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Há uns anos aprendi que saber rir de nós próprios, das nossas ideias, valores, crenças ou dogmas representa uma sublime forma de sentido de humor. Aquela que o anti-dogmatismo deixa antever. Recuperando o que introduzi aqui, absolutus significa à solta, ou seja, um Princípe à solta é, na realidade, um poder arbitrário. A justificação dos teólogos medievais para o poder absoluto dos Reis é a Divindade. Ou seja, todos os actos do Rei são justificados porque teoricamente o seu poder advém e está limitado por Deus - daí à solta em relação à realidade terrena. Isto só foi passível de durar séculos porque era aceite como um dogma. Ora eu, prefiro ser um dogmático anti-dogmático, até porque o dogma está sempre associado à intolerância e se há coisa de que um liberal se orgulha é de praticar a virtude da tolerância - bem mais premente no protestantismo, como todos sabemos.
Contudo, não deixo de notar alguma falta de sentido de humor em quem não é capaz de rir do vídeo de George Carlin que aqui deixei. É básico, de facto, e como o Zé de Portugal notou na caixa de comentários, mistura maldosamente Deus, religião e superstição. E talvez o meu post também seja básico. Assim sendo, aqui fica mais alguma filosofia básica. O que se segue faz parte de um ensaio de que já aqui dei conta, há uns meses. Não deixa de ser curioso que, na altura, o Manuel parecesse perceber claramente as diversas concepções de democracia, até aplaudindo o texto que escrevi, onde desconstruí a democracia inspirada em Rousseau. Claro que agora mudou radicalmente de opinião e encontrou na simplificação que faz da democracia - de que é apenas a vontade da maioria - o seu bode expiatório e alvo a abater para justificar o que agora defende. Isto não me parece lá muito Cristão. Na verdade, parece-me de uma verdadeira má-fé e desonestidade intelectual.
Deixo este texto em aberto, terminando com uma referência à Modernidade, pois o próximo texto desta série versará precisamente sobre a Modernidade e a sua relação com Deus.
(John Locke)
As chamadas Revoluções Atlânticas – Inglesa (1688), Americana (1776) e Francesa (1789) – encontram-se na origem daquilo que hoje denominamos por democracia liberal. Na verdade, a democracia liberal e os diversos entendimentos quanto a esta, podem dividir-se em duas grandes correntes, tendo como diferença essencial a forma como encaram o conceito de liberdade, que se encontra no âmago do liberalismo e em torno do qual existem complexas teorizações. Esta distinção permite-nos considerar que, na realidade, não há apenas um liberalismo, mas vários, embora o liberalismo constitua uma única tradição política1.
De um lado, os teóricos que inspiraram os revolucionários britânicos e norte-americanos, em especial John Locke e Montesquieu, respectivamente, convergem quanto ao cepticismo em relação ao exercício do poder, apesar de encararem o governo como um mal necessário, pelo que se preocupam essencialmente em arquitectar checks and balances que actuem como forma de difusão do poder, salvaguardando a liberdade individual da coerção por parte de terceiros, em especial do próprio Estado. Por outro lado, os revolucionários franceses, especialmente os jacobinos, inspirando-se em Jean-Jacques Rousseau e nas noções de bem comum e vontade geral, preferiram subscrever a ideia de soberania popular, em claro contraste com a ideia de governo limitado que é a base da tradição anglo-americana.
Embora se atribua normalmente a origem da democracia ocidental, de cariz liberal, apenas à Revolução Francesa, esta ideia é pouco exacta, como explica João Carlos Espada: “Em primeiro lugar, porque antes da Revolução Francesa ocorrera a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Inglesa de 1688. Em segundo lugar, porque as democracias mais antigas e duradouras inspiraram-se na experiência americana e inglesa, não na francesa. Em terceiro lugar, porque o modelo francês inspirou sobretudo experiências radicais não propriamente democráticas: o republicanismo radical da América Latina e da I República portuguesa (1910-1926), bem como a revolução soviética de 1917”2.
Além do mais, embora as três visassem romper com o absolutismo monárquico e o que comummente se designa por Ancien Régime, os seus objectivos e o tipo de regime que propunham não era o mesmo. De acordo com Espada, “Nos casos inglês e americano, tratava-se de restaurar um governo limitado, fundado no consentimento dos eleitores. No caso francês, tratava-se de substituir o antigo absolutismo monárquico por um novo absolutismo, popular e republicano”3.
A estas duas concepções corresponde o que se pode denominar por liberalismo velho e liberalismo novo, ou liberalismo clássico e liberalismo contemporâneo, respectivamente4.
O liberalismo clássico assenta nos ensinamentos de John Locke, Montesquieu, David Hume, Adam Smith, Alexis de Tocqueville e, no século XX, em teóricos como Hayek, Popper ou Berlin. Foi com John Locke, o teórico da Revolução Gloriosa, que, pela primeira vez, os elementos centrais do liberalismo foram teorizados e articulados de forma coerente. Ao nível da prática, segundo John Gray, o liberalismo inglês compreendia um forte parlamentarismo sob a rule of law, i.e., o que normalmente designamos por Estado de direito, contra o absolutismo monárquico, em conjunto com uma enfática defesa da liberdade de associação e do conceito de propriedade privada, o que dá corpo ao conceito de sociedade civil, “the society of free men, equal under the rule of law, bound together by no common purpose but sharing a respect for each other’s rights”5. Locke acreditava que esta era alcançável por todos os homens, sendo as Revoluções Atlânticas formas de a alcançar e exemplos do combate ao absolutismo e à arbitrariedade6.
Considerando Locke que o primeiro direito de propriedade é o direito de propriedade pessoal, ou seja, a capacidade de podermos dispor de nós próprios, das nossas capacidades e talentos – embora, para Locke, essa liberdade devesse enquadrar-se na doutrina dos direitos naturais, enquanto criaturas de Deus –, há então uma relação inegável entre o direito de propriedade pessoal e a liberdade individual. A característica central e a mais importante contribuição de Locke para o liberalismo inglês é, sem dúvida, a percepção clara de que a independência pessoal e a liberdade individual pressupõem a propriedade privada, protegida pelo Estado de direito7.
Sendo um autor contratualista, à semelhança de Hobbes e de Rousseau, Locke teoriza a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade com base num pacto social, a que os homens aderem renunciando ao “seu poder de executar a lei natural”, visto que a “cláusula fundamental do pacto social está na renúncia ao direito de reprimir as infracções à lei natural”, tendo ainda o pacto como característica essencial o reconhecimento de um “poder de coacção, independente e superior, encarregado de reprimir as violações da lei”, assim evitando que cada qual faça justiça pelas próprias mãos, como é apanágio do estado de natureza8.
Ou seja, para remediar o estado de natureza, é necessário um acordo, pacto ou contrato que crie primeiramente uma sociedade independente e, posteriormente, uma associação civil ou governo. Importa realçar a ordem em que se dá a formação destes dois elementos, pois só assim se torna claro que o poder é conferido aos governantes a partir dos indivíduos, com o propósito de prosseguir os interesses dos governados – no fundo, Locke introduz o que viria a ser teorizado como conceito de representatividade política9.
Para Locke, a actividade política é um instrumento que visa criar um enquadramento e condições de liberdade para que os fins privados de cada indivíduo possam ser alcançados na sociedade civil. O governo é um mal que os indivíduos têm de suportar para assegurar que isto seja possível, e o pacto que leva à sua criação torna os indivíduos em cidadãos e confere-lhes liberdade e responsabilidade, direitos e deveres, poderes e constrangimentos. Sendo os indivíduos, em última análise, os melhores juízes dos seus próprios interesses, as áreas de actuação do governo têm que ser restritas e o exercício do poder constrangido, para permitir o maior grau de liberdade possível a cada cidadão10. Esta é também uma característica central na distinção entre os dois liberalismos.
Para além de articular as concepções de liberdade, sociedade civil, justiça e Estado de direito, Locke dá às instituições liberais as suas bases técnicas, esboçando os modernos regimes contemporâneos, ou seja, a monarquia constitucional, o parlamentarismo e o presidencialismo11. Feroz inimigo de qualquer dominação absoluta, introduz o princípio da separação de poderes, ou melhor, teoriza com maior rigor aquilo que já Aristóteles havia distinguido – a deliberação, o mando e a justiça. Para Locke, há três domínios de acção: “o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela administração e pela justiça; e (..) o das relações internacionais, o poder «federativo»”12.
Além do mais, é necessário que não sejam os mesmos indivíduos a elaborar e executar as leis. Ao parlamento caberá o poder legislativo e a outras instituições o poder executivo. Finalmente, a separação em três poderes reverte, na prática, a dois, já que o federativo se junta ao executivo, no que concerne à condução das relações externas13.
Convém, no entanto, notar que apesar de Locke ser considerado um precursor da democracia liberal, esboçando muitos dos aspectos que se viriam a tornar centrais nesta, como sejam os direitos individuais, a soberania popular, a regra da maioria, a separação de poderes, a monarquia constitucional e a representatividade por via de um sistema de governo parlamentarista, estas ideias se encontram no seu pensamento de forma ainda algo rudimentar14.
(Montesquieu)
Vai ser Montesquieu quem desenvolve algumas das inovadoras ideias introduzidas por Locke. Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, considera-se discípulo de Locke e do constitucionalismo britânico, mas também sucessor do tradicionalismo aristocrático. Para Prélot e Lescuyer, sendo um agregador destas duas confluências, Montesquieu é “talvez o mais temível adversário do absolutismo, porque é o mais realista. A melhor maneira de enfraquecer o poder, no interesse da liberdade individual, não é transferi-lo (como depois proporá Rousseau), mas partilhá-lo”15.
Esta partilha de poder dá-se por duas vias, ou num sentido vertical ou num sentido horizontal. Na primeira acepção, criam-se corpos intermédios entre governantes e governados, ao passo que, na última, separa-se o poder em três diferentes poderes, o legislativo, o executivo e o judicial – este último introduzido por Montesquieu –, que criam um sistema de checks and balances, ou seja, servem de peso e contrapeso entre si, complementando-se mas vigiando-se e fiscalizando-se mutuamente16.
Embora a sua interpretação da constituição Inglesa, que considerava como um espelho da liberdade, tenha sido alvo de muito criticismo, não impediu que a sua obra-prima, O Espírito das Leis, alcançasse rapidamente um sucesso retumbante, tendo tido uma grande influência no pensamento dos Founding Fathers dos EUA.
Montesquieu preocupou-se essencialmente em responder à questão sobre como garantir um governo representativo que assegure a liberdade e minimize a corrupção e os monopólios advindos de privilégios inaceitáveis. A sua resposta vai no sentido de um Estado constitucional, que mantenha a lei e a ordem, como forma de assegurar os direitos dos indivíduos17, recaindo a sua preferência, naturalmente, sobre o sistema da monarquia constitucional britânica. Relacionando o governo monárquico com um sistema de checks and balances, segundo David Held, acabou por rearticular as preocupações republicanas e liberais sobre o problema de unir os interesses privados e o bem público, arquitectando institucionalmente a forma como estes interesses se devem relacionar sem sacrificar a liberdade da comunidade18.
Para Montesquieu, o Estado deve organizar-se de forma representativa, ou seja, deve formar-se um regime misto onde monarquia, aristocracia e povo se encontrem representados. E, partindo da sua famosa citação de que “every man invested with power is apt to abuse it, and to carry his authority as far as it will go”19, reforçou o princípio da separação de poderes, argumentando que a liberdade só pode ser assegurada através de uma cuidadosa e equilibrada separação institucional de poderes dentro do Estado. Esta institucionalização visa, por um lado, impedir a centralização de poder, e, por outro, despersonalizar o exercício do poder político20.
A grande contribuição de Montesquieu para a teoria e prática da democracia advém precisamente de uma concepção bastante realista da natureza humana e da forma como esta influencia a política. Alicerça-se na ideia de que os indivíduos são ambiciosos e colocam os seus interesses privados em primeiro lugar nas suas respectivas escalas de valores, pelo que só as instituições criadas cuidadosamente podem converter esta ambição em efectivas boas práticas de governação. Institucionalizando a separação de poderes e criando formas para que os diferentes grupos se manifestem e confrontem – precedendo o que Raymond Aron teorizaria como institucionalização do conflito – Montesquieu originou um arranjo político que viria a ser extremamente valorizado pela Modernidade: a divisão entre as esferas pública e privada da vida em sociedade21.
1 - Cfr. John Gray, Liberalism, 2.ª Edição, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p. xiii.
2 - Cfr. João Carlos Espada, “Dois conceitos de democracia” in i online, 30 de Maio de 2009. Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/6601-madison-e-rousseau-dois-conceitos-democracia. Consultado em 22/11/2009.
3 - Cfr. Idem, ibidem.
4 - Cfr. João Carlos Espada, “A tradição da liberdade e a sua memória: razão da sua importância” in João Carlos Espada, Marc F. Plattner e Adam Wolfson, eds., Liberalismo: o Antigo e o Novo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p. 17.
5 - Cfr. John Gray, ob. cit., p. 13.
6 - Cfr. Idem, ibidem, p. 15.
7 - Cfr. Idem, ibidem, p. 14.
8 - Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, História das Ideias Políticas, Vol. 2, Lisboa, Editorial Presença, 2000, p. 39.
9 - Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 63.
10 - Cfr. Idem, ibidem, p. 64-65.
11 - Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, ob. cit., p. 42.
12 - Cfr. Idem, ibidem, p. 43.
13 - Cfr. Idem, ibidem, p. 43.
14 - Cfr. David Held, ob. cit., p. 65.
15 - Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, ob. cit., p. 44.
16 - Cfr. Idem, ibidem, p. 44.
17 - Cfr. David Held, ob. cit., p. 65-66.
18 - Cfr. Idem, ibidem, p. 67.
19 - Cfr. Montesquieu, The Spirit of Laws, Chicago, William Benton, 1952, p. 69 apud David Held, ob cit., p. 67.
20 - Cfr. David Held, ob. cit., p. 68.
21 - Cfr. Idem, ibidem, p. 69.
Por aqui não fizemos balanços de 2009, e quanto à minha pessoa ainda bem, até porque isso me parece cada vez mais banal. Convenção "social-blogosférica", quase forçada, e no que a este blog diz respeito, parece-me que mais vale continuar na senda de Le Goff ou de Agostinho da Silva, porque o que é verdadeiramente importante é entender o passado para perceber o presente e projectar o futuro, como diria o primeiro, e também porque o que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro, como diria o segundo. Ademais, e talvez seja a maior justificação para tal, falta-me a paciência e o tempo para fazer balanços. Prefiro continuar na senda do Professor Maltez, esperando que possamos seguir estes princípios verdadeiramente liberais.
E prefiro também continuar a desconstruir as certezas absolutas que entre nós continuam a fazer escola. Por isso, a começar o ano, aqui deixo a última parte e a conclusão de um paper que recentemente terminei, e a que já havia aludido aqui, em que analiso a forma como Schumpeter evidencia as falácias jacobinas do bem comum e da vontade geral.
Desconstruindo a Doutrina Clássica da Democracia
Aquilo que Popper ou Schumpeter consideram como a doutrina ou teoria clássica da democracia, vimos já, assenta essencialmente nos conceitos de bem comum, vontade geral e soberania popular, teorizados por Rousseau. Embora David Held considere que não há uma teoria clássica da democracia, mas sim diversos modelos clássicos[1], tomaremos em consideração a denominação de Popper e Schumpeter, no que diz respeito à democracia de inspiração francesa.
Tendo como principal preocupação elaborar uma teoria explicativa que pudesse permitir uma melhor compreensão do funcionamento das democracias, a sua obra mais conhecida, Capitalismo, Socialismo e Democracia, viria a ter um grande impacto na Ciência Política e na Teoria da Democracia em geral, surgindo no mesmo patamar de nomes como Giovanni Sartori, Norberto Bobbio ou Robert Dahl. Em larga escala, este reconhecimento deve-se a uma elaborada desconstrução dos princípios de Rousseau.
Para Schumpeter, a democracia é um processo, um método, que ele próprio visa explicar em termos realistas e empíricos. Começa por definir a doutrina clássica da democracia rousseauniana, baseada no bem comum e na vontade geral, precisamente como um método com determinados objectivos: “the democratic method is that institutional arrangement for arriving at political decisions which realizes the common good by making the people itself decide issues through the election of individuals who are to assemble in order to carry out its will”[2].
Acontece que, na realidade, não há nenhuma acepção única de bem comum sobre a qual todos os indivíduos concordem ou possam concordar pela força de um argumento racional. Não apenas porque os indivíduos têm interesses e desejos diferentes mas principalmente porque a concepção sobre o próprio bem comum varia consoante os indivíduos e grupos[3].
Ainda assim, mesmo que se pudesse considerar uma acepção única de bem comum, suficientemente aceitável por todos, tal não implica que as respostas às necessidades, vontades e assuntos individuais sejam igualmente definidas e definitivas. E mesmo que eventualmente o fossem, os indivíduos continuariam a discordar sobre a forma como alcançar os objectivos definidos e derivados dessas respostas[4]. Criticando Rousseau pelo seu utilitarismo, Schumpeter faz notar os problemas que surgem do dilema da avaliação entre respostas satisfatórias presentes e futuras, exemplificando que a questão socialismo vs. capitalismo ficaria sempre em aberto, mesmo se todos os indivíduos pensassem em termos utilitaristas. Por outras palavras, os teóricos utilitaristas da doutrina clássica da democracia falharam ao não considerar que mudanças substanciais a nível económico alteram os hábitos dos indivíduos e da sociedade, pelo que é impossível ter uma resposta definitiva e aceite por todos sobre o que é o bem comum[5]. Pode definir-se num dado momento e numa determinada sociedade consoante o contexto e circunstâncias presentes, mas num outro dado momento a resposta não será a mesma, nem terá necessariamente um nível de aceitação idêntico.
Destes considerandos, decorre naturalmente que a vontade geral também não existe, já que a sua formulação advém da concepção única do bem comum discernível por todos. Para tal é necessário que exista na sociedade um centro em torno do qual gravitam todas as vontades individuais, com vista a gerar o bem comum e a vontade geral. E é esse centro que unifica as vontades individuais, as imputa racionalmente à vontade geral, e confere a esta última “the exclusive ethical dignity claimed by the classic democratic creed”[6]. Como já vimos, essas vontades são demasiado fragmentadas para que se possam gerar estas acepções rousseaunianas. Como resume Schumpeter, “both the existence and the dignity of this kind of volonté générale are gone as soon as the idea of the common good fails us. And both the pillars of the classical doctrine inevitably crumble into dust”[7].
Schumpeter prossegue, utilizando um exemplo de uma decisão de Napoleão Bonaparte, estabelecida de forma satisfatória, aceite por todas as partes como benéfica a longo prazo, embora tenha sido formulada por meios ditatoriais, para demonstrar que as decisões de agências não-democráticas podem, por vezes, ser mais aceitáveis para os indivíduos do que decisões alcançadas por via de um processo democrático, até porque essas decisões poderiam ser rejeitadas ou alvo de discórdia por parte de instituições ou actores do processo de decisão democrático[8]. Logo, assinala que “if results that prove in the long run satisfactory to the people at large are made the test of government for the people, then government by the people, as conceived by the classical doctrine of democracy, would often fail to meet it”[9].
O seu argumento final contra o bem comum está relacionado com a sua concepção da natureza humana, e a observação dos comportamentos dos indivíduos no que concerne às necessidades económicas e aos seus hábitos de consumo. Estes são originados através de uma construção social, com uma carga muito pouco racional e independente. O mesmo acontece no campo da política. Esta não se encontra no centro das preocupações da maior parte das pessoas, o que não lhes permite efectuar juízos totalmente racionais sobre ideologias e políticas em competição. Além do mais, a maioria dos indivíduos é susceptível de ser manipulada por grupos de pressão e de interesses, o que, mais uma vez, retira dos seus juízos qualquer independência ou racionalidade[10].
Neste ponto, Schumpeter tem um raciocínio magistral, perpassado por um certo pessimismo antropológico: “Thus the typical citizen drops down to a lower level of mental performance as soon as he enters the political field. He argues and analyzes in a way which we would readily recognize as infantile within the sphere of his real interests. He becomes a primitive again. His thinking becomes associative and affective”[11].
Este pressuposto tem duas consequências. A primeira é que mesmo que não seja influenciado por quaisquer grupos políticos, o cidadão típico tenderá a ceder a preconceitos ou impulsos irracionais ou extra-racionais, muitas vezes obscuros e com base em fracos padrões morais, já que o seu processo de pensamento na esfera política é associativo, primário, muito pouco lógico e detém um controlo muito pouco efectivo sobre os resultados das decisões tomadas. Mas mesmo que aconteça o contrário, ou seja, que se manifeste de forma generosa e indignada, nada garante que a sua análise e perspectiva seja a mais correcta, embora ele se possa convencer de que corresponde de facto à vontade geral. Desta forma, corre-se o risco do indivíduo se tornar ainda mais obtuso e irresponsável, o que poderá ser fatal à nação em determinadas circunstâncias[12].
Em segundo lugar, quanto mais débil o elemento lógico nos processos de pensamento do público, e a ausência de um racionalismo crítico, maiores as oportunidades para os grupos que queiram explorar estas fraquezas. Estes grupos podem, de facto, modelar e até mesmo criar a vontade dos indivíduos, dentro de limites bastante amplos. Schumpeter conclui de forma bastante assertiva, afirmando que “what we are confronted with in the analysis of political processes is largely not a genuine but a manufactured will. And often this artefact is all that in reality corresponds to the volonté générale of the classical doctrine. So far as this is so, the will of the people is the product and not the motive power of the political process”[13].
A afirmação de que a vontade geral é o resultado e não a causa do processo político é certamente uma das ideias mais desconcertantes para os defensores da doutrina clássica da democracia. É, a nosso ver, a pièce de résistance na desconstrução de Schumpeter dos postulados de Rousseau.
É ainda a partir de tal que vai elaborar a sua teoria da democracia, postulando o processo democrático em termos bem mais realistas: “The democratic method is that institutional arrangement for arriving at political decisions in which individuals acquire the power to decide by means of a competitive struggle for the people’s vote”[14].
Como David Held assinala, dada a diversidade de desejos e vontades individuais, e das demands amplamente fragmentadas que estes colocam ao governo, é necessário que exista um mecanismo capaz de seleccionar os que são mais capazes de chegar a um conjunto de decisões genericamente aceite pela maioria, ou, pelo menos, do qual se discorde o menos possível. A democracia é a única forma de alcançar este objectivo, mesmo que de forma remota[15].
Para Schumpeter, a democracia tem na sua base a competição pela liderança política. Grupos organizados apresentam-se perante os eleitores, competindo pelos votos destes, de forma semelhante aos empresários que competem pelos clientes num dado mercado. Aos eleitores compete produzir o governo, seleccionando aqueles que consideram mais capazes para a governação, mas também desapossá-lo, retirando-lhe o apoio concedido previamente.
Contudo, Schumpeter considera que qualquer tipo de democracia corre o risco de se tornar administrativamente ineficiente. Mesmo que a sua função principal, i.e., produzir e estabelecer a liderança política, seja alcançada, a governação pode não ser a melhor do ponto de vista da gestão administrativa. Isto pode decorrer, por exemplo, da adaptação das políticas públicas aos interesses dos políticos a longo prazo, nomeadamente, em termos eleitoralistas[16].
Para minimizar este risco, há a considerar um conjunto mínimo de condições para que um regime democrático tenha um funcionamento satisfatório. Em primeiro lugar, a qualidade dos políticos tem que ser elevada. Em segundo, a competição entre líderes e partidos rivais deve dar-se apenas em relação a um conjunto relativamente restrito de questões, delimitado pelo consenso generalizado em relação às políticas a seguir, decorrentes do programa do governo aprovado pelo parlamento e das matérias constitucionais. A terceira condição é a existência um aparelho burocrático independente e de qualificações elevadas, que possa auxiliar os decisores políticos na formulação das políticas e na administração. O quarto factor é o auto-controlo democrático, segundo o qual, todos os grupos da sociedade devem estar dispostos a aceitas as medidas governamentais, conquanto estejam restringidas à luz da segunda condição, devendo evitar-se criticismos excessivos ou oposições a todas as medidas, o que pode levar a comportamentos imprevisíveis e violentos. Por último, tem de existir uma cultura de tolerância e respeito pelas diferenças de opinião, pelo que a liberdade de expressão e de imprensa é um dos fundamentos do método democrático[17].
Resta assinalar que a visão de Schumpeter corresponde a muitas daquelas que são as características das democracias liberais ocidentais, como faz notar David Held, nomeadamente, a competição entre partidos pela liderança política; o importante papel da administração burocrática; a semelhança entre as técnicas da competição comercial e as técnicas da competição eleitoral e política; a forma como os eleitores estão sujeitos a muita informação e como apesar disto permanecem mal informados sobre as questões políticas[18].
Conclusão
Considerando a interacção entre os diversos elementos das duas grandes teorias da democracia por nós analisados, cuja relação nos parece gerar dinâmicas que se encontram no âmago das duas correntes, importa realçar como estas dinâmicas se materializam articulando os vários factores, para dar resposta à nossa pergunta de partida.
Por um lado, a democracia de matriz rousseauniana, assente na teorização do bem comum, vontade geral e soberania popular, vai recorrer essencialmente a um postulado de liberdade positiva, em estreita ligação com uma crença no poder da razão que leva à centralização do poder político sob a égide de uma ordem social e política organizada de cima para baixo, por um indivíduo ou conjunto de indivíduos, que inevitavelmente assenta num sistema económico planificado. Por outro lado, a corrente anglo-saxónica, assente num liberalismo que tem no cepticismo em relação ao exercício do poder um dos seus traços característicos, pauta-se pela assumpção da liberdade negativa, a que melhor serve uma ordem social liberal, óbvia e naturalmente espontânea, que em termos políticos vai assumir os princípios do governo limitado e da limitação e dispersão de poder, salvaguardando a liberdade individual e a possibilidade de cada indivíduo prosseguir os seus fins como melhor lhe aprouver, o que em termos económicos só é possível numa economia de mercado.
De forma mais resumida e objectiva, José Adelino Maltez considera que “A democracia primitiva, de matriz jacobina, tendia para a unidade concentracionária do poder, para o monismo e para a centralização, com base na perspectiva da soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível, modelo que só pôde ser contrariado pelos pontos de vista do pluralismo e da divisão e distribuição da soberania, assumidos tanto pelo federalismo como pelo liberalismo ético, movimentos que retomaram a ideia de liberdade como autogoverno e divisão do poder, na linha do tradicional consensualismo”[19].
De um ponto de vista valorativo, entendemos que a doutrina anglo-saxónica é a que melhor salvaguarda a liberdade individual e permite aos indivíduos prosseguir os seus fins dependendo apenas das suas capacidades e conhecimentos. A doutrina jacobina, amplamente difundida na Europa Continental e com evidentes repercussões nas experiências reais do marxismo, parece-nos um logro, uma teoria que não corresponde a uma acepção verdadeira, em termos popperianos, sendo mais semelhante a uma crença religiosa – e daí, talvez, o seu sucesso -, até porque, como Schumpeter demonstra magistralmente, os seus pressupostos base são falaciosos. Não existe bem comum nem vontade geral, e esta é, quanto muito, o resultado e não a causa do processo político. E se assim é, a melhor forma de esta ser produzida é colocando o indivíduo no centro do processo político, dotando-o de uma esfera pública e privada de acção, e de direitos naturais e civis, e não o governo ou o estado como o centro em torno do qual têm de gravitar todas as vontades individuais, que congregadas numa vontade geral conferem aos decisores um espaço de manobra e capacidade de acção extremamente amplo, assente numa crença no poder ilimitado da razão.
Considerando que a natureza humana é, como Schumpeter demonstra, irracional, primária e pouco lógica, e tendo em consideração os ensinamentos de Popper, Hayek e Berlin sobre os limites do conhecimento, parece-nos que o constitucionalismo liberal, assente no governo limitado e num sistema político cuja arquitectura deve ser institucionalizada e não sujeita a manipulações em “nome do povo”, como é apanágio do jacobinismo, se apresenta como o melhor garante da liberdade individual e o baluarte do funcionamento da democracia anglo-saxónica.
Notas
[1] Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 152.
[2] Cfr. Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, Nova Iorque, Harper Perennial, 2008, p.250.
[3] Cfr. Idem, ibidem, p. 251.
[4] Cfr. David Held, ob. cit., p. 147.
[5] Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 255.
[6] Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
[7] Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
[8] Cfr. David Held, ob. cit., p. 148.
[9] Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 257.
[10] Cfr. David Held, ob. cit., p. 149.
[11] Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 262.
[12] Cfr. Idem, ibidem, p. 262.
[13] Cfr. Idem, ibidem, p. 263.
[14] Cfr. Idem, ibidem, p. 269.
[15] Cfr. David Held, ob. cit., p. 143.
[16] Cfr. Idem, ibidem, p. 150.
[17] Cfr. Joseph A. Schumpeter, ob cit., pp. 290-296 e David Held, ob. cit., pp. 150-151.
[18] Cfr. David Held, ob cit., p. 152.
[19] Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 149.