Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Em tempos disseram-me que não é possível leccionar uma cadeira sobre partidos políticos com uma certa propriedade sem ter passado precisamente por algum partido. Para podermos perceber o mundo e escrever sobre ele temos, efectivamente, de viver nele, de o experienciar.
Eu conheci relativamente de perto uma diminuta parte da realidade da JS e do PS. Alegadamente inscrevi-me, em tempos, no PSD, mas a minha ficha, misteriosamente, desapareceu e eu acabei por me afastar - não sem antes ajudar um amigo a ganhar umas eleições numa secção da JSD e ter a oportunidade de ver as coisas mais mirabolantes como betos da Av. de Roma a contratarem capangas do Martim Moniz para dissuadir os concorrentes de votar, quotas de militantes a serem pagas por alguém do partido para garantir que determinados militantes poderiam votar, o controlo exercido sobre instituições como a Santa Casa da Misericórdia ou empresas municipais e outras que tais - e sou há alguns anos militante da JP e do CDS, que é onde me sinto mais confortável em termos ideológicos.
Neste âmbito, uma das actividades que mais me apraz desempenhar é a de estar nas mesas de voto, ajudando a que os actos eleitorais intrapartidários decorram com normalidade. Como cientista político, é uma posição privilegiada que me permite observar determinados comportamentos. Talvez um dia, num livro de memórias que não interessarão a ninguém, deixe registadas certas impressões pessoais. Mas vale a pena adiantar somente o óbvio que talvez não seja tão óbvio para quem não circula nestes meandros: na politica intrapartidária, as ideias e os programas valem absolutamente nada, e estratos sociais ou idades (dos 14 aos 90, literalmente) são também absolutamente irrelevantes quando está em causa a vitória numas eleições. Muitas vezes, aqueles que se preocupam em criar um programa, propor e debater ideias e propostas perdem para os que conseguem mobilizar mais militantes, não apresentam qualquer programa e, no fim, até têm o supremo descaramento de se dizerem convictos de que venceu o melhor projecto.
É o vale tudo do maquiavelismo, essa má moral e péssima política, segundo Wilhelm Röpke. Que, do meu ponto de vista, ganha contornos particularmente perversos quando é praticada por católicos (podem sempre invocar Richelieu, embora não me pareça um exemplo particularmente edificante). A distância que vai do que se proclama ao que se pratica torna-se gritante, mas com certeza que umas avés marias e uns pais nossos lhes garantirão um lugarzinho no céu.
Tenho sorrido sempre que leio ou oiço alguém dizer que António Costa não é ideologicamente diferente de António José Seguro, e que nem sequer terão ideias diferentes quanto aos problemas principais que nos assolam. Não percebem que isto interessa para muito pouco ou nada no que à vida interna dos partidos diz respeito. E escapa à minha compreensão com que autoridade um líder partidário que emerge deste género de processos políticos pode exigir a outro líder partidário que se coloque o debate no plano das ideias e não no das pessoas - o que reflecte apenas a hipocrisia reinante. Como em tempos ouvi a alguém, a democracia também é demografia, i.e., o valor de cada um é medido pelo número de votos que vale, pelo caciquismo.
Adopto, naturalmente, a máxima, que de tantas vezes repetida se tornou um cliché - e frequentemente é até invocada pelos que procuram justificar os seus actos ilícitos, desonestos ou até ilegais - de que a democracia é o pior regime à excepção de todos os outros. Na esteira de Robert Dahl, sou democrata mas não deixo de criticar a democracia. Mas a democracia, para poder sobreviver, necessita de ser aquele regime que se corrige e regenera a si próprio, onde se exerce a autocrítica, à maneira de Karl Popper, e onde uma certa ética tem de imperar, procurando evitar-se a anaciclose. A democracia é, como ensinava Raymond Aron, a institucionalização do conflito. E neste não pode valer tudo, acrescento eu. Afinal, até na concepção clássica de guerra há respeito entre os adversários, regras e limites éticos.
Não é por acaso que os clássicos são sempre os clássicos. No princípio do século XX Ostrogorski e Michels observaram o funcionamento dos partidos políticos e não parece que as coisas tenham mudado muito. Para quem ainda prefere quebrar a torcer e repudia a máxima "se não os podes vencer, junta-te a eles", torna-se fácil perceber as razões na origem da desilusão de Michels com o SPD e a subsequente atracção pelo fascismo. E talvez também aqui se encontre uma parte da chave para compreender fenómenos políticos que se vão verificando no continente europeu, como os elevados níveis de abstenção, a reduzida participação política e a ascensão dos partidos de extrema-esquerda e extrema-direita.