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Kramer contra Kramer

por Fernando Melro dos Santos, em 26.04.15

João e Maria separaram-se após dez anos de relacionamento, sete dos quais passaram casados. Foi a morte do pai de Maria, acometido de doença incurável, que precipitou o inevitável. Um dia, João chegou a casa e não tinha dinheiro na conta, roupa nas gavetas, nem ideia das facturas que estavam para chegar-lhe à caixa do correio. Também não sabia onde estava o filho de ambos, à data com cinco anos, supostamente recolhido pela mãe, como todos os dias, à porta da escola chegado o crepúsculo. Foi ali que acorreu, e ali que encontrou a criança, a quem explicou de imediato e ao longo dos cinco meses seguintes que tudo iria ficar bem, que nada naquele cataclismo fora previsível, e muito menos culpa dela. O pai e a mãe teriam muita coisa para resolver, que não se ralasse, cada ingrediente da sua vida quotidiana ali estaria sem mácula dia após dia, e filme após filme, tentativa após erro, João lá desenhou uma planilha da coisa.

 

Maria queixava-se muito. Quando a mãe morria de cancro numa ala do IPO, Maria ia para a praia com as amigas porque se queixava de não poder suportar os caminhos do sofrimento. Quando não trabalhava, queixava-se de não ter trabalho; e quando o tinha, de algum alvo a abater que surgisse pela frente tornando a função um purgatório bradável na gama completa da histrionia maníaco-depressiva. À falta de um boneco profissional que se prestasse a encarnar Belzebu, João assumia as expensas, nos espaços que lhe sobravam entre os três empregos que mantinha para honrar as despesas decorrentes dos compromissos de ambos e das sucessivas "baixas médicas" que Maria invocava. 

 

João não se queixava de nada, só queria ser deixado em paz: pelo Estado, pelos pais de cuja casa praticamente tivera que fugir mal atingida a emancipação legal e a velocidade de cruzeiro com que irrompera pelo mundo do "desenrasca-te", algures em torno do seu décimo-quinto ano. 

 

Era apenas natural que João e Maria, sete anos mais velha, amadurecessem em sentidos diametralmente opostos. João lia ensaios, Maria telenovelas; João preferia jantares em casa entre amigos, Maria "viver o mundo" a dançar, comer, beber, rir, e ignorar a semana seguinte. João contava tostões, Maria gastava por conta do trimestre seguinte. 

 

Divorciaram-se de jure passados seis meses, altura em que Maria voltou a assomar à parte do mundo onde João e o filho de ambos se moviam. João fora aconselhado pelo causídico que o representava a requerer para si a custódia do menor, mas intransigente perante a gravidade da causa, decidiu que o mais justo, removendo-se a si mesmo da equação, seria confiar na providência natural e deixar que ambos os progenitores assumissem o dever parental em igual medida; e assim aconteceu.

 

Vinte dias após a confirmação documental do acto, João fechara os olhos e lançara proa à reconstrução da sua vida: procurou incessantemente uma nova companheira, entregou-se  ao trabalho (onde foi promovido de forma recorrente), fez amigos, viajou, cuidou da sua imagem. Nesse mesmo interim, as dívidas de Maria acumulavam-se até que surgiu com um novo namorado, em simbiose com o qual decidiu que o acordo, semanas antes assinado com João, não servia os interesses do menor. 

A saga durou um ano até que Maria, mediante confissão escrita e na sequência de inúmeras e brutais discussões com o errante que escolhera para seu parceiro de cama e mesa, rogou a João que travasse o novo processo antes que, temia, tramitasse em julgado aquilo que João sempre deveria ter pugnado por que tramitasse. João acedeu. 

 

Desde essa parte até ao final do quinto ano contado a partir do fim da quezília, João manteve-se fiel aos seus princípios de invidualidade e libertarianismo: fazendo pela sua vida, prestou-se sempre a que os verbos ouvir, escutar, responder, acompanhar, mostrar, partilhar, incutir, soltar, e explicar fossem o cabaz de bitolas pelo qual gerir a sua relação com o seu filho, que crescia ávido de tempo e, para angústia e desespero de João, dividido entre dois mundos simetricamente imiscíveis. 

Maria passou dez anos sem cuidar de si vivendo em função da criança, levando a uma inversão de papéis entre ambos - Mãe e filho - cujas consequências até hoje atormentam João, que se viu acuado e reduzido a um papel levado por falas escritas em cima do joelho, redefinidas à medida do menor dano possível. As dívidas de Maria engrossavam Olimpicamente, pois no seu imaginário competia no plano material com João, a quem a fortuna e o mérito haviam sorrido, mas que continuava a contar tostões. 

 

Hoje, volvidos treze anos, Maria tem um companheiro, que conheceu quando finalmente optou por cuidar de si. João vai vivendo da melhor forma que pode, qual malabarista a quem duendes travessos oleiam sempre a palma das mãos entre movimentos; passou por emprego, desemprego, empresariado, falencia, deserto e oceano, esperança e viuvez; tem uma namorada com quem o amor flui e é belo, vive do que juntou e do seu trabalho, pratica o voluntariado e a benemeritude, faz por conviver com o seu passado de falhas e de disfuncionalidade, cultiva a sua horta e lê os seus livros, como há quase quarenta anos - João aprendeu a ler sozinho aos quatro anos e está quase a fazer 44, um número hoje cabalístico pela mercê do recluso Pinto de Sousa, maior avatar da portugalidade e que tudo tem a ver com a historieta aqui contada, pois encarna a animalidade que subjaz às Marias do nosso tempo. 

 

O filho, esse alberga até hoje uma raiva ao Pai, de quem se considera um igual, por este nunca ter vivido em função anulada (valerá a pena demonstrar-lhe que a abnegação conta mais? deixo aos semióticos) da sua prole, mas cooptado por não morrer mirrado e sozinho, recostado num sofá balbuciando inanidades pós-mariscada. Até à vera hora em que estas linhas vêem o dia, um jovem vive torturado e na senda da ilusão porque na dicotomia que a sociedade moderna promove, nenhum instrumento lhe foi dado que permita entender (ah, mas curricula pejados de futilidades e das maiores devassas ao saber e à língua, isso sim, já temos desde Guterres) a clivagem entre os dois pólos da sua bússola:

 

- que João tem procurado sempre erguer do nada aquilo que deveria ter estado, e permanecido, na concepção da sua descendência: uma casa, um lar, uma família funcional, em que cada um puxa por si e ao fazê-lo dá alento a um resultado maior do que aquilo que o precedera; e que com isto oferta ao seu filho a liberdade de ser quem quiser, até mesmo alguém que odeie os princípios do pai.

 

- que Maria corporiza, mais do que um escoadouro para as psicopatologias próprias da mulher hodierna, o estado de falência mental a que todo o país chegou.

 

E vós, senhores Deputados, comei e bebei, e entregai comércio aos Vossos afilhados, e permiti por Vossa Graça que passem mais quarenta anos sem que nada mude, nada se ganhe. 

 

A transformação virá de baixo.

publicado às 14:20


2 comentários

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De Jose Domingos a 27.04.2015 às 21:45


Excelente texto. Até dói.
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De nenhum a 02.05.2015 às 16:25

Caro MELRO, isso é que é ACERTAR. No alvo. É isso mesmo. 
Muito bem. Essa veia para a escrita é libertadora, encorpora, dá forma. É como pintar, mas com palavras. 
A transformação vem de baixo, sim, a questão é que há encardidos, que neste estado  -  de encardidos - realizaram a sua ambição -, e seguem, como os carneiros, o ( mau) pastor. Portugal está cheio de carneiros, cegos, cansados, marrecos de tanto acenar com o «sim», que, por sua vez, são seguidos por outros. Os ovelhas ranhosas, que não destrinçam e se contentam com o clássico sono português. Na verdade, acordam para empurrar o futebol e expressarem em modo evangélico o seu amor profundo ao 44. Portanto, quando «PGR» disser que não ha corrupção em Portugal, não esqueçam que antes dele, existem, pelo menos, os gajos de Évora e da avioneta, peritos no hit Grandôla Vila Morena, que põem a manápula no fogo pelos seus governantes.
BTW, a MARIA do texto, deve ser XUXA, pois consome e não paga. Ouvi dizer que há umas contas de luz, água e não sei o quê, consumidas pelo partido da Moreirita, e que estão por liquidar. Que feio. Eu não quero estas «MARIAS» no governo, prefiro os «JOÕES». 

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