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Aqui há uns dias adquiri pela módica quantia de € 2,5 por livro algumas obras editadas em 2004 pelo extinto jornal "O Independente", ali na mini feira do livro da estação de metro do Marquês. Uma das obras dá pelo nome de Outra Opinião e reúne alguns ensaios de História da autoria de Rui Ramos. Logo no primeiro, "O Fim da História", pode-se entender aquilo que percebi quando no 2.º ano da licenciatura tive um semestre da cadeira de Ciência Política dedicada aos regimes políticos portugueses desde as invasões napoleónicas. Então, como hoje, e como escreve Rui Ramos, já pensava que para perceber o Portugal dos nossos dias, nada melhor do que começar por estudar muito bem o fenómeno do liberalismo em Portugal no século XIX. Aqui ficam dois parágrafos deste ensaio, simplesmente deliciosos. Qualquer semelhança com a realidade actual deve ser pura coincidência.
"Os liberais destruíram as formas tradicionais de autogoverno local e construíram um estado centralizado em Lisboa, no qual arranjaram emprego como funcionários: em 1890, 53 por cento dos deputados eram empregados do estado. As classes preponderantes na província, dos padres aos lavradores ricos, foram integradas na ordem política através dos negócios e favores proporcionados pela administração. O «progresso» liberal pôde assim ser decretado no Terreiro do Paço, e levado às aldeias pelos administradores de concelho, com o apoio da tropa quando necessário.
(...)
A tolerância liberal, porém, não traduzia um verdadeiro respeito pelo pluralismo. Para os liberais mais numerosos, em geral de esquerda, era preciso ser moderno, e só havia uma maneira de ser moderno, que era a deles. A diversidade de modos de vida provinha apenas de erros que deviam e podiam ser corrigidos. Os liberais recusaram-se a aceitar os portugueses tal como eles eram: quiseram-nos fazer ser como os ingleses ou os franceses. Por isso, nunca se contentaram com o simples estabelecimento de uma ordem jurídica.
A tese de que os liberais tiveram problemas porque não cuidaram do povo nem o quiseram integrar na ordem política não é correcta. A verdade é o contrário. Nos meados do século XIX, os liberais propuseram-se construir as infra-estruturas do progresso, das escolas aos caminhos de ferro. Portugal foi um dos primeiros países da Europa onde o estado declarou a escolarização primária gratuita e obrigatória. Em 1878, os liberais reconheceram o direito de voto à maior parte da população adulta masculina. No fim do século, muitos liberais já se consideravam abertamente «socialistas». Não quer isto dizer que desejassem estabelecer qualquer sistema colectivista, mas que resistiram cada vez menos à ideia de recorrer ao poder do estado para propiciar transformações sociais e de mentalidades. Na sua ânsia de melhorar a condição do povo, prepararam-se mesmo para desrespeitar o direito de propriedade. Por tudo isso, atormentaram-se muito quando constataram que o povo, desconfiado de um estado professoral e intrometido, não ia às escolas, faltava às eleições, resistia ao cumprimento dos deveres fiscais e militares, e insistia em manter-se fiel àquilo que, para os liberais, eram «superstições» e «fanatismo religioso». Resolveram ser ainda mais zelosos. O activismo liberal, desde meados do século XIX, agravou o já crónico endividamento do estado, com as correspondentes ameaças de inflação e bancarrota, e reforçou a associação ao poder político de grupos de interesse, apostados em viver das obras públicas e da protecção estatal. O país dos funcionários públicos, numerosos e lamurientos, e dos contratadores de obras públicas, enriquecidos e corruptos, já existia no século XIX." (pp. 20-22).