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Tolentino Mendonça falou, num texto que recordo não poucas vezes, no quotidiano de T. S. Eliot durante os anos em que trabalhou no Lloyds Bank. Eliot trabalhava, entre as 9h e as 17h ou as 18h, num gabinete subterrâneo, a troco de um par de libras. A certa altura, terá escrito à sua mãe, dizendo-se feliz por poder dedicar-se à poesia no tempo que lhe sobrava. Tolentino escreveu, porém, que "à medida que os anos passavam, era como se lhe faltasse o ar", sempre que Eliot apanhava o comboio, envolvido numa multidão de gente igual, com os seus chapéus, os seus guarda-chuvas, os seus fatos escuros. Eliot deixou-nos isto, para salvar todos os que, anonimamente, se lhe seguiram: «Cidade irreal / Sob o nevoeiro castanho de uma madrugada de inverno, / Uma multidão fluía sobre a Ponte de Londres, tantos, / Eu não pensava que a morte tivesse destruído tantos.»
As coisas não mudaram muito: a poesia salva vidas, mas não muda os espíritos dos indivíduos enquanto membros de comunidades. Essa é a missão do futebol (ou do desporto, em geral, se preferirem), sobretudo do futebol poético, que, como se verá, já não existe.
Nelson Rodrigues escreveu que qualquer assunto, fora o futebol, já nasce morto. Tinha razão porque o escreveu em 1970, num tempo em que os jogadores fumavam e bebiam e não investiam em mercados financeiros. Num tempo em que a bola era só a bola, e a paixão e tudo. Discutir futebol, em 2017, é uma tarefa de cangalheiros. O jogo está morto, fala-se para passar o tempo. A discussão não existe, não é sequer possível, porque o jogo não tem interesse. Há pouca paciência para o ver, porque o prazer já não vem com o jogo em si, mas com o momento do golo, com o momento da falta mal assinalada, com a discussão sem razão sobre árbitros, organismos, instituições e milhões de euros.
A bola, que alguns intelectuais menosprezam, é a força de povos inteiros – uma multidão enorme de gente que vê no jogador da bola a concretização de um sonho e de felicidade inalcançável para quem o vê jogar. É esperança e alegria. E é história.
Olhem para a Holanda de 1974, de Cruyff, uma selecção rock, feita de jogadores que fumavam, que se divertiam. E a estética da geometria variável do Brasil de 1982? Zico, Falcão e companhia pintalgavam a relva com poesia. Ou a “mão de Deus”, de Maradona, irrepetível. Quantas vezes se verá um golo com a mão marcado por um jogador quando a equipa adversária é a de um país com o qual a do primeiro esteve em guerra anos antes?
Como é que isto é só um jogo? Não é filosofia? Como é que não se há-de discutir filosofia? Como é que o futebol se tornou num quadrinho de escritório, matemática dura, coisa séria e matéria para análise? Como é que se gerou essa coisa do resultadismo? Como é que o entretenimento, que é paixão, se tornou tão sério, tão cinzento, tão vazio? Como é que se fala em empréstimos obrigacionistas, corrupção, branqueamento de capitais? Deram-nos cabo da bola. Estão a dar cabo de um povo que já não tinha nada.