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Uma pessoa que me é querida costuma apoiar-se, com crença e rectidão, no axioma de que se todos pagarmos, pagaremos todos muito menos.
Eu dou boleia a toda a gente que encontro na berma; pretos, brancos, roxos, putas, engravatados, estudantes, vadios, até ao mais boémio sevandija de Odivelas dei uma vez transporte sem mais querer do que ele ficasse quedo lá onde o deixei.
Seria de esperar, pela lógica da minha pessoa querida, a reciprocidade, uma vez que eu pratico o bom costume, propalo-o, e dissemino a sensatez de o fazer gratuitamente.
Hoje caminhei 35 km, de livre vontade, para ir almoçar com os meus amigos mais próximos, os que me são equilibrantes. E depois voltei de comboio, até à estação mais próxima da minha casa, que ainda assim fica a 7km bem medidos.
Passei pelo Lidl, comprei pão, uma torta para servir quando os meus pais cá vierem, e comida para o gato, o que no seu todo me ratificará como cidadão-contribuinte de primeira categoria. O gato, senhores.
Fui pedindo boleia desde o St. Peter's School até quase à porta de casa. Vi grunhos pançudos ensimesmados a arrotar o whisky reles do almoço, cabras platinadas aninhadinhas no Audi contraído a golpes de dívida em nome do corno respectivo, miúdas com ar bordelesco transidas no reflexo das unhas de gel, e uns bacanos a cantar em voz alta o que emanava dos auscultadores. Muitos comerciais, muitos camionistas, muitos taxistas.
Nem uma puta de uma alma olhou para mim duas vezes.
Se todos dermos boleia, seremos todos retribuídos muito mais provavelmente.
Este é o último post que escreverei no Estado Sentido, durante uns bons tempos. Progressivamente, perdeu-se a minha réstia de identidade com o esquisso luminoso que este projecto tentou, e tenta, associar ao mundo em que vivemos. Aqui não faço nada, porque escrevo para portugueses, e os portugueses são a expansão do grupúsculo viário que trouxe à colação neste post.
Este blog merece mais, e para isso existe o Samuel, esperança maior da sua geração e um amigo eternamente presente; e a equipa que sabiamente tem vindo escolhendo, acutilante e certeira. Não enjeito a voz que aqui me foi dada, muito pelo contrário; simplesmente não consigo suster a náusea de saber quantos são, no meio da horda, os leitores que entendem aquilo que escrevo.
Chamemos-lhe uma pausa, pois nem sequer comunicara, até aqui, pelos devidos canais este meu estado de alma.
Um último agradecimento à Sílvia Vermelho, sem cujo ânimo pouco desta história teria sido possível. Um abraço.
E vós, votai, que é aquilo que melhor fazeis.
Até sempre.