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Em Salvador, na Bahía, um taxista perguntava-me coisas sobre Portugal, o “País original”. Tinha visto um documentário na televisão brasileira sobre a “terra dos portuga” e apanhou-me ali a jeito, mesmo ao lado dele, de calção, alpercatas e t-shirt, para tirar umas coisas a limpo. Queria saber, porque não tinha percebido, qual era o nosso motor económico. Queria mesmo. Engasguei-me. Tentei mudar o rumo da conversa e fazer com que o ponto da vergonha fosse o Brasil corrupto e não o Portugal para o qual me falta sempre um adjectivo. O baiano não se deixou intimidar. Queixou-se do PT, das trapalhadas de Lula e Dilma, da desilusão que Aécio tinha sido para ele, que o apoiou, do golpe, da corrupção por todo o lado. Assumiu a sua vergonha e voltou à carga. Em que se sustenta afinal a economia portuguesa? Enchi-me de coragem e disse-lhe que o turismo estava em expansão. Que as exportações não sei quê. Que os têxteis isto, o horto-frutícola aquilo, mas que ainda é deficitário. Que a cortiça e o vinho e tal, tudo a andar. Depois apercebi-me do ridículo que estava a ser e fui directo. Sabe o que é Portugal, senhor? É igual ao Brasil, mas mais pequeno e com menos crime. Rimos. “Eles falam que somos irmãos, mas o portuga é que é o pai, viu? O filho não podia dar certo.” Depois perguntou-me se somos mesmo dez milhões. Disse-lhe que sim, mais coisa menos coisa. E o baiano riu alto. Tinha visto na televisão que somos sempre dez milhões e gritou-me, às gargalhadas, se nós não temos filhos. Engasguei-me outra vez. E balbuciei-lhe qualquer coisa como “nós tínhamos mais filhos antes, já fomos menos de dez milhões”. E o baiano retorquiu: todo o europeu fala que ter filho sai caro, mas todos na Europa tinham mais filhos quando eram mais pobres.” Saímos do Pelourinho. Na via rápida apanhamos fila. O taxista, ainda convencido da superioridade civilizacional portuguesa, afirmou, cheio de certezas, que nós não tínhamos trânsito. E eu respondi-lhe como quem anuncia o trânsito na rádio: trânsito demorado no Eixo Norte-Sul, no IC19, na A5, no túnel do Marquês, na saída para as Amoreiras, na curva do Palácio, no IC20, na A2, na Ponte Vasco da Gama, no Nó de Francos, na Ponte da Arrábida, na A4, na Via de Cintura Interna. O taxista ria-se. E, para desanuviar, lembrou-se de um bolinho que tinha visto no tal documentário. Uma coisa assim redondinha, meio amarela, meio queimada. Um pastel de nata. É isso, pastel de nata. Ninguém diria que aquilo é um pastel. Tem nata? Tem nata. Dizem que é uma especialidade. É, é. Há quem coma com canela, mas eu prefiro sem nada. E a massa é folhada, tem que estar bem crocante. Estaladiça, sabe? E o recheio não pode estar demasiado duro, não pode ser muito cozido, tem de escorrer para os dedos. Isso parece delicioso. O baiano estava louco. Mas nós temos mais. Pastéis de Tentúgal, pudim de Abade de Priscos, travesseiros de Sintra, queijadas, tigeladas, jesuítas, setubalenses. E bolos? E pratos? Portugal é rei na cozinha, baiano do Diabo, queres que te cite só os melhores pratos tradicionais? Não sei se tenho tempo para isso. E o taxista, rindo, quis explicar definitivamente por que razão os portugueses vivem melhor que os brasileiros: quando há trânsito, os portugueses não se zangam porque chegam a casa, comem um desses docinhos redondinhos, meio amarelos, e tudo passa. E nessa altura eu senti que o Brasil é o país irmão que nós merecemos. Vem tudo, como sempre, numa frase curtinha do Millôr Fernandes: o Brasil está condenado à esperança. Portugal também.