Após o luto, algumas considerações sobre o centenário do regicídio.
Na blogosfera, noto 3 posts de dois dos melhores bloggers portugueses,
Pedro Picoito e
Miguel Castelo-Branco. Quanto ao primeiro,
Os vermelho-amélias, sobre os esquerdalhóides piolhosos que tentaram impedir as comemorações dos monárquicos. Do segundo,
A máquina do esquecimento em si e
O reviralho que não desprega.
Quanto ao que se passou na Assembleia da República enquanto o Presidente da República inaugurava uma estátua de D. Carlos em Cascais, falarei num outro post.
De resto, depois de no blog do
Daniel Oliveira ter colocado um breve comentário, desisti de tentar explicar certas e determinadas coisas. Ser republicano hoje em dia é ser anti-monárquico, recorrendo aos mais pérfidos argumentos como o afirmar que a monarquia promove a desigualdade entre as pessoas, enquanto apenas a república pode promover a igualdade. Mais do que intelectualmente desonesto, é uma incorrecção do ponto de vista filosófico à luz do liberalismo que preside ao actual conceito de monarquia, para além de incoerente quanto ao que se nos apresenta sob o conceito de sociedade.
Para além do mais, será que quem se proclama como republicano hoje em dia acredita realmente nesse argumento? E já agora, do que estamos a falar quando falamos de igualdade? De igualdade perante a lei? De igualdade perante Deus? De igualdade perante a sociedade? De igualdade entre os membros de uma determinada comunidade ou sociedade? De igualdade de riqueza? De igualdade perante o Estado?
Pois é, as pessoas gostam muito de debitar uns argumentos clichés mas esquecem-se que esses não vêm do ar. Esquecem-se que em nome do rigor académico, os conceitos têm que ser operacionalizados e discutidos.
O conceito de igualdade de que os ditos republicanos hoje em dia se socorrem está intrinsecamente ligado à base teórica da Revolução Francesa, ou seja, a Jean-Jacques Rousseau. Para os que não me conhecem, desde já adverto que Rousseau é dos autores da teoria e filosofia política que, dito de uma forma simpática, menos me atrai, não sendo no entanto por isso que deixo de o ler e utilizar conceitos por si formulados. Isto é algo que os ditos republicanos raramente se mostram capazes de fazer, i.e., reconhecer mérito naquilo de que discordam. Eu, sendo convictamente monárquico, não deixo de me sentir republicano, reconhecendo o que este tipo de regime trás de positivo, embora continue com o ideal de juntar o melhor dos dois tipos de regime, na acepção de Políbio e Cícero de que os melhores regimes são os regimes mistos.
Bom, para começo de conversa, Rousseau na sua obra mais conhecida, o Contrato Social, formulou uma ideal tendência com vista a uma progressiva igualdade entre os homens que saem do estado de natureza e se associam através de um pacto, formando uma sociedade. No entanto ele próprio começou por estatuir nessa obra o seguinte:
A família é portanto se o quisermos, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos, e, porque todos nasceram iguais e livres, só alienam a sua liberdade para benefício próprio. A diferença está em que , na família, o amor do pai pelos filhos recompensa-o dos cuidados que lhes presta e, no Estado, o prazer de mandar toma o lugar desse amor que o chefe não tem pelo seu povo.
Assim como os pastores são de natureza superior à dos seus rebanhos, assim também os pastores dos homens, ou sejam, os seus chefes, são de natureza superior à dos seus rebanhos. Raciocinava assim, no testemunho de Fílon, o imperador Calígula; concluindo com justeza desta analogia que os reis eram deuses, ou então que os povos eram animais.
O pensamento deste Calígula reconduz-nos ao de Hobbes e de Grócio. Já Aristóteles, muito antes deles, havia dito também que os homens não são naturalmente iguais, nascendo uns para a escravatura e uns para a dominação.
Relembro ainda que mesmo Platão desconfiava da ideia de igualdade como presidindo ao funcionamento de uma sociedade, de que é exemplificativa a ideia da distinção entre almas de bronze (artesãos), prata (guerreiros), e ouro (magistrados), sendo os magistrados recrutados de entre os melhores guerreiros, bem de acordo com o ideal de vida Espartano.
Prosseguindo, na sua obra, discorrendo sobre a democracia, revela que:
A tomar o termo no rigor da acepção, nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. É contra a ordem natural que o grande número governe e que o pequeno seja governado.
Além disso, quantas coisas difíceis de reunir não supõe este governo? Em primeiro lugar, um Estado muito pequeno em que o povo seja fácil de reunir e em que cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros; em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes que previna a multiplicidade de assuntos e as discussões espinhosas; em seguida, muita igualdade nas categorias e nas fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e autoridade; finalmente, pouco ou nenhum luxo, pois o luxo é o efeito das riquezas ou torna-as necessárias; corrompe ao mesmo tempo o rico e o pobre, um pela posse, outro pela cobiça, vende a pátria à inércia, à vaidade; tira ao Estado todos os seus cidadãos para os sujeitar uns aos outros e todos à opinião.
Ora daqui temos portanto que sem igualdade nas categorias e fortunas, a igualdade nos direitos e autoridade não poderia consagrar-se intemporalmente, que é precisamente o que se passa na nossa sociedade, em que, consequentemente, o luxo enquanto efeito das riquezas corrompe-nos a todos, e portanto, não será difícil para o mais obtuso retirar daqui as devidas ilações: a nossa sociedade não é uma sociedade de iguais, sendo que governantes e governados não são iguais perante a lei e o Estado, há uma série de caminhos em curvas e contracurvas que uns mais espertos do que outros, ou seja, mais ou menos próximos do poder, conseguem percorrer para realizar os seus intentos, desprezando os outros que não lhe são nada, estando muitas vezes o conceito de corrupção associado a esses caminhos, nesse constante verificar da inconformidade do dever ser perante o ser, em que a Constituição da República Portuguesa estatui no Art.º 13 que todos somos iguais e não podemos ser diferenciados, para o bem ou para o mal, mas em que na realidade a uma dada altura sem nos apercebermos, um qualquer porco Napoleão substituiu esse Art.º por um Mandamento na sua quinta dos animais, passando a vigorar que "Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros".
Assim poderíamos observar como sociedades realmente baseadas na igualdade apenas dois tipos: a sociedade comunista, que todos sabemos no que deu, e as sociedades primitivas. Porém, na sociedade comunista nem todos são verdadeiramente iguais, governantes e governados são claramente distintos, e mais do que a economia centralmente dirigida, do ponto de vista da teoria política, é precisamente essa uma das principais causas da sua queda, o acomodar e ilusão de detenção do poder por parte dos governantes, o tal amor que um chefe não tem pelo seu povo. E, feliz ou infelizmente, nem mesmo nas sociedade primitivas há verdadeira igualdade, pois sendo sociedades, implicam uma diferenciação entre os homens. Desta forma, em última instância, a verdadeira igualdade entre os homens só se verifica num estado de natureza, em que reina a lei do mais forte. O conceito de sociedade é portanto incompatível com o conceito de igualdade, na medida em que a sociedade implica competição e essa competição fomenta o desenvolvimento da desigualdade.
E agora poderão os ditos republicanos arguir que estou completamente enganado quanto ao que afirmo no parágrafo anterior. Porém, também Rousseau elaborou um pequeno discurso bastante interessante, que muitos desconhecem, precisamente intitulado "Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os Homens".
Nesta pequena obra, escrita 8 anos antes do Contrato Social, a propósito de um concurso lançado pela Academia de Dijon, Rousseau já afirmava que:
Depois de ter provado que a desigualdade é pouco sensível no estado de natureza e que aí a sua influência é quase nula, resta-me mostrar a sua origem e os seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do espírito humano.
Prosseguindo com um discurso sobre a evolução das sociedades baseado no argumento da divisão do trabalho:
Estando as coisas desta maneira, teriam podido permanecer iguais, se os talentos fossem iguais e o emprego, por exemplo, do ferro e o consumo dos géneros tivessem constituído sempre uma balança equilibrada; mas o equilíbrio, que nada obrigava a manter, bem cedo se perdeu; o mais forte fazia mais trabalho; o mais habilidoso tirava melhor partido do seu; o mais engenhoso encontrava meios de tornar o seu mais fácil; o trabalhador tinha mais necessidade de ferro ou o ferreiro mais necessidade de trigo e, trabalhando os dois igualmente, um ganhava muito, enquanto o outro tinha dificuldades em viver. É deste modo que a desigualdade natural se desenvolve insensivelmente em ligação com o que acabamos de expor e que as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas diferenças de circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes nos seus efeitos, começando a influir na mesma proporção sobre a sorte dos indíviduos.
E conclui que:
Procurei expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades políticas, tanto quanto estas coisas se conseguem deduzir da natureza do homem somente pelas luzes da razão e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito divino. Segue-se desta exposição que a desigualdade sendo quase nula no estado de natureza, vai buscar a sua força e o seu aumento ao desenvolvimento das nossas faculdades e ao progresso do espírito humano e torna-se por fim estável e legítima através do estabelecimento da propriedade e das leis.
Bom, como este post já vai longo, e as horas já vão altas, só para concluir, a igualdade apenas existe em anarquia, num regime de estado de natureza em que vigora a lei do mais forte. Tal como costumo dizer, a monarquia tem tanto a ver com o conceito de igualdade quanto a república.
Portanto, esquerdalhada, quo vadis igualdade?