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A vergonhosa decisão dinamarquesa em confiscar bens a quem ao país chega como refugiado, não é inédita. O mesmo aconteceu noutras épocas e pelo menos por decisão de três outros governos. A primeira respeitará ao geralmente conhecido saque nazi aos judeus alemães e de todos os territórios que a Wehrmacht ocupou. A segunda, às jóias que o governo de Salazar decidiu manter em guarda no BNU/BdP, logo após a conquista do Estado da Índia por parte do exército de Nehru. Durou mais de meio século, essa pretensa guarda de bens que sem alguma dúvida pertenciam aos depositantes. Entretanto morreram muitos dos seus proprietários e descendentes directos, tendo sido há pouco procedida a devolução a familiares de terceira e quarta geração.
Vamos então ao terceiro caso. Governo? O português, dirigido então por Vasco Gonçalves. Ano? 1974 e 1975. Local? Antigo Ultramar.
Assim que tomou posse após a demissão de Palma Carlos, logo fez chover sobre os territórios africanos diplomas e ordenações vexatórias, desde normas correspondentes às transferências de bens, às outras que incluiam emissões de rádio, programas educativos nas escolas, liceus e universidades locais. A mais absurda terá sido o confisco puro e simples das posses daqueles que seriam prosaicamente chamados de retornados a um país onde a maioria jamais tinha estado. Enfeitavam-se os regulamentos normativos com excitadas manifestações de benquerença para os futuros países que todos previam como inevitavelmente independentes a curtíssimo prazo, logo de forma nítida surgindo o jargão habitual da sabotagem económica como justificativo. Como a imaginação era escassa, recorreram aos manuais.
O saque foi extensivo, embora paulatinamente tornando-se mais visível e descarado a partir do inverno local de 1974, os meses correspondentes a Agosto, Setembro e seguintes. A Coordenadora do MFA e o diligente ministro da Coordenação Interterritorial - um rápido ersatz do então disparatadamente extinto Ministério do Ultramar -, decidiu colocar de vigilância nos aeroportos Gago Coutinho (Lourenço Marques) e Sacadura Cabral (Beira) - idem quanto a fronteiras terrestres e marítimas -, soldados recentemente chegados da Metrópole, hipoteticamente comandados por oficiais bem escolhidos. Limitavam-se a desfraldadamente passear de G-3 assestada e de cigarro no canto da boca. Iam olhando com um ar vagamente feroz para aqueles que embarcavam para as vitalícias férias. Nos pontos de check-in havia uma pretendida revista minuciosa das bagagens, mas a desordem era evidente, uma expectável luso-desorganização que facilmente permitiu o logro de coortes de militares postados no terreno à cata de despojos destinados não se sabe bem a quem. Alguns deles dir-se-ia encabulados pelo triste e escabroso serviço a que estavam obrigados, talvez assim se explicando a falta de cuidado na organização dos espaços de revista que naquele caso, permitiu um episódio em que gostosamente participei, industriado pelo meu pai.
Chegámos ao aeroporto à tarde, pois o Boeing 707 partiria ao anoitecer e era necessário proceder às formalidades de embarque, entre as quais a caprichosa revista de bagagens. Num relance, o meu pai percebeu que seria relativamente fácil fazer passar as duas pequenas caixas com as jóias da minha mãe, pois o check-in de bilhetes e bagagens era feito numa única porta, após o que os já "retornados" poderiam livremente chegar-se ao varão que os separava de amigos e familiares que permaneciam do outro lado. No nosso caso, o "amigo e familiar" era, além da minha pessoa destinada à derradeira cena de teatro, a minha minha avó Irlanda, a única que se deslocara ao Gago Coutinho, pois ao contrário de tios, tias, primos e primas, amigos e amigas, não estava nada convencida dos amanhãs que cantariam.
- Nuno, discretamente vais ficar do lado de cá do varão, com o saco das jóias e com o teu blusão a tapá-lo. Nós os quatro (ele, a mãe, o Miguel e a Ângela) faremos a revista e depois a tua mãe virá "despedir-se da família" (um piscar do olho direito para encorajamento) e entregar-lhe-ás discretamente isto. Depois, esperas um pouco e vais até à porta de embarque para seres revistado.
Dito e feito, esperei pacientemente junto do varão e a minha mãe foi "despedir-se de mim" num momento em que o reboliço pela aproximação da hora de voo era ostensivo, mantendo os camaradas distraídos com quem já estava dentro do recinto. Lampeiramente me esgueirei até ao local onde entreguei a minha passagem e como aos quinze anos já tinha 1,76m, nem sequer me perguntaram se viajava acompanhado. Se excluir uma daquelas pequenas malas tubulares fechadas a zip que a TAP de então oferecia a quem comprasse bilhetes, não levava coisa alguma. O deixa andar era de tal forma que nem sequer estranharam o facto de não possuir qualquer bagagem de porão. Devem ter achado normal partir sem uma muda de roupa e atendendo à distância de quatro décadas, hoje julgo que por ali não campeava muita esperteza, quanto mais inteligência.
Escusado será dizer que nos fartámos de rir pelo facílimo trote pregado aos iracundos e desleixados vigilantes.
Tal sucedeu no dia 30 de Agosto de 1974, por sinal a data de aniversário do meu irmão. Uma semana depois foi o 7 de Setembro e então, sim, subitamente desapareceu o relaxamento nas vistorias, as tais "véstorias" como se usa dizer por cá.
Procedeu-se à cuidadosa expoliação extensiva de quem para sempre partia, desta vez já com a colaboração dos guerrilheiros recentemente chegados a uma cidade que até então totalmente desconheciam. Ajudados pelos militares portugueses e pelas delegações governamentais de transição da então potência administrante do território, perpetraram todo o tipo de latrocínios, fossem eles nos recheios de casas, como quanto a jóias e especialmente, nas transferências de títulos - que subitamente deixaram de ter qualquer valor local - e dinheiro em Escudos de Moçambique que de rompante passaram a ser cambiados sob a arbitrária fórmula imposta pelo mercado negro oficial de 3 para 1, 4 para 1 ou 5 para 1, engrossando os privativos cabedais de numerosos oficiais enviados pelo MFA de Lisboa. Daí à simples impossibilidade de trocar dinheiro e obrigar os luso-moçambicanos a deixá-lo em depósito nos escritórios que mais tarde seriam absorvidos pelo Consulado ou Embaixada, foi apenas uma questão de tempo. Nunca esses montantes foram devolvidos, nem deles há notícia de paradeiro actual. Foi um confisco puro e simples.
A verdadeira História foi mesmo assim, tão ou ainda mais vergonhosa como a que agora sucede na Dinamarca.
Portugal fez exactamente o mesmo aos seus próprios cidadãos. A questão a colocar é a seguinte: limpeza étnica feita, onde foi parar o saque?