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A materialização da liberdade

por João Pinto Bastos, em 25.02.14

Pensar a liberdade, num cenário de escassez de recursos, demanda amiúde uma rigorosíssima análise da realidade, o que, como é bem sabido, nem sempre é observado pelos mequetrefes intelectualeiros do costume. Nos dias que correm, atulhados, como estamos, na empáfia da ruína moral e colectiva, a liberdade tornou-se num assunto menor que não ocupa, em rigor, um único segundo da parca inteligência dos sandeus que dominam a academia. É por isso que a reflexão intelectual hegemónica no debate público fez de temas como a liberdade, a democracia, a economia política ou a distribuição do produto social, coisas menores servilmente subordinadas a projectos de pesquisa assentes em desiderataobscurantistas. A acuidade deste problema é ainda maior se pensarmos, por exemplo, no facto de a crise económica e social da contemporaneidade não ter estimulado um debate normativo suficientemente esclarecedor sobre os rumos a tomar perante o ocaso de um modelo social e económico irremediavelmente falho. Sabe-se, empírica e racionalmente, que o Estado social construído no bojo da II Guerra Mundial tem de ser reformulado sob pena de arrastar consigo a falência irredenta do organismo social, porém, também é certo e conhecido que a reconfiguração das instituições matriciais desse modelo não comporta um desenho normativo arrimado no pressuposto falível de que o poder estadual não pode nem deve, de modo algum, intervir na sociedade civil de molde a corrigir desigualdades na atribuição dos recursos societários. É aqui, justamente neste ponto, que a leitura liberal efectuada nos últimos anos por alguns intelectuais peca por defeito. Peca, sobretudo, na concepção holística da liberdade e do papel do Estado. Em primeiro lugar, a tese de que o construtivismo social (Estado de Bem-Estar) engenhosamente gerado pelos modelos sociais dos trente glorieuses deve dar lugar a uma interacção feita de e para os indivíduos oblitera um factor nada despiciendo, nomeadamente o facto de, no contexto presente, não ser de todo possível o indivíduo alicerçar um plano de vida crível e razoável sem o concurso regulatório do poder público. Dito de outro modo, no contexto económico presente, marcado por uma mundialização económica eivada de uma pluraridade de fontes de poder, é um erro sustentar que o ambiente idealizado pelo liberalismo clássico ilustrado é facilmente transponível para a realidade actual. Não o é pela simples razão de não existirem - aliás, em bom rigor, nunca existiram - mercados perfeitamente competitivos, ancorados no equilíbro geral teorizado por Walras. O exame positivo dos mercados revela-nos, ademais, uma cristalização de formas oligopólicas e monopólicas que impedem, como é bom de ver, a validade de uma concepção teorética envolta num individualismo alheio à mecânica social. Em segundo lugar, a inevitável reforma dos Estados Sociais não deve fazer tábua rasa da imperiosa necessidade de assegurar um mínimo social, isto é, os cortes em certos agregados da despesa social, assim como a abertura à iniciativa privada e à dita sociedade civil de certos componentes do Estado de Bem-Estar, terão forçosamente de ser acompanhados de um reforço regulatório por banda do Estado. Mais: a prossecução de uma agenda assente na liberdade para todos (liberdade enquanto autonomia irrestrita na realização individual dos planos de vida) terá de repensar a correcção ex-ante dos desiquilíbrios sociais, limitando a intervenção estadual ex-post à conformação regulatória dos mercados. Isto significa, primeirissimamente, a garantia de uma distribuição equânime da igualdade de oportunidades, dando consistência material às opções de cada um. Em suma, a liberdade que importa defender, sobretudo nos tempos vindouros, é uma liberdade material acompanhada da respectiva propriedade. É aqui, neste quesito, que uma concepção verdadeiramente moderna da liberdade terá de assentar os seus arraiais. Por conseguinte, o virar de página do Estado Social só fará sentido se a isso estiver subjacente uma liberdade material ancorada na propriedade, porque, como escreveram os antigos, os Maquiavel, os Cícero, os Locke, os Smith ou os Jefferson, a liberdade só é plenamente gozada se cada cidadão possuir o autogoverno da sua pessoa. É assim que, em resumo, se constrói uma res publica realmente inclusiva.

 

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