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Do poder e da estupidez em tempos de coronavírus

por Samuel de Paiva Pires, em 29.05.20

Quando, há uns dois meses, escrevi que iríamos assistir a mudanças sistémicas à escala global, não tomei partido quanto à direcção destas, isto é, não formulei nenhum juízo sobre se as mudanças seriam para melhor ou pior. Mais ou menos na mesma altura, começaram a manifestar-se na opinião pública aqueles que, pretendendo avançar as suas agendas ideológicas, logo vaticinaram velhinhos “amanhãs que cantam”. Muitos decretaram pela milésima vez a morte do liberalismo e do capitalismo e anunciaram um mundo novo marcado pela bondade e pela compreensão de que os nossos excessos das últimas décadas teriam necessariamente de dar lugar a um mundo mais harmonioso - uma manifestação da fé iluminista no progresso (seja lá este o que for). Outros, em posição diametralmente oposta, preferiram defender a globalização e a ortodoxia liberal, proclamando alguns deles, também pela milésima vez, o império da economia sobre a política, como se estas fossem mutuamente exclusivas. 

Ora, o mais provável é que Richard Haass tenha razão, a crise acabará apenas por acelerar as tendências verificadas nos últimos anos. Os crentes nos diferentes progressismos parecem esquecer-se que a história não progride de forma linear e que há duas características da condição humana aparentemente imutáveis e frequentemente amalgamadas: a luta pelo poder e a estupidez.

Não é por acaso que o poder é o fenómeno central da Ciência Política, assim como na Teoria das Relações Internacionais, especialmente para realistas e neo-realistas, segundo os quais o poder é a moeda da política internacional e esta é sinónimo de power politics. Nem sequer o projecto de integração mais avançado no mundo escapa a isto, como temos vindo a aprender duramente desde 2008. Porém, em Portugal, não faltam defensores da narrativa espelhada na capa de uma revista holandesa, segundo a qual os países do norte da Europa são muito produtivos e frugais ao passo que os países do sul são pouco produtivos, gastadores e pedintes em relação aos do norte. Como já escrevi anteriormente, para estes, que no ano de 2020, tendo já passado pela crise do euro, ainda não conseguiram perceber que a União Económica e Monetária tem falhas estruturais conducentes a um funcionamento perverso que privilegia os países do norte e prejudica os do sul, dificilmente haverá salvação. Os seus vieses cognitivos e ideológicos, para além da ignorância da história do projecto de integração europeia, não lhes permitem vislumbrar e compreender a dimensão política, de luta pelo poder, no cerne do projecto do euro. Para outros, aqueles que acreditam num qualquer modelo de harmonia à escala global que descerá sobre todos nós em resultado da crise actual ou de outra qualquer, também não sei se haverá salvação, mas um estudo minimamente aturado da história da humanidade poderá ajudar a alcançar uma melhor compreensão da condição humana e da centralidade do poder nesta.

Por outro lado, a crise actual permitiu também perceber - se dúvidas houvesse - que a fé iluminista nas capacidades da razão humana é assaz sobrevalorizada. Num mundo hiper-mediático, a estupidez tornou-se particularmente visível. Entre líderes mundiais, lideranças políticas domésticas e burocratas que decidem e implementam medidas abstrusas, opinion makers que se aliviam de disparates e cidadãos que nas redes sociais partilham teorias da conspiração e óbvias fake news, este tem sido um período particularmente prolixo. Haverá muito trabalho para aqueles que se queiram dedicar a documentar as diversas manifestações de estupidez a que temos assistido, como o Nuno Resende aqui fez ontem. Certamente poderão apoiar-se nos trabalhos desenvolvidos por Paul Tabori e Carlo M. Cipolla. 

publicado às 15:15


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