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Primitivismo

por Samuel de Paiva Pires, em 30.06.09

 

(imagem "roubada" ao João Gonçalves)

 

O João Gonçalves, que tenho o hábito de ler diariamente, apesar do estilo de análise demasiado personalista e pouco holística, estrutural e abstracta em relação ao estado de coisas a que chegámos, mas que pelo corajoso e livre espírito que detém e que o tornam num exemplo de combate e resistência contra a dormência em que vivemos merece a maior das considerações, julga poder aferir-se o primitivismo dos portugueses pelo facto de 40% destes concordarem com a tortura como método de combate ao terrorismo.

 

Não sendo, obviamente, a favor da tortura indiscriminada sobre indivíduos inocentes ou sobre os quais não existem provas das acusações de envolvimento em actividades terroristas, e sabendo-se da existência de diversas Convenções sobre o tratamento deste tipo de suspeitos, Convenções essas que pouco mais fazem do que propagandear os Direitos Humanos - sem correspondência prática (sempre a falta de autenticidade e de correspondência entre o discurso e a prática de que fala o Professor Adriano Moreira) pois não há acordo sobre o que esses são e a haver um eventual acordo corre-se o risco  de incrementar o que Robert Kagan considera como a constante ingerência nos assuntos internos de estados soberanos (O Regresso da História e o Fim dos Sonhos), eventualmente fazendo perigar a ordem mundial tal como já escrevi aqui, não deixando no entretanto de nos providenciar anedotas como esta -, não posso deixar de considerar que em determinados casos, e comprovado o envolvimento dos indivíduos em actividades terroristas, a tortura pode acabar por ser um método justificável e inclusive necessário in extremis. Só quem não está por dentro dos segredos de estado  e da realidade pura e dura das questões de terrorismo internacional - eu obviamente não estou, mas sou um realista e pessimista antropológico no que diz respeito às relaçoes internacionais - pode considerar o contrário.

 

Barack Obama e o seu director da CIA, Leon Panetta, são a evidência mais crua de que a realidade se sobrepõe aos moralismos e idealismos, wishful thinking de um punhado de militantes e alegados arautos da bondade, muitos deles manipulando factos históricos a seu bel-prazer para esconder o que eram as fomes, gulags e campos de concentração, outros tantos defendendo o multiculturalismo mas só no que lhes interessa (bem de acordo com os seus double standards), acabando por defender oprimidos terroristas que, a título de exemplo, só querem exterminar uma nação inteira - é só atentar nas louçanadas bloquistas e de outros que tais que passam a vida a defender os simpáticos senhores do Hezbollah ou do Hamas.

 

A questão central deveria recair sobre o ónus da prova, isto é, efectivamente considerar-se que todo e qualquer indivíduo é inocente até prova em contrário, e não partir da presunção de culpa que parece ter constituido o mote da detenção de muitos dos prisioneiros em Guantanamo. É ainda necessário não deixar ao livre arbítrio de meros soldados a decisão sobre o recurso a métodos de tortura - o que se passou em Abu Ghraib é execrável e inqualificável -, e utilizá-los apenas quando se encontrem reunidas e verificadas determinadas condições restritas que garantam o carácter de excepcionalidade do recurso a estes métodos.

 

A vida não é um mar de rosas e a sociedade internacional muito menos. O Estado ainda detém o weberiano monopólio da violência legítima e possui como atribuição fulcral o providenciar a segurança aos seus cidadãos. Se isso implica recorrer a métodos de tortura para desmantelar células terroristas e evitar atentados que matam centenas ou milhares  de inocentes (em analogia poder-se-á considerar tal como uma legítima defesa preemptiva) - leia-se Fareed Zakaria em O Mundo Pós-Americano explanar sobre a eficácia das medidas de combate ao terrorismo internacional no pós 11 de Setembro -, então eu prefiro continuar a ser um primitivo de acordo com o padrão de julgamento moral do João Gonçalves. No dia em que todos os seres humanos forem naturalmente bondosos, em que cristãos, judeus, muçulmanos, ateus e todos os povos do mundo convivam pacificamente entre si e não se prestem a atentar contra a vida de outros através de actos terroristas, serei o primeiro a opor-me ao recurso à tortura. Até lá, primitivo, pessimista e realista continuarei. Eu e mais umas quantas centenas de milhões de pessoas no planeta, Barack Obama incluido.

publicado às 20:02


6 comentários

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De Tiago Moreira Ramalho a 30.06.2009 às 21:17

Samuel,

Apenas comento para dizer que discordo e para alertar desde já para a iminência de uma resposta. Provavelmente amanhã, com calma e ponderação.

Sabe, o Maquiavel não tinha assim tanta razão: os fins não justificam os meios.
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De Samuel de Paiva Pires a 30.06.2009 às 21:21

Nem eu esperava que concordasses Tiago :) (que tal tratarmo-nos por tu?) Fico a aguardar a resposta, até porque já sei que toda a gente me vai cair em cima, talvez até mesmo por aqui entre os membros do ES.

Um abraço
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De Tiago Moreira Ramalho a 30.06.2009 às 21:24

Acho óptima ideia a mudança de tratamento.

Sei bem o que é isso de esperar, antes mesmo de publicar o texto, que nos caiam em cima por causa dele. Por isso até te louvo a coragem de ser politicamente incorrecto. No entanto, e apesar disso, não deixo de discordar ahah

Abraço
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De Samuel de Paiva Pires a 30.06.2009 às 21:27

E já sabes como eu gosto de uma boa discussão! Fico à espera!
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De filipe canas a 01.07.2009 às 01:26

Samuel,

Existe uma certa dose de pessimismo antropológico no realismo, mas equiparar o realismo a pessimismo antropológico é extremamente redutor.

Mas isso depende claro de que realista estivermos a falar. Desde o 11 de Setembro que grande parte da academia realista tem sido contra as políticas norte americanas e nunca ouvi nenhum deles defender o uso da tortura (deve ter havido um ou outro, mas não é esse o cavalo de batalha deles).

Além do mais, se olharmos para Hans Morgenthau, que é indiscutivelmente o grande autor realista da segunda metade do século XX, arrisco a dizer que ele nunca advoga o uso de tortura. Como nenhum realista advogaria o assassinato político como meio de alcançar os objectivos da política externa.

Ficaria por isso agradecido se esclarecesse que realismo perfilha.

Cumprimentos,

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De Samuel de Paiva Pires a 01.07.2009 às 02:18

Caro Filipe,

Eu não disse que os realistas defendem o recurso à tortura. Aliás, muitos defendem precisamente o contrário por considerarem que confissões obtidas com o recurso a violência física podem não ser fidedignas e tais actos podem inclusive ser contrários ao interesse nacional.

Quando eu digo que sou realista estava a pensar essencialmente no carácter não normativo e amoral da generalidade dos realistas. Para além de que não havendo um actor supranacional que constranja os Estados, sendo o Estado a principal unidade de análise, é natural para o realismo que por vezes os Estados ultrapassem os limites impostos pelo Direito Internacional Público - é a power politics no seu esplendor.

Provavelmente não verá nenhum realista a defender explicitamente o recurso a métodos de tortura, mas é preciso ter noção das limitações do realismo (embora por exemplo Linklater ou Seumas Miller tenham promovido algum debate sobre este tema),que, tal como referi e como o Filipe sabe, se foca essencialmente nas relações inter-estaduais. É preciso por isso recorrer por exemplo ao Professor Adriano Moreira ou ao Professor Sousa Lara para perceber que na actual conjuntura há uma série de novos actores que o realismo tradicional não considera, tais como os poderes erráticos de que fala Adriano Moreira, onde se inserem os grupos terroristas. E se existe uma guerra ao terrorismo, se de facto estamos em guerra, porque não recorrer a Bull que considerava a guerra como uma instituição internacional? Assim sendo, há que adequar todos os métodos para esta nova guerra e a tortura pode eventualmente ser justificável, ainda que moralmente errada - omiti o tipo de tortura a que me referia, pelo que lhe sugeria que lesse ainda o meu post mais recente (Primitivismo 2).

Só para finalizar, o que é que pode ser mais realista do que a acção de Obama e Panetta (um dos maiores críticos das práticas de tortura) quando tomaram posse e enfrentaram a realidade?

Cumprimentos

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