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a pátriaos camõesos aviõese os gagos-coutinhoscoitadinhos [...]Mário-Henrique Leiria
É verdeiramente epidémica a apologética que grassa entre a sociedade portuguesa pedindo o regresso de um Salazar. O que é notável nas vésperas de mais um 25 de Abril! Já não se trata, apenas, de uma conversa entre velhas alcoviteiras de autocarro ou reformados que jogam a bisca no jardim, mas de uma autêntica histeria que cresce progressivamente de dia para dia em blogues, jornais e espaços públicos. Salazar é que faz falta, dizem e escrevem. Impressiona como a memória não é só curta, mas ingrata. Gente que grita insultos gratuitos nos fóruns e nos jornais contra os políticos actuais, resguardando-se na figura do inviolável, casto e probo Salazar - como é possível se afinal estes são o produto daquele?
Tudo isto é tolice, como é óbvio. Quem viveu durante o Estado Novo sabe perfeitamente que aquilo não era mau, era péssimo. Até posso compreender a nostalgia de infância, o colorido dos brinquedos de lata, as brincadeiras junto ao lavadouro enquanto a mãe esfregava os lençóis de estopa - pobre mulher que, chegando a casa encontrava provavelmente um marido analfabeto e, tendo sorte, sóbrio. A maioria que clama pelo regresso desta austeridade, queixando-se da de hoje é ainda desta geração que rapidamente esqueceu as limitações (ou então não) de um país de brutos, em que o marido punha os olhos no chão quando falava ao patrão e a mulher pouco mais personalidade tinha do que um saco de batatas atilhado por uma Constituição nada favorável.
Por outro lado, para a classe alta (aquela que bajulou Salazar até ao tutano), constituída por labregos burgueses e aristocratas falidos os tempos deviam ter sido de glória e até podem ter razões para querer o regresso daquele regime catolaico, de recato público e deboche privado. Em todo o caso, não deixa de ser uma incongruência que num mundo em que se ganha dinheiro com a exploração do cidadão global se queira fechar num país orgulhosamente só. Só posso compreendê-lo à luz do estatuto e daquela noção de respeito que faz o tópico da conversa salazarista: antes do 25 de Abril é que era!. Era o quê? Não se roubava? Ninguém morria? Não se mentia? Não havia clientelismo? A política era sã e filantrópica? Poupem-me.
Salazar era um misógino ressabiado, filho de caseiros que viveu entre hortas e quis aplicar este modelo de ordenamento de quintal de Santa Comba ao resto país. Criou a ideia do doutor formado a pulso que degenerou numa coisa sem espinha dorsal nem ossos chamada boy do partido. Provinciano, o senhor Presidente do Conselho, achava que o país era um imenso potencial de força braçal movido a vinho. E, estupendamente beato e cínico, julgava os seus amigos pelas aparências, cumulando-os de prebendas em troca de silêncio e lealdade hipócrita. Salazar é o pai desta gente que construiu a III república: medíocre, saída dos bancos de escola estado novistas, da cartilha do Deus, Pátria e Família, do pobrete mas alegrete. Estes dizem repudiá-lo. Muitos gritam fascismo nunca mais, mas entregue-se-lhe o facho nas mãos e verão o mesmo modus operandi, os mesmo tiques e desejos. E isto não é sequer uma questão de democracia ou ausência dela. Efectivamente não tivemos um estado fascista, mas tivemos com certeza um regime que estimulava a mediania ou a inferioridade, em troca de valores inócuos. E isso é transveral na nossa política, da Esquerda à Direita.
A única coisa verdadeiramente trágica não é brincar à liberdade de ano em ano pelo 25 de Abril (ainda assim perdendo tempo precioso a não habituar-se a ela) nisto tudo o que é verdadeiramente tenebroso é que o Salazar-Cronos, na hora de tragar os filhos, morreu. E as crianças, hoje com 40 anos, estão aí a brincar aos cravos...