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A Mima

por Nuno Castelo-Branco, em 26.10.17

 

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 Não sabia o que significava, mas a palavra agradara-lhe e decidira usá-la assim que tivesse oportunidade para tal. Naquela tarde iria com a prima Ana Maria e a sua mãe ao Scala, uma grande sala de cinema situada em plena Baixa, sítio esse onde as pessoas não apenas iam ver uma fita, como também para serem notadas. Por isso mesmo uma ida ao cinema era então algo que agora nos surge como um eco distante de um passado mais rebuscado onde algumas glórias da moda com algum imaginado requinte desfilaram.

Estavam então naqueles anos imediatos à guerra mundial e as duas miúdas, uma delas, a Mima, residente na capital e a outra, a Ana Maria, vinda do mato de Manjacaze onde o pai era administrador, apresentaram-se diante de Maria Pinto da Fonseca para uma rápida vistoria aos laçarotes antes de deixarem a casa e rumarem à Av. da República, naquela confluência com a Av. D. Luís I, sítio esse onde existiam os dois principais pontos de encontro da cidade. Um deles, o Café Continental, era vasto e vagamente apresentado numa espécie de Deco tardio, já um tanto ou quanto americanizado. Era ali que se concentravam os homens para a discussão da política - sim, em Lourenço Marques a discussão política também era coisa trivial -, as últimas notícias dos futebóis locais e metropolitanos e as intrigalhadas de uma sociedade relativamente exígua, embora o seu espaçamento territorial à primeira vista indiciasse o oposto. Praticamente quem era quem conhecia-se e em reflexo era normal um transeunte percorrer a Avenida meneando constantemente cabeça, saudando à esquerda e à direita ou tão só levando a mão ao chapéu nos dias de torreira. Era o Café Continental o centro das Laurentinas e dos pires de camarão tigre que acompanhavam cada rodada, o café fumegante ficava para fim, significava a estocada terminal na conversa. As Coca Colas serviam para mitigar o aborrecimento dos garotos impacientes pelas conversas ininteligíveis dos adultos que para ali infelizmente os arrastavam, começando ao fim de algum tempo a balançar as pernas como forma de silencioso protesto. Por vezes, um clac! relativamente audível fazia voltar algumas cabeças em direcção ao ruído e à face subitamente avermelhada do pirralho atrevido. Eram tempos em que isso se fazia em público e sem riscos de maior.

 

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Mesmo diante do Continental existia outro recinto de comes e bebes, mas não era um Café que replicasse na concorrência o vasto espaço fronteiro, tratava-se de um salão de chá, algo que de imediato produzia na cabeça dos visitantes uma sensação de diferença e cerimonial. Ali se serviam chás, fumegantes torradas e toda a bolaria portuguesa, alguma dela tropicalizada e mais ao gosto local. Era o o Salão de Chá Scala, sobretudo querido pelas senhoras e pela filharada gulosa e melhor comportada. Olhava-se de soslaio ou descaradamente para as peças têxteis elaboradas pela modista Lauentina Borges ou tão só adquiridas numa das imensas lojas de trapos da cidade e exibidas na mesa vizinha, como infalivelmente  se comentava a próxima chegada de uma vedeta metropolitana, trocavam-se umas tantas receitas ou a ida a uma exposição no Núcleo de Arte onde fulano ou sicrana iria mostrar o que sabia ou não sabia fazer. 

Mesmo contígua ao salão de chá, existia e ainda existe fechada numa cápsula do tempo o grande cinema da Baixa, o magnífico Scala onde um dia, ainda garoto, vi actuar gente como Marcel Marceau e Gilbert Bécaud. A estes juntaram-se muitos outros cujos nomes fui esquecendo, desde os nacionais como a Florbela Queiroz, Simone ou o Duo Ouro Negro, até internacionais que aproveitavam a tournée na África do Sul para fazerem uma perninha na então bastante cosmopolita capital de Moçambique.  

A prima Mima estava ansiosa, pois lera a palavra num daquelas romances para adultos, palavra essa muito sonora, estranha e  enigmática que faria todo o sentido exibir como um troféu de caça grossa. A sua preguiça chegara para mantê-la longe da estante onde repousava o dicionário que rapidamente poderia esclarecê-la.

O filme ia correndo e o intervalo, com toda a injustiça  nunca mais chegava. Terminada a primeira parte do filme que obrigava à mudança da bobine, as pessoas normalmente saíam  e iam trocando impressões acerca da estória ou tão só aproveitavam a pausa para fumar, beber e comer qualquer coisa na sala de chá convenientemente bem próxima.

Finalmente, chegou o momento tão esperado e a Mima rapidamente se levantou, apontou o dedo à mãe e gritou:

- Levanta-te, mulher adúltera!

Dúzias de pares de olhos fuzilaram a estarrecida tia Maria.

publicado às 07:46


3 comentários

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De Anónimo a 26.10.2017 às 09:45

estudei, trabalhei e passei parte da reforma em 10 países europeus
adoro os fornecedores do  mercado de 'ménage à trois': fornecedor, matéria prima, consumidor 
há nomes famosos como: Aldous Huxley, o físico Erwin Schrödinger (o do gato simultaneamente morto e vivo)
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De Anónimo a 27.10.2017 às 10:31

A sua adoração pelo adultério é, no mínimo, estranha. É casado?

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