Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
O golpe de ontem deixou no éter alguns sentimentos desencontrados, entre uma boa dose de optimismo pela possível queda de Erdogan que apesar de eleito não engana seja quem for e um certo temor pelo regresso dos militares ao poder numa zona muito instável, tendo nós forçosamente ainda a considerar, as consequências do acto em si.
Vejamos então o que as primeiras 24 horas nos deram:
1. Um presidente que felizmente se mantém despreocupadamente a passear num avião em todo o espaço aéreo turco durante horas a fio e em permanente contacto popular através da internet que execra e tem combatido com denodo.
2. Militares que são tão incompetentes que nem sequer lhes terá passado pelos esboços de golpe a captura de Erdogan durante o sono no palácio presidencial, estivesse ele a ressonar em Ancara, Constantinopla ou Antália. Nisso, os seus colegas egípcios bateram-nos aos pontos, capturando e em três tempos engaiolando Morsi.
Consequência imediata? Um reviver em plena Constantinopla, de cenas que ocorreram aquando da desastrosa queda da cidade imperial em 1453 e bem próprias de outras imagens que os media ocidentais ostensivamente censuram, referentes às mais moderadas façanhas do até agora aliado de Erdogan - não esquecer os seus até agora bem conhecidos sponsors estrangeiros -, o Estado Islâmico: estão aqui.
Divulguem-nas imediatamente.
3. O vergonhoso linchamento de soldados que se renderam, com pelo menos uma decapitação confirmada. No rescaldo do "golpe", verificou-se o linchamento em plena via pública e alegadamente perpetrado por "populares furiosos". Onde é que já vimos isto?
4. O anúncio-sugestão de uma próxima restauração da pena de morte, decerto para ser aplicada a posteriori nas pessoas daqueles que ontem incorreram no alegado erro. Por outras palavras, legisla-se e depois aplica-se retroactivamente. Democrático e aceitável, dirão alguns.
5. O anúncio do saneamento de milhares de militares em termos de limpeza geral - após um alegado golpe, compreende-se, não é? - e o que se torna estranhíssimo, de milhares de juízes - cerca de 2745, pelo menos é o que anunciam -, procuradores, etc. Enfim, o súbito, oportuno e lampeiro desaparecer de cena daqueles que impedem a tomada do poder total por parte de Erdogan e respectiva entourage da mesquita azul.
6. Fui livremente eleito!, dirá ele. Foi, é verdade e por isso mesmo decidiu fazer encaminhar a Turquia para uma situação que nem muito remotamente se parecerá com aquela que constitucionalmente ainda existe. De facto, tudo indica que o kemalismo finalmente foi liquidado no espaço de umas horas. Eles são islamitas e atreitos a vinganças de gerações. Fica assim resolvida a questão do fait accompli que um dia Attatürk ousou colocar ao Sultão-Califa.
7. Derrotado na Síria, onde foi desmascarado por Putin, saltando à vista a escandalosa cumplicidade com o Estado Islâmico. Derrotado na luta da propaganda que deu a conhecer ao mundo o fornecimento de armas e o livre negócio do petróleo roubado no Iraque e na Síria pelos islamitas do chamado "daesh", nome amável - sobretudo nos órgãos de comunicação social franceses, sempre muito aflitos com a sua catastrófica situação interna - que esconde a designação Estado islâmico. Derrotado economicamente em casa, devido às contra-medidas russas que privaram os cofres turcos de um caudal de dinheiro propiciado pelos turistas que ocupavam boa parte dos hotéis do Mar Negro. Erdogan tinha de fazer alguma coisa e isto pode ser bem a consequência visível, aproveitando os rumores de preparação de um golpe gizado "ailleurs" e em consequência conduzindo as coisas em seu proveito. Pelo que se vê, conseguiu e agora pode livremente preparar o "render da guarda", não tendo já de se preocupar com aparências que amofinassem os europeus.
Veremos qual será a evolução nos próximos tempos, mas não nos custa nada imaginar que neste momento Erdogan estará ancho, tão inchado e vaidoso como Hitler terá estado após a Noite das Facas Longas.
De uma coisa podemos estar certos. Poderão fazer, barafustar, choramingar e dizer tudo o que quiserem em Bruxelas, mas a opinião pública ocidental tem agora um excelente e imperdível pretexto para se opor à adesão turca à U.E. - apresentando-lhes o argumento do "Estado de Direito, as liberdades e democracias" e outros blablabla constantes nos papiros linguarudamente desenrolados em todos os telejornais -, mesmo que esta apenas compreendesse a Trácia Oriental que com Constantinopla deveria a Turquia ter perdido no rescaldo da I Guerra Mundial. Não fosse aquele também "estranho caso russo", a situação geopolítica seria hoje bem diferente.