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Nos últimos dias, recebi alguns e-mail "circular", onde é solicitada a minha adesão a um abaixo-assinado contra a edificação de um novo Museu dos Coches. Como obrigatória regra inerente à participação cívica - um dever entre nós bastante desprezado -, contribuo modestamente para protestar contra aleivosias e atropelos vários, onde a gestão danosa do património o conduz a um fim inglório e desnecessário. No entanto, desta vez não o farei.
O Museu dos Coches consiste na principal jóia museológica nacional, dada a espantosa quantidade e qualidade de viaturas ali expostas. Miraculosamente sobreviveram a um terramoto, invasões, várias revoluções e principalmente, à atávica indiferença que as entidades oficiais sempre manifestam quanto à preservação de um passado muitas vezes extravagante, mas nem por isso menos demonstrativo daquilo que fomos. Ao contrário das destruições e queimadas que reduziram a carvão as carruagens das cortes de Versalhes ou de S. Petersburgo, Portugal contabiliza uma colecção absolutamente extraordinária e sem par. Viaturas que percorrem três séculos de evolução técnica e artística, sendo de salientar o facto de muitas terem participado em importantes acontecimentos da nossa história, ainda se encontram em razoável estado de conservação, para deleite dos visitantes que ao Museu acorrem.
Fundado mercê da teimosa insistência da benemérita rainha D. Amélia, a própria inauguração do Museu dos Coches consistiu num verdadeiro acontecimento sem precedentes em Portugal, dada a sempre avara renitência das autoridades políticas, a profundamente imbecil indiferença da inteligentsia da época e a dificuldade na concepção do próprio espaço de exibição permanente da enorme colecção disponível. D. Amélia porfiou e conseguiu realizar o projecto e apesar de algumas pequenas modificações, o Museu é sensivelmente semelhante àquele que abriu portas em 1905.
O maior serviço prestado pela sua existência oficial, consiste sobretudo, nesse mesmo acumular e conservação das carruagens que de outra forma há muito teriam desaparecido,tal como aconteceu a tantas outras colecções portuguesas.
O actual Picadeiro Real transformado em armazém de um precioso espólio de talha dourada, é apenas isto e pouco mais. Diria mesmo tratar-se de uma simples "garagem" de viaturas fora de uso, praticamente empilhadas num cenário deveras encantador, mas totalmente contrário ao destaque que a maior parte das peças merece. É quase impossível proceder a uma visita de forma criteriosa, pois os estilos e modelos que evoluíram ao longo dos tempos surgem de forma heteróclita, num reduzidíssimo espaço, deficiente iluminação e patética organização que apenas imita de forma bastante ténue, aquilo que deverá ser um verdadeiro Museu. A solução encontrada pela soberana fundadora consistiu antes de tudo, no profundo desejo em conservar, não desprezando intuitos pedagógicos e coincidentes com a sua multifacetada personalidade, sempre disposta a trazer para Portugal, as "novidades" de uma época moderna que teimava em não chegar.
Hoje temos o dever de prosseguir o caminho em boa hora encetado pela rainha. É indispensável uma criteriosa catalogação de todas as viaturas - incluindo as de Vila Viçosa, cuja ausência mutila gravemente o todo - e a organização do espaço de exposição, que julgo dever ser repensado na forma de um projecto mais vasto e didáctico, com o regresso de aspectos complementares à vida das próprias carruagens, como o vestuário de época, os ofícios relativos à construção daquelas, pequenos espectáculos multimédia e porque não?, a extensão da colecção a algumas das viaturas motorizadas utilizadas pela Corte e que ainda existem algures em Portugal. Este é um maravilhoso museu do bom gosto da monarquia portuguesa, cujas preferências estéticas foram evoluindo ao longo do tempo, adequando-se à moda e à inovação técnica.
Tão relevante para a compreensão da história é a carruagem de Filipe II, como as espectaculares viaturas de aparato de D. João V e de D. José. Se os coches de passeio, belos e de uma discreta riqueza, evocam a vida quotidiana da família real, temos por exemplo, o modesto landau do Regicídio que por sinal, é sem dúvida e a par da chamada Carruagem da Coroa, o veículo politicamente mais importante da nossa história. Se existir vontade das autoridades na persuasão do mecenato, poder-se-ão até incluir elementos - boas cópias - dos adereços presentes na Aclamação dos monarcas, como bandeiras, o trono, o manto, os símbolos da realeza e uniformes que serviram nas cerimónias oficiais do Estado. O Museu deverá ser visto como um todo explicativo das várias épocas que a colecção integra.
Os coches merecem bem um novo espaço, melhor organizado e exclusivamente concebido para uma grandiosa exposição, única no mundo. Será igualmente desejável que a absurda regra imposta pela tutela quanto à recolha e gestão do dinheiro dos ingressos seja revista, de modo a que uma política de rigoroso restauro tenha início. Desejo até que a maioria das viaturas possa um dia encontrar-se numa situação de operacionalidade. As razões para tal são óbvias.
Creio que o maior óbice quanto ao novo edifício a construir, consiste no aspecto arquitectónico do mesmo, que inevitavelmente terá de ser contemporâneo. Embora não me manifeste como grande entusiasta dos figurinos plasmados no CCB, Torre do Tombo ou Expo, há que reconhecer que este novo Museu, consiste numa boa oportunidade para criar um marco visível e prestigiante para Portugal.
A escassos meses da comemoração da golpada subversiva que roubou Portugal a um destino sem dúvida mais progressivo e conforme a sua História, a edificação de um novo Museu dos Coches é a maior homenagem que o povo português pode prestar à rainha D. Amélia. Arrisco mesmo em afirmar que para a maioria silenciosa, tratar-se-á de um necessário exorcismo ao 5 de Outubro de 1910. Aproveitemos a momento em que no desespero de causa, a própria república é pelos seus comemorada, recorrendo aos símbolos da monarquia portuguesa.