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O Kaiser e a questão social

por Nuno Castelo-Branco, em 03.02.16

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A multifacetada personagem do Kaiser, tem sido pasto de todo o tipo de considerações feitas a posteriori e decorrentes de uma estranha mescla de revanchismo ditado pelos vencedores de 1918 e pela absurda escalpelização e do avaliar de atitudes e pensamentos sem ter em consideração a sua época. Tal como há muito estamos habituados, existe uma inevitável tendência para olharmos para os homens de há um século, segundo os padrões do nosso tempo. O Kaiser surge então como um ente estranho e deslocado daquilo que hoje se considera como aceitável, talvez incomodamente escapando a estas considerações o seu papel na instituição do Estado Social na Alemanha. 

Tal como a obra social entre nós formalmente iniciada pela rainha D. Amélia - e logo abandonada pelas várias repúblicas que sucederam ao golpe de 1910 - que a seu tempo era abertamente ridicularizada, quando não hostilizada pela superestrutura do regime da Monarquia Constitucional e imaginados inimigos do PRP que naquela balbúrdia institucional gostosamente participavam, a provisória instauração dos serviços sociais - direitos do trabalho, creches, escolas, hospitais, seguros de doença, dispensários, institutos científicos, etc - bem depressa saiu da tradicional esfera das ordens religiosas liquidadas pelo liberalismo e passaria a teoricamente pertencer ao âmbito do Estado após um longo interregno de algumas gerações deixadas ao liberal laissez-faire. Em Portugal sofreu hiatos e nem por isso deixou de ser incipientemente realizada a partir dos anos sessenta. Na sua visita a Lisboa, para além das cerimónias e visitas a quartéis, Guilherme II terá interrogado D. Amélia acerca do que a rainha andava a realizar em várias frentes sociais, ficando agradado com o programa que a mulher do seu primo lhe apresentou. 
Na literatura oitocentista, nas mais conhecidas obras de Charles Dickens ou Dumas, entre muitos outros, encontramos facilmente os resultados desta absência de instituições, religiosas ou não, a que o advento do liberalismo conduziu uma população em crescimento demográfico e industrial.
O Kaiser percebeu que o Estado não podia apenas ser o ornamento que garantisse a inviolabilidade das fronteiras, deixando aos magnatas o esforço de enriquecimento de casta, mesmo que isso implicasse a produção dos meios que propiciariam a expansão territorial que inflamava patriotismos em países que à época eram cultural e etnicamente muito multifacetados, tal como o império austro-húngaro, a Rússia, a Alemanha e a própria França e o Reino Unido. Não. Procurando evitar a revolução de que a Comuna de Paris apenas fora um claro aviso, o imperador alemão pretendeu e impôs uma política que concedeu direitos aos sectores alienados pelo mundo dos negócios e do estreitíssimo âmbito dos jogos da política dita partidária. Foi deveras um precursor numa época pouco propícia a matizes entre o claro e o escuro, o maniqueísmo que ainda hoje surge diariamente nas discussões políticas. 

Para mais, Guilherme II, um deficiente físico, consistiu num alvo fácil, aproveitando-se o seu gosto pela pompa muito própria da Belle Époque e o seu jamais esfriado entusiasmo pela vitória de 1871. Os seus modos relativamente deslocados daquilo que "parecia bem", serviram como preciosas armas que o desacreditavam aos olhos de uma manipulável opinião pública que vendo desaparecer os seus filhos no conflito que abrasou a Europa, ansiosamente procuravam um responsável identificável com a principal nação que defrontavam. Sendo um soberano que não se limitava à representatividade nas funções que os Estados por regra atribuem aos nominais detentores das coroas, fez confluir sobre si uma culpa colectiva inventada por vencedores que dela se serviram para explorar um país subitamente caído na anarquia e indefeso pela obrigatoriedade da liquidação da sua força armada. Muito do que sucedeu nos vinte anos subsequentes ao Tratado de Versalhes, deveu-se a esse estéril exercício de uma vingança que um século antes e após mais de duas décadas de incessantes conflitos e devastação do continente, não fora aplicada à França. Hitler foi então um produto da conveniente cegueira e imediatismo político da dupla Clemenceau-Wilson. Se compararmos o Kaiser com os seus contemporâneos presidentes americanos, ficaremos admirados com os paralelismos em termos de poder de influência na condução da coisa pública.

Em 1918, aquela amálgama de nacionalismo agressivo que formalmente tutelava e a contenção da revolução através de uma obra social que a tornou desnecessária e que por isso mesmo concitou à majestade os ódios que genericamente aceitamos sem reservas de qualquer espécie - a revolução "que viria de baixo" -, condenou-o eternamente como um dos malditos do século XX. A meu ver e como há muito digo, uma condenação muito injusta. 

Ao contrário do que se propala, Guilherme II não era nem parvo, nem ignorante e muito menos ainda, o belicoso psicopata que conformou a imagem propalada e deixada ad eternum pelos vencedores. Um imprevidente excêntrico? Certamente. Talvez sejam estes dois factores os que mais concorrem para a sua lenda negra, aproveitando-se como cúspide do monumento, o desastre europeu na Grande Guerra.

publicado às 16:46







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