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Os coretos podem ser interpretados como uma criação da civilização burguesa europeia e liberal. Ao povo eram proporcionados concertos por bandas filarmónicas militares ou de agremiações cívicas, neles se interpretando a grande música de então. Cultivava-se o gosto e democratizava-se o acesso ao que de melhor existia. Há um pouco mais de um século, vendedoras de canastra à cabeça trauteavam árias da Traviata e nos mercados era comum escutar-se o diálogo cruzado entre Felisminas e Conceições, comentando o concerto de Domingo, oferecido à população pela banda X no coreto do Jardim da Estrela. Lá estavam famílias inteiras, acompanhadas pelo inevitável farnel. Falava-se, ria-se, ouvia-se música e no fim, todos se levantavam respeitosamente para entoar o lindíssimo Hino da Carta. Era assim, a Lisboa de oitocentos.
Recordo-me perfeitamente de ter assistido a algumas sessões musicais no velho coreto da Praça José Fontana, mesmo diante do então prestigiado e muito elitistamente povoado Liceu de Camões. Dada a distância relativamente ao Campo Grande onde morávamos, fomos muitas vezes a pé, naqueles passeios de tarde de Domingo, parando no Galeto para comprar um gelado Olá - talvez o Super Maxi - e logo, sentados diante do coreto, ouvíamos o repertório escolhido. Umas bandas eram inevitavelmente superiores a outras e as nossas preferências iam geralmente para as das Forças Armadas, exuberantemente ruidosas na estridência dos metais e que nos empolgavam sempre que executávamos qualquer marcha militar nossa velha conhecida.
Com o tempo e o progressivo enraizamento da mentalidade pequeno burguesa de um consumismo de imitação, as bandas foram sendo conotadas com o gosto dos pacóvios, bimbos e matarruanos de província. A assistência foi envelhecendo e escasseando, pois os mais novos adoptaram outras formas de entretenimento e manifestação de uma bastante ínvia modernidade. As bandas deixaram de se apresentar em público, reservando-se para certas datas da localidade onde se encontram sediadas. Sem música, sem espectáculo garantido e sobretudo, sem o necessário suporte dado pela desaparecida educação musical escolar, chegou ao fim mais um dos testemunhos daquele Estado liberal que apesar de tudo, tanto fez pela adequação do nosso país a uma Europa onde a participação cívica se confunde com a solidez das instituições. Bandas e coretos existem e existirão na Inglaterra, Holanda, Suécia, Bélgica, na Áustria e na generalidade dos países da Europa central e do leste.
O Portugal progressista e republicanamente moderno da terceira safra do regime, adequou-se à tal fase do espírito Bronx, com intermezzos da nova cultura musical popular, vulgarmente conhecida por pimbismo, onde pontificam vedetas como Toy, Toni Carreira e outros que tais. O pimbismo faz já as honras da casa em qualquer actividade político-partidária dos partidos da esquerda ou da direita, com a já muito ténue nuance de neste ou naquele, se escutarem por vezes, as entarameladas e fanhosas vozes de luta, dos idos do desastre de 1975.
Os coretos, esses, vão sendo arruinados pela grafitagem com o costumeiro personagem barbudo que se exercitava a disparar tiros na nuca dos adversários, enfim, um símbolo de uma certa estupidez militante. Acompanhando a imparável vandalização deste património, lá está a inseparável ferrugem, até que Por Bem, surja a disposição da benemérita Câmara Municipal de Lisboa que consagre a demolição. É esta a república avançada que nos prometeram.