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Primitivismo (2)

por Samuel de Paiva Pires, em 01.07.09

 

Tinha pensado aguardar a réplica do Tiago Moreira Ramalho para depois aprofundar o assunto respondendo também ao João Gonçalves. No entanto, como afazeres académicos me ocupam a mente e não gosto de deixar questões pendentes, decidi apenas trazer à colação alguns pontos que podem contribuir para esta discussão sobre o recurso a métodos de tortura com vista a combater o terrorismo.

 

Desde já, dizer que não sigo as opiniões e escritos de Ana Gomes, por razões óbvias. Quanto a Rorty, confesso que pouco conheço o pensamento deste, embora como saberá quem habitualmente me lê, tenha uma certa inclinação para o relativismo e para a irreverência, o que acabou por caracterizar a vida de Rorty. E obviamente que sendo eu um humanista por definição, parece-me bastante acertado o ensinamento deste de que um acto cruel é o pior que um ser humano pode cometer,  embora seja possível admiti-lo em determinadas circunstâncias - o que não ficou claro no meu post anterior é que me referia a actos de tortura psicológica, de que mais adiante falarei. Claro que partindo de um ponto de vista relativista isto pode ser interpretado abusivamente e degenerar em "rousseaunices" - e tal como notou Isaiah Berlin, Rousseau foi o maior inimigo da liberdade e inspirou os totalitarismos, que obviamente abomino e considero execráveis -, pelo que não é de admirar o carácter polémico das interpretações de Rorty. Leituras e estudos mais aprofundados são uma necessidade para que possa falar sobre tal com propriedade, pelo que assumindo que "só sei que nada sei", como diria Sócrates (o filósofo, claro), prefiro escusar-me a entrar por aí e falar apenas sobre o pouco que eventualmente sei. Também me escuso para já a falar sobre os ensinamentos do Professor Adriano Moreira ou de outros Professores da casa que orgulhosamente frequento enquanto estudante (o ISCSP), que ficarão para um próximo post. 

 

Assim sendo, começo por esclarecer que uma das razões pela qual sinto uma certa reverência pelo papel que a Monarquia representou na nossa História, consiste no facto daquele regime ter sabido acompanhar as grandes correntes de pensamento ao longo dos séculos e como dizia Eça - plenamente correspondido por Herculano, Garrett, Camilo, Antero ou Castilho -, a Monarquia portuguesa cumpriu plenamente todo o programa liberal, isto é, a adequação do edifício constitucional-legislativo português, ao seu tempo. Entre muitas medidas que considero progressistas, estão o fim da tortura física e a abolição da Pena de Morte, esta última, pioneira em todo o mundo. De facto, a tortura física deixou de existir pelo menos até 1910 e a instauração do regime da I República trouxe um sem número de punições vexatórias, espancamento, confissões forçadas em sede de policia e toda uma violência urbana que não podendo ser considerada per se como tortura, era contudo muito próxima desta, dada a evidente coacção moral permanente que geralmente degenerava no crime contra a integridade física da vítima (a título de exemplo vejam este artigo, ou ainda este).

Por outro lado, já a II República, mais conhecida por Estado Novo, tem um capítulo importante reservado a um certo tipo de práticas reiniciado em Portugal pelos Formigas Brancas e que culminou nas actividades da PVDE/PIDE/DGS. O João Gonçalves é um assumido admirador de Salazar, sem que isso queira dizer partilhar do mesmo ponto de vista que o presidente do Conselho perfilhava, ou seja, os tais "bons safanões dados a tempo", que redundaram naquilo que se sabe e de que já tantas vezes por aqui escrevi em análises ao Estado Novo. Esse foi obviamente o ponto fraco do regime que aliás, vulgarizou o recurso à confissão forçada pelos tais safanões a tempo.

Também na II República e com a guerra do Ultramar, em África as autoridades enveredaram pelo tal tipo de "tortura" a que me queria referir e que infelizmente omiti por descuido. Consistia na chamada "acção psicológica" e no campo mais vasto da acção junto das populações, a "acção psico-social", de matriz nitidamente norte-americana (experimentada no Vietname, por exemplo), com o abundante  recurso ao diálogo, administração de substâncias  destinadas "a soltar a língua" e que deixavam o acusado fisicamente incólume. Muitas vidas se salvaram desta forma, tanto da parte daqueles que eram o objecto da subversão, como dos próprios acusados. É certo que isto não pode coincidir com a chamada lavagem ao cérebro de que os soviéticos foram entusiastas, pois pressupõe sequelas a longo prazo. Agora, o que há a discutir é a verdadeira hipótese que o nosso "mundo livre" terá para se defender, se acima dos extensos articulados referentes aos Direitos, não existirem outros que permitam a própria defesa daqueles. O recurso à acção psicológica é assim legítimo, escusando-se pelo contrário, tal como referi anteriormente, o deplorável espectáculo oferecido pelas imagens de mero divertimento sádico em Abu-Ghraib, decerto mais próprias de diversões sexuais a que os carcereiros se ofereciam e que nada tinham que ver com uma política deliberada por parte dos superiores.


O que o Ocidente não poderá tolerar, sob a pena de completo afundamento diante da subversão, é o sentimento de impunidade de quem todos os dias atenta contra a segurança geral do Estado, logo das gentes, em nome de pretextos  exógenos à nossa sociedade. O caso do Reino Unido é paradigmático. Os terroristas deverão ter a plena consciência de que não ficarão impunes e isto servirá de dissuasão, pois a própria ideia de em caso de captura ser forçado a delatar sem sequer sofrer violência física - evitando o chamado "martírio" -, pode ser fundamental.

publicado às 00:41







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