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O Domingo é geralmente reservado para o almoço em casa dos meus pais, ficando a tarde para um passeio nos mercados de velharias ou longas conversas na sala. Há sempre alguém que aparece para o lanche, cumprindo-se assim uma rotina que connosco veio de Moçambique.
Dias há em que a política é o sacramental motivo para furibundas discussões, confirmando fidelidades partidárias, dissecando-se as notícias do momento ou conjecturando acerca daquilo que um preocupante futuro nos reserva. No entanto, hoje foi uma daquelas tardes de recordações de momentos, onde o insólito e o pitoresco oferecido por um certo tipo de gente habituada a outros costumes, chocou uma vizinhança habituada a bons dias sem resposta audível, mas com curtos e enigmáticos assentimentos cranianos ou a meios sorrisos que denotavam um protocolar frete ou a aborrecida europeia e lusitana timidez.
O meu pai falou-me naquele grande corno de cudo, hoje pendurado na varanda da casa em Caxias. Espécime de espantosa beleza e robustez, o cudo era um dos alvos favoritos desta subespécie de caçadores-recolectores tardios que de espingarda em riste, procuravam regressar a casa com estórias de suspeitos heroísmos numa selva controlada a ponto de mira e cartuchos de caça grossa. Enfim, sei que aquele corno de cudo sempre esteve lá em casa e faz parte do património familiar.
Relembrando o uso que o Miguel e eu lhe dávamos em África, fazíamos dele trombeta de guerra, nas nossas brincadeiras de cruzados à conquista de Lisboa ou de peões de Aljubarrota. Quantos arranhões, nódoas negras ou contusões, mercê de confrontos com amigos que ao fim de dez minutos se tornavam pela força da adrenalina, em ferozes e momentaneamente implacáveis adversários. O corno do cudo era uma preciosidade que soava para dar instruções ou como simples som de alerta.
Pois bem, o meu pai trouxe como curiosidade da nossa adolescência, um episódio que de tanto ser repetido se banalizou, levando a minha prodigiosa memória - modéstia à parte -, a olvidá-lo.
De facto, andava ele a preparar com o seu amigo dr. João Soares - esse mesmo que todos conhecemos - a reedição das Memórias de Bulhão Pato e invariavelmente, marcavam as reuniões de trabalho em casa do dirigente socialista. Vivíamos a uns dois centos de metros, mas do lado exactamente oposto do parque, tendo a piscina municipal do jardim do Campo Grande, interpondo-se entre as residências. Chegando a hora do almoço, a minha mãe convocava o meu irmão e pedia-lhe para chamar o nosso pai. Lá ia o Miguel para a varanda do 4º andar e com o corno fazia atroar nos ares o velho chamamento africano, pelo que o pai lá regressava a casa para o repasto. Isto, para grande espanto dos vizinhos e gáudio dos nossos amigos. Outros tempos, nos anos oitenta, quando o telemóvel ainda fazia parte da ficção científica. Garanto-vos que o som é impressionante, potente e estranho, mas bem digno da imagem que retemos dos filmes de Cecil B. DeMille. E creiam-me que era audível a muito considerável distância, pois cheguei a escutá-lo um dia, quando sentado na escadaria da faculdade de letras, expliquei a embasbacados colegas, a razão do meu repentino riso.
E hoje lá o experimentei outra vez, soprando o corno com força e voltando por breves momentos a um outro tempo e ao inconfundível som que afinal posso fazer soar sempre que me apetecer.