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Do desrespeito pelas tradições

por Samuel de Paiva Pires, em 26.10.15

Se há algo que os desenvolvimentos recentes no panorama político luso nos têm mostrado é que assim como podemos contar com a direita e o seu natural temperamento conservador para respeitar as tradições, mesmo se emanadas a partir da esquerda socialista e sempre tendo servido os propósitos desta e da conversação que é a política entre uma esquerda e uma direita que, em democracia, são adversárias mas não inimigas, também podemos contar com os socialistas e progressistas e as suas mentes prenhes do construtivismo dogmático e do revolucionarismo para desrespeitar as tradições quando assim lhes convém. Ademais, ter de ouvir Pedro Filipe Soares, que propugna uma ideologia totalitária, a afirmar que "Em democracia mandam os votos e não as tradições", quando a democracia liberal é, por definição, tradicionalista (para os interessados, veja-se como conservadores e liberais como Friedrich Hayek, Karl Popper, Michael Polanyi ou Michael Oakeshott defenderam a democracia liberal precisamente considerando o seu carácter tradicionalista) só acrescenta substância à ideia  de que a má fama da política fica a dever-se ao facto de ser protagonizada por gente não só muito pouco decente como assaz ignorante.

publicado às 09:54


7 comentários

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De Rodolfo a 28.10.2015 às 23:42

Pode-me dar uma referência do tradicionalismo da democracia liberal. Se fosse de Hayek, agradecia..
Obrigado
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De Samuel de Paiva Pires a 29.10.2015 às 11:11


Em resumo, Stephen Turner, no artigo “The Significance of Shils”:
“One aspect of this debate has recently been much discussed in connection with Isaiah Berlin, who recently died (see Ignatieff 1998), and his doctrine of the plurality of values. Berlin was in some ways an unrepresentative figure of a group that had no truly representative figure and indeed was not a group so much as a current of thought within which there were a large number of personal relationships. But it was a deep current, and the commonalities between its concerns was strong. Among its major contributors were Michael Oakeshott, T.S. Eliot, Michael Polanyi; at a degree removed, Friedrich Hayek and Karl Popper; and more distantly yet, Berlin, as well as some thinkers who are now less well known, such as J. P. Mayer and the Catholic Christopher Dawson, both of whom were associated with Eliot, who was Mayer's editor at Faber and became a personal friend. Mannheim's wartime writings are also touched by these concerns and evolved through contact with some of these figures; several of them used Mannheim as a foil for their own arguments. 
The commonalities were these: they rejected the ideological cast of mind, and sought to identify and defend something valuable at the basis of liberal democracy that could not be understood in the Marxian way as an ideology. They did not so much find this thing-which they most frequently called "tradition" - as find arguments for its ineffability, its irreducibility to explicit doctrines or creeds; for the inadequacy of such notions as norms and values, or for that matter principles, as a means of characterizing it; and for the peculiar qualities of tacitness and commitment that it possessed. Moreover, they found traditions, cultures, and the like in places previously not thought of in these terms, such as factories and the laboratories of research science. Rationalism, reductivism, and the closure characteristic of ideological systems was the error they sought to avoid: explaining the rise of ideology was for them a problem of explaining a pathology. But the term "ideology" was treated with great care. It was the term of their enemies, and suspect in many of its uses.”


Mais especificamente, como escreve João Pereira Coutinho no seu livro Conservadorismo, qualquer tradição digna desse nome é uma ordem espontânea, pelo que toda a teorização de Hayek sobre a ordem espontânea tem precisamente o cariz tradicionalista. Além disto, Hayek entendia as tradições como sistemas de regras de conduta, que teorizou, por exemplo, em “Rules, Perception and Intelligibility” e “Notes on the Evolution of Systems of Rules of Conduct”, ambos incluídos na colectânea Studies in Politics, Philosophy and Economics, no capítulo “Freedom, Reason and Tradition” em The Constitution of Liberty, no epílogo ao volume 3 de Law, Legislation and Liberty, intitulado “The Three Sources of Human Values” e em vários capítulos de The Fatal Conceit. Outro artigo particularmente útil é da autoria de Edward Feser, intitulado “Hayek on Tradition” e pode encontrá-lo em https://mises.org/sites/default/files/17_1_2.pdf.


Já a respeito de Popper veja-se “Towards a Rational Theory of Tradition” em Conjectures and Refutations; de Oakeshott, o ensaio “Rationalism in Politics” ou On Human Conduct onde teoriza o conceito de prática como tradição e defende a associação civil, conceito semelhante ao de ordem espontânea de Hayek; e de Polanyi, Personal Knowledge ou The Tacit Dimension.
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De Rodolfo a 29.10.2015 às 12:04

Aponta várias referências interessantes. Certamente que me debruçarei sobre elas. Já estou habituado a ler Hayek. No entanto, a minha dúvida inicial permanece. Como é que a democracia liberal é uma tradição? Não serão os regimes ditactoriais/totalitários a tradição, já que é o caminho que as sociedades normalmente tendem a tomar ao longo da história?
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De Samuel de Paiva Pires a 29.10.2015 às 12:33

Nao existe "a" tradição, como certos partidários do integralismo pensam, mas sim tradições. A democracia liberal é tradicionalista na medida em que assenta em práticas - compostas por conhecimentos tácitos e que frequentemente não são explícitos - transmitidas ao longo das gerações e está aberta à discussão crítica das mesmas, sendo uma tradição dinâmica que permite a mudança através da evolução interna das suas componentes e da competição externa com outras tradições (como postula a teoria da evolução cultural de Hayek). Os autores citados equacionam a tradição com ordem espontânea, sociedade aberta, sociedade livre, no fundo, a democracia liberal. Ao mesmo tempo, refutam o imobilismo característico de sistemas ditatoriais que, porventura, se poderão considerar como tradições estáticas. Num paralelismo com um célebre artigo de Hayek sobre o individualismo verdadeiro e o individualismo falso e com os dois tipos de racionalismo que estes autores analisam, o dogmático/construtivista e o crítico/evolucionário, poder-se-á falar também em tradição verdadeira e tradição falsa. E como assinala José Adelino Maltez (http://estadosentido.blogs.sapo.pt/1880207.html), “Tradição tanto é o acto de transmissão de um conjunto de valores morais e espirituais, como integra cada um deles numa corrente de conhecimento e de sabedoria provindas de plurais fontes culturais. (…) A autêntica tradição sempre admitiu o verdadeiro progresso, porque este nunca pode ser visto decepadamente, como um mito desprendido das origens."

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De Rodolfo a 29.10.2015 às 18:49

Já vi que vai ser difícil para mim o acompanhar. Tem bastante mais conhecimento do que eu, apesar de ser difícil, até para mim, encontrar pessoas com 'capacidade' para discutir destas coisas.

De volta ao assunto.. certamente que fala em tradições como parte da cultura, e esta contém uma enormidade de conhecimento, e por ser, como disse, tácita, é difícil para os conservadores explicarem as razões para muitos dos seus comportamentos. Em relação ao processo de transmissão, há algo que não concordo com Hayek (apesar de ele fazer referência em 'Fatal Conceit' à evolução da cultura estar mais próxima do lamarckismo), que é o facto de ele dizer que a transmissão de tradições bem sucedidas se fazem por 'selecção de grupo'. Penso que em parte tem razão, mas na componente mais fundamental, a transmissão de tradições é feita por imitação e não por eliminação (ao contrário da biológica, daí que considere que a expressão "darwinismo social" não tem qualquer sentido lógico). Também entendo que o conceito de lei, normas e cultura para Hayek (e para mim também) é externo à parte governamental (mas também não gosto do facto de se retirar o governo completamente para fora do mapa, no estudo da sociedade).


No entanto, eu não consigo entender como a tradição da democracia liberal pode ser comparado com a tradição da propriedade privada, ou da família, ou da religião. Normalmente as tradições culturais têm a função de restringir o comportamento instintivo dos indivíduos. Quanto à democracia, parece-me que legitimiza os próprios comportamentos instintivos. 
Compreendo que a monarquia seja algo que se possa chamar de 'tradição', já que produz estados estáveis da sociedade (regimes monárquicos duraram muito tempo) e que está em concordância com a teoria do conhecimento de Hayek, já que há uma quase que posse (propriedade particular) da administração governamental, o que favorece a especialização da sociedade.
No meu entender, a democracia é completamente o contrário disto. As pessoas que, através da experiência (empírico), votam no candidato errado, não perdem 'voz' na próxima eleição, e vice-versa. Além disso, não há divisão do conhecimento no processo democrático, já que todas as pessoas devem possuir uma enormidade de informação para decidir em que partido votar. Eu considero a democracia um sistema bastante retardador da sociedade em termos de complexidade. Se não fui claro em relação a algum ponto, posso explicar melhor o que disse :)
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De Samuel de Paiva Pires a 05.11.2015 às 15:14

Caro Rodolfo,


Peço desculpa pela demora, mas estou assoberbado de trabalho e sem tempo para vir até aqui e poder responder-lhe adequadamente. De qualquer das formas, sou apenas um estudante destas matérias e ainda estou a terminar a tese de doutoramento, precisamente sobre a relação entre tradição, razão e mudança. Depois de a terminar, terei todo o gosto em continuarmos a nossa conversa. Aproveito para lhe deixar o meu e-mail para que o possamos fazer: samuelppires@gmail.com


Saudações
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De Rodolfo a 08.11.2015 às 13:42

Muito bem. Quando estiver disponível, envie um comentário como resposta a este. Eu envio-lhe o meu email, e conversamos sobre o assunto deste post. 


Bom trabalho,
Rodolfo

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