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«Portugal tem actualmente taxas máximas sobre os principais impostos acima da média europeia.»
Nos anos 70, Friedrich A. Hayek, em Law, Legislation and Liberty, vol. 3, The Political Order of a Free People, p. 51, escrevia assim:
«The tendency of the public sector to grow progressively and indefinitely led, almost a hundred years ago, to the formulation of a 'law of growing government expenditure'. In some countries such as Great Britain the growth has now reached the point where the share of national income controlled by government amounts to more than 50 per cent. This is but a consequence of that built-in bias of the existing institutions towards the expansion of the machinery of government; and we can hardly expect it to be otherwise in a system in which the 'needs' are fixed first and the means then provided by the decision of people who are mostly under the illusion that they will not have to provide them. While there is some reason to believe that with the increase in general wealth and of the density of population, the share of all needs that can be satisfied only by collective action will continue to grow, there is little reason to believe that the share which governments, and especially central governments, already control is conducive to an economic use of resources. What is generally overlooked by those who favour this development is that every step made in this direction means a transformation of more and more of the spontaneous order to society that serves the varying needs of the individuals, into an organization which can serve only a particular set of ends determined by the majority - or increasingly, since this organization is becoming far too complex to be understood by the voters, by the bureaucracy in whose hands the administration of those means is placed.»
Nascido a 8 de Maio de 1899. Ainda hoje utilizei a citação da imagem infra numa conversa. É uma das minhas favoritas. Aproveito para recordar que a minha dissertação de mestrado teve precisamente como temática o pensamento de Hayek. Está disponível no Repositório da UTL e no site da Causa Liberal.
(via Bastiat Institute)
Um óptimo resumo do seu pensamento:
Citando Steve Horwitz, traduzido por mim, "Hoje paramos para notar o 20.º aniversário da morte de F. A. Hayek, talvez o mais importante pensador social do século XX e um homem cujas ideias ainda permanecem à frente do seu tempo e são distorcidas e mal compreendidas pela suposta elite intelectual."
Em homenagem, e como sugestão de leitura, deixo a ligação para a minha dissertação de mestrado, intitulada Do conceito de Liberdade em Friedrich A. Hayek, e uma das minhas citações favoritas, retirada de O Caminho para a Servidão (tradução também minha): "A independência mental ou força de carácter raramente é encontrada naqueles que não podem ter confiança que conseguirão fazer o seu percurso pelo seu próprio esforço."
Vai uma interessante discussão na caixa de comentários d'O Insurgente. Entretanto, de salientar que os piquetes de greve se encontram previstos na Lei 65/77 que regula o direito à greve, no Art.º 4.º, cuja redacção é a seguinte:
"A Associação sindical ou a comissão de greve podem organizar piquetes para desenvolver actividades tendentes a persuadir os trabalhadores a aderirem à greve, por meios pacíficos, sem prejuízo do reconhecimento da liberdade de trabalho dos não aderentes."
Ora, dado que não é assim tão ocasional quanto isso a interferência com a liberdade e direito de trabalhar dos não aderentes, recordam-se de alguma vez terem sido levados à justiça elementos dos piquetes de greve que recorram à violência? Eu não me recordo, o que não quer dizer que não tenha acontecido. Mais, mesmo quanto aos piquetes pacíficos, importa relembrar a passagem de Hayek que salientei no post anterior: "Que mesmo os chamados piquetes "pacíficos" são severamente coercivos e a apologia que destes é feita constitui um privilégio concedido por causa do seu suposto objectivo legítimo é demonstrado pelo facto de que estes podem ser e são usados por pessoas que não são trabalhadores para forçar os outros a formar uma união que eles irão controlar, e que também pode ser utilizada para fins puramente políticos ou para dar expressão à animosidade contra uma pessoa impopular. A aura de legitimidade que lhes é conferida porque os objectivos são muitas vezes aprovados não pode alterar o facto de representarem uma espécie de pressão organizada sobre os indivíduos que numa sociedade livre não deve ser permitida a qualquer agência privada."
(A minha cara se algum piquete de greve se atravessar no meu caminho em qualquer transporte público que eu consiga apanhar amanhã/hoje)
Dia de greve pretensamente geral é sempre um bom dia para relembrar os efeitos nefastos do sindicalismo salientados por Oakeshott e Hayek, e é também um dia de greve tão bom como qualquer outro para os portugueses libertarem a tensão acumulada com a crise e aviarem uns quantos piquetes de greve, que são apenas mais um repulsivo anacronismo sem lugar numa sociedade verdadeiramente democrática. Lembro que o o Art.º 57.º da Constituição da República Portuguesa apenas consagra o direito à greve, não fazendo qualquer menção a piquetes. Já o Art.º 21.º consagra o direito de resistência: "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública."
Ou seja, o direito à greve não pressupõe piquetes de greve, e dado que a nossa liberdade acaba onde começa a dos outros, os que o desejem podem fazer greve à vontade, mas a partir do momento em que tentam impedir violentamente os que não querem fazer greve de trabalhar, legitimam moralmente que estes recorram também à violência para reparar a injustiça que lhes tentam impor. Ou não seja o trabalho de cada um uma componente primeira da sua propriedade privada e esfera de liberdade individual, as quais devem ser protegidas pelo estado da interferência de terceiros. Se este não o faz, resta aos próprios fazê-lo.
E aqui ficam duas passagens de Hayek, numa tradução livre minha:
«Os presente poderes coercivos dos sindicatos fundamentam-se principalmente no uso de métodos que não seriam tolerados para qualquer outra finalidade e que se opõem à protecção da esfera privada do indivíduo. Em primeiro lugar, os sindicatos dependem – numa extensão muito maior do que é comummente reconhecido – do uso de piquetes como um instrumento de intimidação. Que mesmo os chamados piquetes "pacíficos" são severamente coercivos e a apologia que destes é feita constitui um privilégio concedido por causa do seu suposto objectivo legítimo é demonstrado pelo facto de que estes podem ser e são usados por pessoas que não são trabalhadores para forçar os outros a formar uma união que eles irão controlar, e que também pode ser utilizada para fins puramente políticos ou para dar expressão à animosidade contra uma pessoa impopular. A aura de legitimidade que lhes é conferida porque os objectivos são muitas vezes aprovados não pode alterar o facto de representarem uma espécie de pressão organizada sobre os indivíduos que numa sociedade livre não deve ser permitida a qualquer agência privada.»
(…)
«O requisito essencial é que a verdadeira liberdade de associação seja assegurada e que a coerção seja tratada como igualmente ilegítima quer seja empregue a favor ou contra a organização, pelo empregador ou pelos funcionários. O princípio de que o fim não justifica os meios e que os objectivos dos sindicatos não justificam a sua isenção das regras gerais do direito deve ser rigorosamente aplicado. Hoje isto significa, em primeiro lugar, que todos os piquetes devem ser proibidos, uma vez que são não só a causa principal e habitual de violência, mas mesmo nas suas formas mais pacíficas são um meio de coerção.»
(Sugestão musical para acompanhar a leitura deste texto)
Inspirado pelo meu post, o Filipe Faria escreveu um excelente texto, cuja leitura é indispensável, em que ele, como bom português à solta, observando directamente a realidade britânica contemporânea, onde o multiculturalismo coloca em risco as tradições culturais e políticas da Inglaterra, nos revela, entre várias ideias, esta: "Conhecendo bem a realidade de ambos os países, neste momento arrisco dizer que Portugal usufrui de uma maior liberdade de expressão."
Neste texto, o Filipe coloca em causa a defesa da democracia por Hayek, que se insere na tradição anglo-saxónica do liberalismo clássico, como forma de limitar o governo, consubstanciada na observação que faz do que se passa no Reino Unido. Mas Hayek estava alerta para os perigos advindos da miragem da justiça social (e do alargamento dos poderes do estado ao abrigo deste, como fiz notar no ponto 4 do meu post "Equívocos a respeito do liberalismo"), das coligações de interesses organizados que negoceiam com e sustentam os partidos políticos, e do positivismo legalista - que confunde a lei (Direito Natural) com legislação, em detrimento da primeira -, cujos efeitos combinados denomina por perversão democrática.
Assim como estão vários autores britânicos, como John Gray e Roger Scruton, que entre o liberalismo e o conservadorismo, com destaque para a inspiração em Hayek e Oakeshott, alertam para os perigos destas acepções modernas. Permitindo-me fazer corresponder a ordem espontânea de Hayek à civil association de Oakeshott, e a ordem de organização à enterprise association, e sabendo que os elementos dos dois tipos de ordem ou de associação se misturam na prática, podendo ser encontrados em vários estados, torna-se útil salientar que para Oakeshott a civil association não necessita de ser culturalmente homogénea mas apenas respeitar a lei acima da identidade cultural, ou seja, a comunidade deverá fundamentar-se no respeito a princípios abstractos e formais. Acontece que, segundo Gray, esta acepção kantiana é profundamente questionável e um calcanhar de Aquiles para o liberalismo e para o conservadorismo. A História recente mostra como é difícil que o estado sustente a sua autoridade apenas sob concepções de lei formais, abstractas e processuais, que assim se torna fragmentada e fraca. Esta ideia surgiu numa altura em que a identidade cultural era dada como garantida, quer por Kant quer pelos Founding Fathers americanos, sendo a identidade em causa a da Cristandade Europeia. Com o Iluminismo francês, a Revolução Francesa e a fragmentação desta identidade, tornou-se mais fraca a autoridade do estado com base em concepções abstractas (veja-se precisamente o caso do Reino Unido, com comunidades muçulmanas que desafiam constantemente o estado e rejeitam as normas tácitas de tolerância características dos britânicos, ou ainda o caso dos EUA, em que uma horda de minorias vai progressivamente tornando o estado cativo, tendo apenas o legalismo a uni-las)[1]. Roger Scruton assinala esta fraqueza e os seus reflexos práticos sob a denominação de falácia da agregação, em que dando o exemplo do Reino Unido evidencia como o multiculturalismo e o Estado Social se combinam de uma forma que é potencialmente destrutiva para a comunidade[2]. E também Hayek faz notar que a modernidade produziu um enquadramento que é altamente destrutivo das tradições intelectuais e morais europeias, que através do racionalismo construtivista e do relativismo produz morais inviáveis, ou seja, sistemas de pensamento moral incapazes de sustentar qualquer ordem social estável, que através de teorizações sociológicas contemporâneas e da corrupção da arquitectura e das artes (como Scruton e Gray demonstram) criam um clima cultural que é profundamente hostil à tradição e também à sua própria existência. Confrontamo-nos, assim, com uma cultura que tem ódio à sua própria identidade, tornando-se, em larga medida, efémera e provisória.[3]
Inspirados pelo Projecto Iluminista, os autores modernos e pós-modernos desenvolveram um caos moral, em que o abuso da razão, o objectivismo e o relativismo criaram um ambiente cultural, social e intelectual que é inimigo da tradição. Ao proporem ancorar a moralidade no racionalismo, o positivismo, o cientismo, o historicismo e o cepticismo conduziram naturalmente ao niilismo, construtivismo e planeamento social, e, consequentemente, ao utilitarismo e emotivismo. A rejeição de qualquer tipo de instituição ou código de comportamento que não seja racionalmente justificado parece ser uma característica distintiva da modernidade[4], o que talvez possa ajudar a explicar o que se passa no Reino Unido, já que os costumes britânicos são completamente postos em causa por este quadro.
Por outro lado, esta discussão relembrou-me um texto que escrevi por altura dos motins em Inglaterra em Agosto de 2011, e de várias discussões que surgiram na blogosfera sobre estes, em que às tantas o Bruno Garschagen colocou uma hipótese que me parece particularmente útil recuperar, e que vai no sentido do pensamento de Scruton a que aludi acima: Os criminosos de Londres são filhos do Welfare State e do multiculturalismo? Não se encontrará aqui também parte da explicação para o que se passa em Inglaterra? E mais, daqui lanço o repto ao caríssimo Filipe, caso ache(s) por bem, de elaborar(es) sobre algo que conhece(s) muito bem (ao contrário de mim), a Escola de Frankfurt, que em larga medida se faz sentir na academia britânica, e de nos ajudar(es) a perceber se e de que forma as ideias desta não são também em grande parte responsáveis por este ambiente.
Só para finalizar, quanto a Hayek, este propôs uma reforma das instituições democráticas em Law, Legislation and Liberty. Para além de demonstrar a vacuidade do conceito de justiça social, para tentar recuperar e/ou evitar a confusão entre lei e legislação e os efeitos nefastos do positivismo legalista, propõe que os parlamentos sejam compostos por duas câmaras, em que uma trataria da lei (as regras de justa conduta da ordem espontânea, descobertas e em linha com a opinião pública), e outra da legislação (correspondente aos comandos específicos da ordem de organização, ou seja, à noção de vontade), o que seria complementado por um Tribunal Constitucional que teria como missão evitar a confusão entre lei e legislação, para que as duas assembleias não entrem em conflito relativamente às suas respectivas competências. Até que ponto isto será praticável, não sei. Mas fica a sugestão.
[1] John Gray, “Oakeshott as a liberal”, in John Gray, Gray’s Anatomy, Londres, Penguin Books, 2009, pp. 83-84.
[2] Roger Scruton, As Vantagens do Pessismismo, Lisboa, Quetzal, 2011, pp. 151-163.
[3] John Gray, “Hayek as a Conservative”, in John Gray, Gray’s Anatomy, op. cit., p. 131.
[4] Edward Feser, “Hayek on Tradition”, in Journal of Libertarian Studies, Vol. 17, No. 1, 2003, p. 17.
Aqui fica o meu artigo publicado no número 1 da popcom, a nova publicação do Gabinete de Estudos Gonçalo Begonha, da Juventude Popular.
(Locke, Burke, Montesquieu, Hayek)
O liberalismo clássico é uma tradição política que representou uma ruptura com o que se designa por Ancien Regime, materializada concretamente nas Revoluções Atlânticas – Inglesa (1688), Americana (1776) e Francesa (1789). Estas encontram-se na origem daquilo que hoje denominamos por democracia liberal. Na verdade, a democracia liberal e os diversos entendimentos quanto a esta, podem dividir-se em duas grandes correntes, tendo como diferença essencial a forma como encaram o conceito de liberdade, que se encontra no âmago do liberalismo e em torno do qual existem complexas teorizações. Esta distinção permite-nos considerar que, na realidade, não há apenas um liberalismo, mas vários, embora o liberalismo constitua uma única tradição política.[1]
A simpatia e a admiração que nutro pelo Miguel Castelo-Branco e pelos seus escritos levam-me a esboçar uma breve réplica a um texto que, confesso, não esperava ver no Combustões, e que se visse em qualquer outro blog de que não seja leitor regular não me levaria a escrever este post. Faço-o não só pela estima que tenho pelo Miguel como também por saber que provavelmente poderá surgir daqui um interessante debate, se achar por bem. Aqui fica, por pontos:
1 - Que os homens são naturalmente desiguais não é, nem precisa de ser, uma prova de fé. É uma constatação derivada da mera observação empírica. Biológica, fisionómica e psicologicamente somos todos desiguais (ou diferentes, como alguns advogados do politicamente correcto preferem dizer).
2 - A que liberalismo se refere o Miguel? É que, como o Miguel bem sabe, não há um liberalismo mas vários. E o liberalismo clássico, brilhantemente refundado no século XX por Hayek e Popper (entre outros) não cai nas lógicas redutoras do anarco-capitalismo, essas sim as criticadas pelo Miguel e muito bem, até chegar ao último parágrafo e confundir isso com o liberalismo em geral. Tomar o todo pela parte, como se o liberalismo fosse uma única doutrina ou ideologia, é, parece-me, contribuir para uma confusão generalizada pelas mais do que banais e patéticas críticas ao neo-liberalismo, quando os seus vociferadores geralmente nem sabem do que falam (sabem lá eles distinguir entre liberalismo clássico, liberalismo continental, libertarianismo ou anarco-capitalismo) - trata-se do processo de externalização daquilo que não sabemos explicar para um mito, desta forma procurando confortar-nos a nós próprios e evitar confrontar a realidade e tentar percebê-la.
3 - Como o liberalismo em que me filio é o clássico, e como hayekiano, permita-me o Miguel o atrevimento de repudiar a confusão em que incorre, clarificando que Hayek insere-se numa linha de pensamento que perspectiva a democracia como um método que se preocupa essencialmente em limitar o poder de quem governa, o que é uma concepção característica da teoria e prática da democracia de origem anglo-saxónica, por oposição à concepção de origem francesa e continental que vê a democracia assente em princípios como o bem comum e a vontade geral. Para Hayek, embora o estado liberal não possa senão basear-se no governo limitado, tal não significa, contudo, que o estado tenha que ser necessariamente um estado mínimo[1], que alguns autores, como Robert Nozick, defendem. Hayek vê no estado um mal necessário que tem duas funções essenciais: a primeira, assegurar a manutenção das regras da ordem espontânea; a segunda, providenciar bens e serviços que a ordem espontânea não produz ou não pode produzir adequadamente.[2] Hayek limita a actuação do governo à observância de determinados princípios, e não sendo partidário do não intervencionismo ou laissez-faire admite, conforme nota André Azevedo Alves, “que um vasto conjunto de actividades governamentais pode ser compatível com uma sociedade livre.”[3] Aliás, mesmo na sua obra mais conhecida, Hayek afirma que nas sociedades industriais contemporâneas não há razão, dados os níveis de riqueza alcançados, para não garantir um mínimo de segurança económica a todos os cidadãos, sem que tal coloque em causa a liberdade individual.[4]
4 - Uma vigilância constante sobre o Estado é mais do que recomendável, na medida em que, devido ao perverso conceito de justiça social - cuja emergência permitiu novas reivindicações por parte dos cidadãos em relação ao governo, mas que permitiu a este um alargar discricionário dos seus poderes, conquanto que as suas acções sejam legitimadas em nome da justiça social[5] -, o estado de direito, ou seja, a lei enquanto princípio geral e abstracto, deixou de ser um limite à acção governativa, que passou a ser explorada pelos grupos de interesses, que assim puderam prosseguir os seus objectivos particulares à custa de terceiros, muitas vezes prejudicando a sociedade como um todo, mesmo que os indivíduos não o percebam ou até apoiem estes grupos de interesses, simplesmente porque estes recorrem à camuflagem dos seus intentos sob a capa da justiça social.[6] Que o Estado forneça os bens a que o Miguel alude, não é desculpa alguma para deixarmos de ser cépticos em relação ao exercício do poder, até porque teríamos que ser muito optimistas (ingénuos mesmo) em relação à natureza humana para tal. É por isto que o liberalismo tem uma concepção anti-estatista e anti-construtivista da vida e do mundo. Conforme Richard Bellamy aponta, a única forma de evitar que o governo se torne presa dos interesses particulares e adopte políticas que pretendem dirigir a ordem social para os fins daqueles, é limitar o raio de acção em que o governo pode utilizar os seus poderes coercivos para aumentar os seus recursos e organizar os indivíduos, retirando-lhe a capacidade de conceder benefícios a grupos de interesses. Isto pressupõe não só a separação de poderes como a obediência da acção governamental ao estado de direito.[7] Não há em nada disto uma diabolização do Estado ou a intenção de o abolir, muito pelo contrário.
5 - É muito discutível que, entre os vários bens/serviços que o Miguel aponta, a educação, o funcionamento regular do mercado ou as leis emanem do Estado: a educação, em Portugal pelo menos, era em larga medida providenciada pela Igreja; o verdadeiro mercado livre surge da acção humana, mas não é produto de qualquer desenho consciente, apenas necessitando da manutenção de regras de conduta gerais e abstractas (premissas kantianas) que, estas sim, podem ser impostas pelo Estado - o problema está em as regulamentações raramente obedecerem a estas premissas, sendo na verdade comandos específicos apropriados a ordens de organização e não a ordens espontâneas, acabando por perverter o funcionamento do mercado livre; as leis, se partirmos do jusnaturalismo, não emanam no Estado, e no sistema de direito anglo-saxónico são descobertas através de um processo análogo ao do mercado, por tentativa e erro. A apropriação destes e outros sectores pelo Estado é feita a posteriori e é largamente responsável pelos tempos de crise que vamos vivendo, em que a sustentabilidade financeira do Estado foi completamente descurada, colocando a soberania interna e externa em causa. Como assinalou Adam Smith em A Riqueza das Nações, "É a maior impertinência e presunção, portanto, em reis e ministros, pretender vigiar a economia de pessoas privadas, e restringir a sua despesa quer por leis sumptuárias, ou através da proibição da importação de luxos estrangeiros. Eles próprios são sempre, e sem qualquer excepção, os maiores gastadores na sociedade. Eles que olhem bem pela sua própria despesa, e poderão confiar seguramente a das pessoas privadas a estas. Se a sua própria extravagância não arruinar o Estado, a dos seus súbditos nunca o fará."[8]
[1] John Gray, Liberalism, 2.ª ed., Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p. 70.
[2] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, Vol. 1: Rules and Order, Londres, Routledge, 1998, pp. 47-48; Vol. 3: The Political Order of a Free People, p 41.
[3] André Azevedo Alves, Ordem, Liberdade e Estado: Uma Reflexão Crítica sobre a Filosofia Política em Hayek e Buchanan, Senhora da Hora, Edições Praedicare, 2006, p. 112.
[4] F. A. Hayek, The Road to Serfdom, Chicago, The University of Chicago Press, 2007, pp. 147-148.
[5] Mark S. Peacock, "On Political Competition: Democracy, Opinion and Responsibility", in Constitutional Political Economy, Vol. 15, N.º 2, 2004, p. 198.
[6] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, Vol. 2: The Mirage of Social Justice, op. cit., p. 96.
[7] Richard Bellamy, "Dethroning Politics’: Liberalism, Constitutionalism and Democracy in the Thought of F. A. Hayek", in British Journal of Political Science, Vol. 24, N.º 4, p. 425.
[8] Adam Smith, The Wealth of Nations. Disponível em http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=220&layout=html
Pelas 14h30m, no ISCSP, estarei no VI Congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política, a falar sobre o conceito de liberdade em Hayek. Desta feita prometo não ler, a ver se a seca é um bocadinho menor.
José Adelino Maltez, Reflexões de um herético, adepto da revolução:
«O destino de um "whig" é como o de um "girondin". Os "tories" consideram-nos jacobinos e estes utilizam contra eles a guilhotina, acusando-os de "contra-revolucionários". Eles, como liberais, contra o construtivismo das revoluções, apenas querem uma revolução evitada, isto é, querem conservar o que deve ser, com metodologias reformistas e objectivos revolucionários. Apenas são velhos liberais, contra "neocons", "neolibs" e revolucionários frustrados, incluindo os que se transformaram em situacionistas. Detestam as "révolutions d'en haut", incluindo as dos déspotas esclarecidos, a partir do ministerialismo.
Alguns ainda vão dizer que isto é maçónico. Quando é apenas paleio do Friedrich Augustus e do Karl Raimund. Isto é, liberal e iluminista. E muito austríaco. Apesar de só a partir de Londres, o terem dissertado. Meras marcas identitárias de uma concepção do mundo e da vida. Friedrich Augustus von Hayek. Karl Raimund Popper. Ou a sociedade aberta e os seus inimigos, os do caminho para a servidão.»
Um excelente artigo de Brandon Harnish, "Alasdair MacIntyre and F. A. Hayek on the Abuse of Reason", para o qual chamo em especial a atenção dos interessados nas temáticas do racionalismo, tradicionalismo, modernidade, epistemologia, filosofia da ciência e Iluminismo:
«Hayek likewise expresses concern over the division between the humanities and the social sciences and the new approach to which this division gave rise. He quotes Albert Einstein to illustrate his point that science without epistemology—insofar as it is thinkable at all—is primitive and muddled (1956, 131). This approach is epitomized by the German sociologist Torgny T. Segerstedt, whom Hayek quotes: “‘The most important goal that sociology has set for itself is to predict the future development and to shape the future, or, if one prefers to express it in that manner, to create the future of mankind’” (in Hayek 1970, 6).
MacIntyre expresses this search for a formula of social development as, tellingly, a hunt for the position of God. “[O]mniscience excludes the making of decisions. If God knows everything that will occur, he confronts no as yet unmade decision. He has a single will. It is precisely insofar as we differ from God that unpredictability invades our lives. This way of putting the point has one particular merit: it suggests precisely what project those who seek to eliminate unpredictability from the social world or to deny it may be engaging in” (2007, 97). How the Enlightenment shift toward constructivist rationalism profoundly affected the social sciences or, perhaps more fundamentally, how the shift in the way man confronted questions of value and questions of fact changed his approach to the study of human action begins to become clear. MacIntyre and Hayek see utilitarianism and emotivism as two results of the Enlightenment shift (Hayek 1970, 14; MacIntyre 2007, 62). As manifestations of rationalism, these philosophies fostered the new social science ideology and made mankind feel the full and practical consequences of the Enlightenment Project’s failure.»
(Artigo publicado no n.º 4 do Lado Direito, jornal da Juventude Popular de Lisboa)
Liberalismo e conservadorismo são duas das mais importantes correntes da teoria política, cujos pontos em comum, pese embora algumas divergências, são de salientar. Para este propósito, nada melhor do que analisar Edmund Burke, o chamado pai do conservadorismo, e Friedrich Hayek, um dos mais importantes liberais do século XX, que em muito se inspirou em Burke. Aliás, mais do que catalogar os autores de acordo com categorias por nós atribuídas a posteriori, importa realmente estudar as ideias destes, já que os pontos coincidentes são muitos.
Burke e Hayek subscrevem a mesma filosofia política, havendo uma partilha de valores comuns. Embora existam diferenças entre alguns dos seus pontos de vista, partilham “visões similares quanto à natureza da sociedade, o papel da razão na conduta humana e as tarefas do governo, bem como, até certo ponto, quanto à natureza das regras morais e legais”1. As parcas diferenças parecem ficar a dever-se ao credo religioso, sendo Burke um seguidor do cristianismo e Hayek um agnóstico.
De certa forma, Hayek tentou completar o pensamento de Burke com uma base científica, para além da espiritual, o que fica patente no entendimento hayekiano quanto à natureza da sociedade que, tal como o entendimento de Burke, deriva das ideias dos iluministas escoceses que contribuíram para desenvolver a doutrina Whig (partido político britânico de que Burke foi a figura maior). Para Adam Ferguson, David Hume e Adam Smith, a sociedade e as suas instituições são o resultado de um processo de crescimento cumulativo em que a ordem social é um produto da interacção entre instituições, hábitos, costumes, lei e forças sociais impessoais. Tanto Burke como Hayek possuíam uma visão idêntica, de que as instituições sociais são o produto de um complexo processo histórico, caracterizado pela experimentação, ou seja, por tentativa e erro. Para ambos, as condições para que uma sociedade floresça consubstanciam-se no necessário respeito e compreensão pelas forças que mantêm a ordem social, que não deve ser alvo de manipulação e controlo por parte de teorias que pretendam acabar com ela, sendo o desejo de apagar o que existe e desenhar a sociedade de novo apenas a demonstração de uma profunda ignorância quanto à natureza da realidade social. Esta mesma acepção inspira a forma como encaram o papel da razão, considerando que a civilização não é uma criação resultante de uma construção racional, mas o imprevisto e não intencionalmente pretendido resultado da interacção espontânea de várias mentes numa matriz de valores, crenças e tradições não racionais ou supra racionais, o que não significa que o liberalismo e conservadorismo sejam irracionais, mas apenas que não o são no sentido cartesiano, socialista, preferindo reconhecer limites ao poder da razão humana e considerando o “homem não como um ser altamente racional e inteligente mas sim muito irracional e falível, cujos erros individuais são corrigidos apenas no decurso do processo social”2.
Este ponto de partida perpassa os edifícios teóricos burkeano e hayekiano no que à política e à economia diz respeito. Ambos são defensores do mercado livre e objectores à manipulação por parte do governo dos processos do mercado, dado que viola as regras e princípios do comércio livre, sendo, por isso, uma intervenção arbitrária corrosiva da liberdade e da justiça.
No que à já referida divergência concerne, se no entendimento de Burke a sociedade civil fundamenta-se no cristianismo e, logo, também o estado, instituição sagrada providenciada pela Vontade Divina, Hayek, por seu lado, sendo agnóstico, não partilhava da mesma acepção por temer a antropomorfização da Vontade Divina, em que uma particular vontade humana – ou várias – ficaria a dirigir o curso da vida social, inspirando esforços equivocados para controlar o processo social espontâneo através da direcção consciente.
Esta divergência, contudo, não constitui obstáculo a uma defesa da tradição e do mercado, que ambos realizam, inclusivamente em termos morais. Em Hayek encontramos a defesa da tradição, do costume e de uma moralidade baseada no senso comum, de índole prática, como aponta Roger Scruton. Este filósofo conservador britânico assinala que Hayek encara o mercado livre como sendo parte de uma ordem espontânea alargada, fundada na livre troca de bens, ideias e interesses – o jogo da cataláxia, na terminologia hayekiana. Este jogo acontece ao longo do tempo e para além dos vivos tem nos mortos e nos ainda por nascer os restantes jogadores, como Burke também havia afirmado, que se manifestam através das tradições, instituições e leis. A assertividade dos argumentos apresentados por Scruton quanto à compatibilidade entre a tradição, a moral e o mercado é por demais evidente: “Aqueles que acreditam que a ordem social exige restrições ao mercado estão certos. Mas numa verdadeira ordem espontânea as restrições já lá estão, sob a forma de costumes, leis e princípios morais. Se essas coisas boas decaem, então de forma alguma, de acordo com Hayek, pode a legislação substituí-las, pois elas surgem espontaneamente ou não surgem de todo, e a imposição de éditos legislativos para a “boa sociedade” destrói o que resta da sabedoria acumulada que torna tal sociedade possível. Não é, por isso, surpreendente que pensadores conservadores britânicos – notavelmente, Hume, Smith, Burke e Oakeshott – tendam a não ver qualquer tensão entre a defesa do mercado livre e uma visão tradicionalista da ordem social. Eles puseram a sua fé nos limites espontâneos que o consenso moral da comunidade coloca ao mercado. Talvez este consenso esteja agora a quebrar-se. Mas esta quebra resulta, em parte, da interferência estatal, e é certamente improvável que venha a ser reparada pela mesma”3.
Por tudo isto, nada como terminar subscrevendo José Adelino Maltez, quando este afirma que partilhamos de “uma concepção do mundo e da vida anti-construtivista, anti-revolucionária e anti-estadista, segundo a qual não é a história que faz o homem, mas o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo.”
1 - Linda C. Raeder, Linda C. Raeder, “The Liberalism/Conservatism Of Edmund Burke and F. A. Hayek: A Critical Comparison”, in Humanitas, Vol. X, N.º 1, 1997. Disponível em http://www.nhinet.org/raeder.htm.
2 - F. A. Hayek, “Individualism: True and False”, in Individualism and Economic Order, Chicago, The University of Chicago Press, 1996, pp. 8-9.
3 - Roger Scruton, “Hayek and conservatism”, in Edward Feser (ed.), The Cambridge Companion to Hayek,Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 219.
Na Sic Notícias, o ignorante ou mal intencionado Alfredo Barroso lança atoardas sobre Hayek, dizendo que este achava a segurança social algo absurdo. Absurda é esta gente que fala do que não sabe do "alto da sua inteligência colocada em tábua de carroça" (expressão do meu avô). Se alguém tiver o e-mail do mencionado, terei todo o gosto em enviar-lhe algumas passagens de Road to Serfdom e The Constitution of Liberty. A começar por esta, com tradução minha: "Não há razão para que numa sociedade que alcançou o nível geral de riqueza da nossa, o primeiro tipo de segurança [económica] não seja garantido a todos sem colocar em perigo a liberdade geral. (...) Nem existe qualquer razão porque o estado não deva assistir os indivíduos na protecção daqueles perigos comuns da vida contra os quais, por causa da sua incerteza, poucos indivíduos se podem proteger adequadamente."
A ignorância atrevida, para não dizer estupidez, proporciona sempre umas belas gargalhadas e uns quantos facepalms. É ler o que escreve André Azevedo Alves a respeito de um infeliz post de Sérgio Lavos (as ligações são as originais do post do André):
«Na colorida imaginação do bloquista Sérgio Lavos, há lugar para uma Escola de Economia de Chicago inspirada por Hayek, que por sua vez está associada com o Chile de Pinochet, a Argentina de Videla, a Inglaterra de Thatcher, o Iraque ocupado pelos EUA e esse conhecido político ultra-neo-liberal que dá pelo nome de… Vítor Gaspar. A não perder, a chave para a compreensão das opções de política fiscal ultra-neo-liberais do actual governo, aqui.
Aposto que quando o Sérgio Lavos arranjar tempo para leituras um pouco menos superficiais – pode começar, por exemplo, pelo Ladrões de Bicicletas– consegue inventar teorias conspirativas um bocadinho menos disparatadas.»
The Constitution of Liberty, cap. 18, "Labor Unions and Employment":
«Public policy concerning labor unions has, in little more than a century, moved from one extreme to the other. From a state in which little the unions could do was legal if they were not prohibited altogether, we have now reached a state where they have become uniquely privileged institutions to which the general rules of law do not apply. They have become the only important instance in which governments signally fail in their prime - function the prevention of coercion and violence.
Um breve mas elucidativo artigo de Peter J. Boettke e Peter T. Leeson que mostra como o liberalismo se fundamenta num pessimismo antropológico que está mais próximo da verdadeira natureza humana do que o ideário socialista, daí derivando a sua grande força: a capacidade de tornar vícios e interesses de indivíduos egoístas em contribuições efectivas para o bem comum por via do mercado, sem depender de governantes com boas intenções. Ademais, não entrando pelo campo das intenções (ou não fossem os socialistas virgens ofendidas), Mises e Hayek destruíram o edifício teórico socialista ao exporem a sua fragilidade no que diz respeito à questão da informação e conhecimento, ou dito de outra forma, mostraram como o socialismo é uma impossibilidade epistemológica, mesmo quando todas as suas condições ideais são reunidas. Simplesmente não funciona, ponto.
Hayek chega ao Prós e Contras pela voz do Pedro Lomba. Ide ler a minha tese de mestrado sobre o austríaco que qualquer dia é mainstream e até a D. Fátima Campos Ferreira o citará.
Para além de estar disponível no Repositório da UTL a versão entregue ao júri, a versão revista (a entregue ainda continha algumas gralhas) e finalizada da minha dissertação de mestrado, intitulada Do Conceito de Liberdade em Friedrich A. Hayek, já se encontra no site da Causa Liberal. Deixo o resumo da mesma:
Este trabalho tem como objectivo entender como se articula o pensamento de Friedrich A. Hayek no que diz respeito à salvaguarda da liberdade individual. Começando por operacionalizar o conceito de liberdade, pretende-se demonstrar que há uma clara linha no pensamento de Hayek que articula a ordem espontânea, a cataláxia e o estado liberal de forma a gerar uma dinâmica que tem como objectivo garantir o maior grau de liberdade individual possível. Neste trabalho fica também patente a demonstração de que o socialismo e o planeamento centralizado são epistemologicamente impossíveis, e que o conceito de justiça social é o responsável pelo descrédito da política nas modernas democracias liberais. Desta forma, procura-se efectuar uma reflexão crítica, recorrendo tanto à descrição como à análise do pensamento de Hayek, que, por estar parcamente traduzido em português, carece de ser estudado como forma de o divulgar à generalidade dos portugueses.
A minha dissertação de mestrado, intitulada Do Conceito de Liberdade em Friedrich A. Hayek, já está disponível on-line no Repositório da Universidade Técnica de Lisboa. Contudo, para os eventuais interessados, alerto que estou a ultimar a revisão de algumas gralhas, pelo que brevemente será disponibilizada a versão final no site da Causa Liberal.