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Não matar o 'taxismo'

por Nuno Gonçalo Poças, em 01.09.15
Os taxistas levam sempre exposto, no tablier, um cartão que os identifica como profissionais habilitados ao exercício da profissão. Esse cartão tem uma fotografia. E essa fotografia nunca tem semelhanças com o respectivo taxista. É ele. Eu sei que é ele. Mas a fotografia tipo passe daquele cartão, ao contrário do que acontece com o resto da humanidade, favorece sempre o fotografado e nunca o contrário. Primeiro, porque na fotografia surge, regra geral, um homem barbeado, penteado e de banho tomado – ou, pelo menos, assim parece. Depois, porque a fotografia é, lá está, tipo passe e não conseguimos ver que indumentária estaria do pescoço para baixo. Não há um fio de pechisbeque, umas calças de treino, uma réstia de caspa, uma mancha de oleosidade capilar. E, de boca fechada, não se vê a falha no dente. Pior que isso, a fotografia não fala. Estou a exagerar. Eu sei que estou a exagerar. Mas não é exagero dizer que os taxistas falam – muito e de que maneira.
Tenho várias memórias de taxistas. Um deles, mais multíscio, não gostava das obras da Joana Vasconcelos nem do Duchamp. Outro, um figurão andrajoso, juntava a essa virtude olfáctico-visual uma prótese na mão direita, devidamente adaptada ao manuseamento do manípulo das mudanças. Ainda outro, que falava de algumas figuras públicas como “aquele vira-a-folha” e para quem os comunistas eram “uma raça para acabar”. Um dos mais memoráveis, no percurso entre Entrecampos e os Restauradores, brindou-me com um monólogo que começou com o desequilíbrio do plantel do Benfica e acabou com um desassombrado e asqueroso “essa maricagem não anda cá a fazer nada”.
Também convivi com taxistas mais aborrecidos. Alguns quase mudos. Outros chatos. Um que quis ser primeiro-ministro e, com esse intuito, foi “quase filiado no Partido Trabalhista”. Outros mais sérios, defensores da sobriedade da classe, que recusavam conduzir um Mercedes 190 com trinta anos e usam ambientador – no carro, claro; nunca percebi se no sovaco também.
O taxista foi, durante anos, o contraponto à rejeição da cultura estadonovista. A expressão “um Salazar em cada esquina” foi bolsada pela primeira vez dentro de um táxi. A transformação do Botas de Santa Comba num símbolo pop não nasceu nas t-shirts mortas à nascença do Nuno Gama. A estética pop nacionalista não vem dos Heróis do Mar. Nasceu durante uma bandeirada. O Rui Pregal da Cunha ao pé de um fogareiro é um menino. Nesse sentido, os taxistas também nos ensinaram a fazer as pazes com o passado e com a história, e a alargar as fronteiras da liberdade de expressão. O taxista – não um qualquer, mas ‘o’ taxista – é um modelo tão em vias de extinção como o tigre branco, os carapaus à espanhola, o desodorizante Lander de lavanda ou o homo lisbonensis – na acepção de ‘gajo de Alfama’ ou ‘indivíduo de Alcântara’, nascido e criado nas vielas, no fado vadio e no penico ‘água-vai’. A Rádio Amália, por exemplo, sobrevive – e bem – graças ao carro táxi (este dado é, provavelmente, falso, mas não importa). Rejeitar o taxímetro martelado é, pois, destruir empregos nos táxis e na telefonia. Mas, mais grave, rejeitar a cobrança de cinquenta euros de bandeirada entre o aeroporto e os Olivais é ajudar à destruição da cultura latina, em geral, e lusitana, em particular. E isto é perigoso.
Os táxis aproximam as pessoas porque geram, entre elas, os sentimentos mais diversificados. O riso e a pândega que se cria entre amigos com os copos que provocam um taxista durante um percurso inteiro, com a esperança de ouvir umas calinadas, uma javardice qualquer. A revolta de quem não tem trocado e se sentou em cima de uma pastilha elástica. O nojo de quem ouve um salazarista uma viagem inteira lamentar a bandeirada que teve de dar a um preto. A simpatia silenciosa de quem tem vergonha de abominar publicamente os turistas quando ouve um taxista mandar os bifes para a terra deles.
É claro que lhes faz falta a concorrência da Über. Faz falta a concorrência e um carro decente para nos transportar, se quisermos. Claro que faz. Mas é importante não destruir o 'taxismo'.
Não matem os taxistas, pelo amor de Deus. Não matem o naperon no tablier. Não matem a Nossa Senhora de Fátima pendurada nas grelhas do ar condicionado. Não matem o terço no espelho retrovisor. Não matem o CD pendurado por causa do sol. Acabar com isto é como esconder na cave a nossa avó que tem bigode, veste de preto e usa lenço na cabeça. Acabar com isto é esconder Portugal. Não vale a pena limpar a porcaria para baixo do tapete. Nós, mais ou menos cosmopolitas, continuaremos a ser o que somos. Se não acreditam, comecem a contar quantos condutores de fato, gravata e bom carro apanham a tirar macacos do nariz no sinal vermelho.

publicado às 17:53







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