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Nada surpreendente, esta súbita sincope diante da menina Mortágua, herdeira de excelsos pergaminhos consuetudinários, aqueles famosos folga e gaba-te que dão sustento a qualquer febre revolucionária, por muito duvidosa que esta a muitos possa parecer.
A direita portuguesa é sumamente tímida. Chamo-lhe tímida para não exagerar no desagradável. Ainda recordo um dia de eleições, por sinal o primeiro em que votei no já muito longínquo ano de 1979. Uma trapalhada qualquer nos cadernos eleitorais, implicando más contas e erros no descarregar dos mesmos, tinha ocasionado um momentâneo desnorte dos representantes dos partidos presentes naquela mesa estabelecida na reitoria de Lisboa. Garoto subalterno nos angariados pela AD, fui vendo a papelada e o caso foi prontamente resolvido. No fim do dia, contados os votos que não causaram surpresa à coligação vencedora, logo o chefe CDS, quiçá envergonhado pelo incómodo que as urnas causaram aos iracundos detentores da superioridade moral, prodigalizou as inevitáveis fosquinhas no lombo do senhor da FEPU - a então Frente Eleitoral Povo Unido, mãezinha daquela que seria a APU e avó da actual CDU de curiosas ressonâncias germânicas -, afiançando-lhe ..."aaaaaaaah, a vossa juventude é formidável, se a menina fulana de tal não tivesse estado atenta, ainda não era hoje que daqui sairíamos!" Como seria de esperar, a menina fulana de tal, era a filha do comissário enviado pelo Hotel Vitória. Imitando o progenitor, a espantada pioneira encafifou-se num sorrisinho envergonhado e aceitou a burguesa lisonja que de mim apenas mereceu o mais sonoro e ríspido comentário possível:
- Vocês não têm vergonha na cara.
Não têm, nunca a tiveram. Os familiares FEPU e o tremelicado CDS ouviram e não responderam, remetendo-se ao silêncio apenas interrompido pelo restolho da arrumação dos papéis. Bem sabiam que estes jogos de sombras, são coisa comum a todo o espectro político que saltita por aí em quermesse sem rifa ideológica de espécie alguma. À saída, nervosamente revirando a ponta do bigode, o senhor do CDS foi-se desculpando com o expectável ..."tenta compreender, não sejas assim, temos de ser uns para os outros". Fomos, de facto, uns para os outros. Nem sequer lhe respondi e a partir daquele momento, ignorámo-nos.
Isto serve para ilustrar o que se tem lido e escutado por toda a imprensa, enaltecendo os insípidos ditos jocosos da filial Mortágua parlamentar. Não parece ser muito difícil o tal exercício de aperto dos inquiridos, sabendo-se da buena dicha que todas estas questões, prodigamente servidas e requentadas ao longo de décadas, oferecem ao linguarejar de comissões parlamentares, escritos e mexericos jornalísticos e parlapatice televisiva. A Mortágua acha-se engraçada e logo a Meireles entra no mata e esfola, numa compita em que a deputada da direita surge em desvantagem, dado o pendor paternalista que acaricia sempre a área sua oponente. Ninharias alçadas a golpes de génio oratório, tornam-se num espectáculo que apenas nos certifica da miséria que grassa nos meios beneditinos. Qualquer arrufo, guincho ou piadinha que miraculosamente não envolva bola, chuteiras ou baliza, é coisa admirável, digno de memória futura.
Voltando ao assunto que interessa, o caso BES, apontado assalto interno a uma instituição que foi, gostemos ou não da evidência, o sustento de boa parte dos comensais do regime, fez diluir a fronteira entre o público e o estritamente privado, tornando-se num emaranhado de teias de interesses e de jogos de oportunidade de difícil destrinça. Assim, subitamente surgem irmanados na desgraça, uns valentes jogatões nos azares da plutocracia e uma imensidão de modestos acumuladores de magros pés de meia, todos eles confiantes de antemão, na costumeira garantia que o tesouro público tem significado neste tipo de aventuras. Quando ainda por cima surge a manifestação de total confiança proclamada - mas agora garantida como não dita - pela cabeça máxima da república, dir-se-ia estarmos numa espécie de nirvana securitário que encorajava toda e qualquer oportuna golpada possível de capitalizar. Apesar de todo o imbricado político-empresarial-financeiro em que caboucava a mais louca esperança de solidez, o BES era formalmente uma curnocópia privada que ninguém via como pertencendo à comunidade nacional, nãos e tratava de uma réplica do BdP. À boa maneira portuguesa, era o privado de todos, um Estado dentro e fora do Estado. Se os indícios se tornaram há muito tempo demasiadamente visíveis, muitos fingiam nada lobrigar, esperançados no sempiterno desenrasca nacional e no proverbial logo se vê! em manhã de nevoeiro. Um ínfimo exemplo? Quem passeasse pelas ruas de Lisboa e deparasse com cartazes Obra a obra, Lisboa melhora, terá alguma vez reparado nas instituições promotoras da demolição do que lá estava antes e daquilo que depois ali se ergueu, bastas vezes a expensas do património arquitectónico e do sempre discutível bom ou mau gosto, quando não da simples decência nos processos. Dir-se-ia que o tal solidíssimo grupo, era bafejado por demasiada sorte nos desafios urbanos. Dava cartas saídas da manga do urbanismo.
A queda do BES não causou estranheza alguma, talvez fatalmente ditada pelo fim dos cartapácios onde outrora se amontoavam papéis de títulos e poupanças aprazadas, resenhas de contas, saldos, teres e haveres, garantias e restante panóplia burocrática facilmente vítima de fortuitos autos da fé. Vazias as estantes dos dossiers de outros tempos, vivemos no tempo da circulação pelo éter, seja lá o que isso signifique para o nosso bem e tranquilidade futura.
Dir-se-ia ser a Dona Mortágua, a natural porta-voz connaisseuse destes milandos e timacas parlamentar-banqueiros, pois tem ADN privilegiado.
Facilmente perceberão porquê. Como diria o Soares, "riã de spêciál".