Yom Kippur e o parcial sucesso obtido pelos egípcios no seu início, consistiu no providencial salvar da face do regime do general Anwar el-Sadat, sem dúvida um homem moderado e de grande dignidade pessoal. Quando do cessar fogo, os russos tinham perdido para sempre o mais poderoso aliado na região e iniciava-se o processo político que conduziu ao tratado de paz e estabelecimento de relações diplomáticas entre o Egipto e Israel. Para grande desespero dos amigos militantes do PCP que povoavam a nossa sala de jantar e para o nosso vingativo gáudio - da minha mãe, meu e do Miguel-, a União Soviética tinha averbado um pesado revés, tão mais grave porque comprometia irreversivelmente o seu prestígio em todo o chamado mundo árabe. Recordo-me de então ouvirmos no nosso quarto e com o som ao máximo, discos das Barry Sisters e de Rika Zarai, enquanto na sala de visitas, alguns espumavam de raiva: Bei mir bist du schejn...

 

 

Nesta questão do Médio Oriente, os interesses económicos mesclam-se naturalmente com a luta pela supremacia geoestratégica dos principais intervenientes na cena política mundial. Liquidada a URSS e para sempre pulverizado o seu império em realidades políticas nacionais, os EUA fizeram exercer o seu papel tutelar e mesmo apesar do contratempo imposto pela mal conduzida política no Iraque, ninguém contesta hoje o forte pendor ocidental de regimes como o jordano, saudita, egípcio e dos Estados menores da área do Golfo. 

 

Israel foi ao longo de cinquenta anos, a espada que zelou pela segurança de uma Europa entorpecida pela decadência da sua outrora poderosa influência na política mundial. Os ímpetos do extremismo islamita que apontam a própria península ibérica como um objecto de futura reconquista e a desejada desestabilização do Magrebe, oferecem um preocupante cenário de irresolúveis problemas futuros nos quais o nosso país será fortemente envolvido. A corrupção, inépcia, esterilidade da produção intelectual e brutal forma de organização social nos países "árabes", tornam Israel no preferencial e mais seguro aliado do ainda existente Ocidente. 

 

Há perto de cinco séculos, no exacto momento em que a Europa era pelos otomanos invadida através dos Balcãs, as galeras do sultão faziam aguada no porto de Marselha, contando com o beneplácito de um Francisco I desejoso do enfraquecimento do imperador Carlos V. No século XVII, quando da derradeira incursão turca na Europa central fez chegar os janízaros às portas de Viena, Luís XIV  atacava a rectaguarda cristã representada pelos territórios dos Habsburgos na Flandres e em Espanha Desta forma, prejudicava gravemente a posição de Leopoldo I que sempre contou com o auxílio dos tercios enviados pelos seus primos de Madrid. Em 1717, a esquadra francesa deixava os seus aliados isolados para enfrentar a armada turca no Cabo Matapan, fugindo para um porto seguro. A vitória conseguida pelos portugueses, impediu a ameaça à segurança marítima do Mediterrâneo oriental.  Quando décadas mais tarde Bonaparte entrou efemeramente vitorioso no Cairo, declarou-se muçulmano, procurando estabelecer no antigo reino dos faraós, a sólida base para as ambições do seu poder pessoal.

Ciclicamente, as actividades diplomáticas do Quai d'Orsay, são consentâneas com a tradicional política francesa de obtenção de vantagens egoístas, olvidando a nova realidade política europeia da qual a França é fundadora e elemento de primordial importância. O simples factor de pressão psicológica que é representado pela presença de muitos milhões de "árabes" dentro das suas fronteiras, torna a posição de Paris bastante previsível e inóqua na seriedade da sua política que não pode deixar de ser equacionada sob o prisma da desconfiança e inconsistência.

 

Pouco conheço acerca da cultura judaica e creio jamais ter conhecido um judeu ou um israelita. Já me cruzei com alguns nas ruas de Paris, Londres, Nova Iorque e até em Lisboa, ao sábado, quando frequentam um café da zona do Rato, após o cumprimento dos seus afazeres religiosos na sinagoga. No entanto, estou seguro da minha convicção acerca da proximidade que existe entre a forma de organização política e social vigente em Israel e aquela que a totalidade dos países do Ocidente perfilha. É este exemplo prático da política o que é mais importante e verdadeiramente interessa. Tudo o mais são meros artifícios, divagações e preconceitos de outros tempos. Deixo apenas uma questão, talvez de pormenor, acerca  da categoria moral em que esta guerra pode ser avaliada:

 

- Como teria a comunidade internacional reagido nos anos 60 e 70, se o exército português se tivesse entrincheirado em quartéis construídos no meio da população civil, fazendo-a pagar o elevado preço dos normais danos colaterais infligidos pelo inimigo?

 

É exactamente esta, a situação imposta pelo Hamas ao seu próprio povo.

 

Na verdade, Israel tem sido ao longo deste último meio século, o eficiente guerreiro que  combate com a espada de Jan Sobieski. Saibamos compreendê-lo, pois a velha máxima do ..."inimigo do meu inimigo"... é actual e inultrapassável.

publicado às 13:20


8 comentários

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De João Pedro a 09.01.2009 às 16:45

«No século XVII, quando da derradeira incursão turca na Europa central fez chegar os janízaros às portas de Viena, Luís XIV atacava a rectaguarda cristã representada pelos territórios dos Habsburgos na Flandres e em Espanha»

A exposição está magnífica, como sempre, mas não concordo tanto com esta parte. Julgo que a ideia de Luís XIV não seria essa, mas a de aumentar o território francês na zona da actual Bélgica a controlar os Países Baixos, neutralizando assim o poderio holandês e afastando um rival dos mares. As principais invasões desse território na época deram-se aliás na década de setenta do Séc. XVII, e o cerco de Viena ocorreu em 1683, acontecimento que inicou o declínio otomano na Europa. Aliás, para o desbaratamento dos turcos, muito contribuiu o príncipe francÊs Eugênio de Sabóia.
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De Nuno Castelo-Branco a 09.01.2009 às 17:00

Tem razão, João Pedro, mas Luís XIV agia sempre de forma oportuna e nem sempre teve em conta o interesse que devia corresponder ao seu título de Cristianíssimo". Aliás, a presença diplomática francesa em Constantinopla sempre foi muito importante e mais tarde, o próprio Bonaparte pensou em retirar vantagens de uma possível aliança com o sultão, abrindo uma nova frente contra os austríacos.

Nota-se a minha parcialidade, é certo. Não sou nada francófilo.
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De Nuno Castelo-Branco a 09.01.2009 às 17:09

João Pedro, tinha a certeza do ataque de Luís XIV durante o cerco de Viena e afinal existiu mesmo: atacou na Alsácia e no Bade e Vurtemberga. Naquela época, consistia no caminho utilizado pelos espanhóis para o reforço dos imperiais e das próprias possessões nos Países Baixos.
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De Cristina Ribeiro a 09.01.2009 às 17:07

Que prazer ter um post como este para ler...
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De Nuno Castelo-Branco a 09.01.2009 às 17:10

Obrigado Cristina, mas já estava a estourar de impaciência. Tinha que mencionar isto.
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De João Mattos e Silva a 09.01.2009 às 18:17

O post é interessantíssimo. Sem histerias, analisa a situação existente no Médio Oriente e ensina: é informativo e didáctico. E vem, felizmente, ao arrepio da "tralha" que se lê na Comunicação Social e na blagosfera, vertendo lágrimas de crocodilo pelo Hamas e pelos palestinianos seus adeptos em Gaza, que apenas querem a destruição de Israel. Alguma vez verteram uma só lágrima ou fizeram uma manifestação quando suicidas arrastam para uma morte horrorosa inocentes ou quando bombas caiem sobre Israel?
Os palestinianos terão direito a ter o seu Estado e a viver de acordo com a sua religião, os seus costumes e as suas leis. Como Israel o tem e mais: tem o direito de se defender dos que querem destruí-lo e impedem que os seus cidadãos vivam em paz e segurança.
A explicação está dada no texto: o Ocidente, livre, democrático, alberga dentro de si e, mesmo, acarinha aqueles que, se tivessem poder, o destruiriam. Os que acham que só merecem viver os que pensam como eles. Os que acham que assassinos são os que defendem a liberdade e não os que dela querem servir-se para assassinar e impor a opressão, seja religiosa ou política.
Bem hajas Nuno por escrever, com a elevação com que o fazes, aquilo que muitos pensam mas temem dizer.
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De Nuno Castelo-Branco a 09.01.2009 às 18:51

João, bem sabes que tenho receio de poucas coisas. E então desta verdade, muito há para dizer, então não se "deva". Tudo isto me cheira a uma mescla de cobardia (França), interesse (dinheiro do petróleo) e ignorância (geral). Nada de novo. Obrigado pelo comentário. Apenas aproveitei para contar uma história absolutamente verídica ocorrida no já distante ano de 1973. Num mundo para sempre perdido.
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De Nuno Castelo-Branco a 09.01.2009 às 23:10

dizia, ... embora não se deva.

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