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A Sul do Céu - crónica semanal

por Fernando Melro dos Santos, em 21.10.14

Semana de 14 a 21 de Outubro, Anno Constitutio 2014

 

Socialização da apatia e da morte 

No Bairro do Zambujal, nos arredores da Amadora, deflagrou (presume-se que espontaneamente, como tudo neste país, sem causa que não o acaso) - um incêndio que consumiu uma habitação onde residiam seis crianças e os seus pais, aos quais de acordo com informação prestada por vizinhos é imputada a prática frequente da ausência, deixando os petizes à sua sorte. 

Foi essa a rifa que calhou a Samira, a mais velha (14 anos, senhores) das seis crianças, que morreu num acto de bravura e heroísmo que deveria envergonhar o somatório das figuras públicas, semi-públicas e das que competem para um dia vir a ser para-públicas, até que todos se enfiassem no esgoto de onde nunca deveriam ter saído.

Ameaçada pelas chamas, Samira retirou, um por um, os irmãos de dentro da habitação ardente. Quando terminou, ainda voltou para trás com o fito de certificar-se de não ter deixado ninguém esquecido. De acordo com alguns espectadores (tétrico, não?) citados pelos media, as autoridades não permitiram que ninguem socorresse ou auxiliasse Samira, que já não voltou a emergir do apartamento.

Não consta, até hoje, em qualquer jornal que vá ser aberta uma investigação ou que as crianças sobreviventes possam ser subtraídas à égide dos "pais". Isso seria certamente fascismo, ou pior, insocialismo. Também não consta que Samira vá ter o seu nome numa rua, rotunda, praça, ou jardim - que devem estar reservados para Mário Soares e quejandos próceres do estado a que chegou o Estado.

Mas consta que a Câmara, a mesma entidade que supostamente articula esforços com a Segurança Social para que episódios destes possam ser evitados, vai realojar a família. Assim, sem mais, e sem que alguém ache estranho. É parte do fardo que Abril nos deixou, a branda placidez democrática.

 

 

A Quadratura e o Olho na Pirâmide

Abomino António Costa, tal como me encolho, em inapelável retenção de líquidos, sempre que testemunho o efeito do discurso socialista - seja ele de esquerda, de centro ou de direita como é consequência dos cinco partidos que no burgo o defendem - nas massas famintas. Nutro uma completa abjecção pelo sorriso sintético e calculado com que o Obama do Intendente brinda o séquito renovado, essa manada de migalheiros que vende os filhos por meia dúzia de óbulos em segunda mão. 

Contudo, porque sou uma pessoa humana e como tal coerente, acho estranha a indignação, aqui e ali, por Costa ainda comentar num programa semanal emitido por uma televisão privada. E estranho, porque Costa é um só homem: nao existe o Costa cidadão e o Costa candidato, tal como não existia, aquando da indignação prévia, o Sócrates que tomou conhecimento de um facto enquanto cidadão e o Sócrates que tomou conhecimento do mesmo facto enquanto Primeiro. 

Se queremos que nos respeitem, temos que dar-nos ao respeito e isso passa por não fazermos dos nossos opositores uma espécie de bandalhos com duas faces que se viram consoante a estação, como se fossem colchões de molas. Para isso é costume alugar-se a Aula Magna.

 

 

No campo e na praia é que se está bem

Esta semana ouvimos agricultores queixarem-se, por uma vez na vida com dignidade lúcida ao não clamarem pelo subsídio salvífico, da ruína iminente que sobre eles pende devido às flutuações climatéricas, designadamente esta onda trigésimo-gradista, que se faz sentir um pouco por toda a província e que dá cabo de sementeiras, colheita e armazenamento.

Ouvimos, cabe-me esclarecer, é termo que emprego como força de expressão. Apanhámos uma notícia ou outra em rodapé, a correr, por entre relatos em directo e entrevistas em diferido a banhistas impantes de felicidade acéfala, adoradores do ritual chinelante e das intermináveis - e pouco verde-fiscais - filas de automóveis promotoras de alguns exemplos antológicos, e quiçá exportáveis, da hospitalidade Portuguesa. 

Também nos hipermercados, verdadeiros pratos de Petri para a gripe e direitos adquiridos cuja adequação ou salubridade hoje ninguém ousa questionar, ali se congregando em magotes como enxames de varejeiras sobre qualquer paul infecto, se está muito bem com este calor. Ainda hoje entrei num, em Setúbal, e havendo três lugares de entre os quais escolher, arrumei o carro no que deixava mais espaço para os eventuais turistas que me sucedessem na chegada. 

Quando regresso carregado com as minhas compras, acondicionadas dentro de sacos plásticos em quantidade suficiente para causar uma apoplexia ao imberbe reeducador que pretende passar por Secretário de Estado, constato que tenho a frente do carro bloqueada por outra viatura, estacionada na perpendicular em plena faixa de rodagem. 

Decorridos pacientes vinte minutos, surge por entre o betão um rapaz magro, com ar sério (possivelmente um trabalhador das finanças, agora elevado ao estatuto de juiz, juri, e carrasco a quem deixa de ser possível mandar para o caralho sem que sejamos logo presos) e camisa às riscas, que num só acto de prestidigitação abre o carro, salta la para dentro, e diz "desculpláóamigquistojetaimpssivelenavialugarnenhum".

Conduzi dentro dos limites de velocidade até casa e agradeci a Deus por não me ter dado ainda, que eu saiba, nenhuma doença terminal que me impelisse por desespero e indiferença a enfiar duas lambadas no focinho daquele imbecil.

 

Gandhi, Zeinal e o fantasma do mercado futuro

Vi um mentecapto na RTP2, única estação que vejo por já ter há cerca de dois anos prescindido de televisão paga, à beira de propor, horrorizado pela "quebra brutal no valor da PT", que caíra 29% em bolsa até meio do dia de ontem, mas foi prontamente "salva", até fechar a menos dez ou quinze por cento, pela intervenção dos compradores de serviço a soldo dos bancos centrais, porque, e cito, "vale certamente mais do que esta cotação - porque tem uma facturação muito interessante": que se proíba, de todo, vender seja o que for. Passa a poder apenas comprar-se. 

Só se pode comprar. Não se pode shortar, a liquidez cai do Céu, onde mora o Rei D. Carlos que foi morto por muito menos, e não se pode dizer não, tem é de se regular, banir, normalizar, dizer sim, não olhar, acreditar.

O socialismo em Portugal atinge níveis que ensombram a Coreia do Norte no tempo do Avô Kim. Aliás, basta que googlem "constitution" + "socialism", e confirmarão que não estou, ainda, totalmente louco.

A culpa não é do círculo interno, do sanctum sanctorum, feito dos pulhas consanguíneos de 1974. A culpa, irmãos, rebanho, é dos mercados. Não vejam, creiam. Não vendam, comprem. 

Cada vez mais, John Carpenter afirma-se como um realizador visionário.

 

 

Um filme

"Gone Girl", de David Fincher. A América pós-Quatro de Julho, ou da rendição voluntária ao protoplasma homuncular que "todos" descobrimos um dia em nós próprios. 9/10

 

Um álbum

"Nothing's Shocking", dos Jane's Addiction. Banda sonora para este Verão Índio. 8/10.

 

 

publicado às 11:33


1 comentário

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De Justiniano a 22.10.2014 às 10:36

Caro Fernando, apenas para, uma vez mais, o parabenizar por tão pungente crónica! Tremenda, a todos os títulos! Repito, que lhe aprecio sobremaneira o estilo vertiginoso e de estuporada indignação com que cronica! Acompanho-o, mais do que devia, na ironia desencantada certo de que rir não é o melhor remédio!
Um bem haja,  

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