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Hoje, a Assembleia da República aprovou a proposta da JSD para sujeitar a referendo a co-adopção por casais homossexuais, confirmando o que eu suspeitava há algum tempo: continua a não haver em Portugal jovens de direita que não sejam moralmente conservadores, e não é da JSD que eles vão aparecer. Parece-me também que é uma tentativa de centrar o debate político em assuntos irrelevantes, enquanto que os assuntos económico-financeiros são deixados de lado (tiveram sucesso). Ah, e já agora, esta é uma questão que não deve ser sujeita a referendo, ponto. Passo a explicar, por ordem inversa à que enumerei os problemas.
O primeiro ponto que faço é político - para um crente na democracia, na soberania popular como derradeira fonte de toda a decisão pública que deva ser tomada, os referendos são o máximo. Óbvio. Para quê delegar o nosso poder decisional em 200 e tal marmanjos que estão sentados na AR? Decide-se tudo em referendo. Até podíamos ter uma 'democracia electrónica' - cada cidadão acima dos 18 anos tinha uma conta e todas as semanas votava propostas legislativas. Se houvesse uma maioria, aprovava-se e já estava! Sendo assim, não havia problemas de lobbies, de disciplinas de votos e afins. Obviamente não me revejo nesta visão rousseauiana (acabei de inventar esta palavra) de que o poder político deve estar todo absolutamente concentrado no povo (ou nos seus representantes). Por isso é que sempre gostei mais de Montesquieu, que os partidários do Ancien Régime temiam mais, porque, ao invés de propor uma transferência do poder absoluto para o povo, propunha a divisão do poder. E é por isso que não diria que sou um democrata tout-court. A democracia não é, para mim, um valor absoluto, de todo. Os perigos da tirania da maioria, denunciados desde Aristóteles até Tocqueville, estão demasiado presentes. E é por isso que eu prefiro a noção de liberdade. Se tivesse que escolher entre liberal e democrata, seria liberal ponto. E nunca 'democrata liberal', mas 'liberal democrata', apenas na convicção que, para melhor preservar a liberdade, as decisões que respeitam a generalidade, devem ser tomados pela generalidade (gosto mais dessa palavra do que colectividade). Mas numa concepção totalmente instrumental de democracia. Não é o fim, é o meio. Depois deste devaneio, só acredito em referendos em questões realmente fracturantes. O aborto por exemplo. É uma questão moral demasiado importante, fracturante e opondo duas mundividências que deve ser sujeita a consulta. Pronto. Salvo casos desses, todo o referendo é geralmente um escape populista ou uma forma de um Governo se desresponsabilizar de alguma coisa. E mais, ao contrário do aborto, que concerne, no fundo, a valoração social do começo da vida, o casamento ou a adopção por homossexuais são assuntos que não me interessam. Eu, heterossexual, não tenho que dizer aos homossexuais se podem fruir de direitos disponíveis à generalidade da população, como casamento ou adopção. Tal como a população suíça, há uns anos atrás, cristã ou secular, não tinha o direito de dizer aos muçulmanos suíços que não podem construir mais minaretes nem de dizer aos gestores das empresas até quanto é que podem ganhar de dinheiro privado. É a concretização da tirania da maioria. É Tocqueville.
Segundo ponto, também político - acho que qualquer pessoa com dois dedos de testa consegue ver que isto é apenas uma tentativa por parte do PSD para recentrar o debate político. Já chega de economia, vamos pôr o debate em questões morais! Espero bem que seja uma tentativa falhada, porque senão, o saque dos contribuintes continuará, e o tímido emagrecimento do Estado não irá avante, porque vai estar toda a gente a falar disto. Questão que, aliás, não é assim tão fracturante. A esquerda, obviamente, apoia a co-adopção. Em mesmo à direita, anda tudo muito tenso. Muito boa gente do PSD e do CDS é a favor. Felizmente, a questão dos direitos dos homossexuais é uma não questão em Portugal. Goza-se um bocado, é-se um bocado condescendente, mas pouca gente rejeita activamente que os homossexuais possam casar, ou mesmo adoptar. Não se vê movimentos como em França, nos EUA e noutros países. Portugal aceitou bem a homossexualidade, e não se meteu em 'manifestações de defesa da família' e afins e cagou para o purismo católico. Mesmo nas zonas mais conservadoras e rurais, goza-se, estigmatiza-se talvez, mas no fim todos dizem 'eles que façam o que quiserem', uma atitude notável de um povo e dum País que em 900 anos de História nunca se deu muito bem com liberdade. Felizmente, Portugal está na vanguarda de quase tudo o que seja socialmente liberal - descriminalização do consumo e detenção de droga, direitos dos homossexuais, aborto. Não existe o puritanismo social que existe nos Estados Unidos e noutros países. Mesmo entre os mais conservadores, há um saudável 'não quero saber, não tenha nada a ver com isso, eu não faço, eles que façam'. É pena que assim não seja na economia.
Terceiro ponto, os socialmente liberais em Portugal continuam quase sempre na propriedade da esquerda. Seria natural que no PSD, um partido não tão conservador quanto isso, a sua juventude finalmente abandonasse a ambiguidade social-moral do PSD para se afirmar como socialmente liberal e progressiva e emergir lentamente uma espécie de liberalismo português não nacionalista e saudosista, não conservador, não paternalista, não monárquico, cosmopolita, etc. Mas não. Cheira-me que a JSD está infestada de agro-betos, agro-sem-ser-betos, uns quantos carreiristas, anti-intelectuais e anti-cosmopolitas, ligeiramente conservadores, e que puxaram para que este referendo acontecesse. Vir da direcção de um partido, eu não estranharia, agora, vindo de uma juventude partidária. É nojento.
No fim, quem perde, são os putos, a cujos pais casados são negados direitos que são concedidos a todos os outros portugueses casados. Como dizia um bom amigo meu conservador, que sempre foi contra o casamento homossexual - 'se podem casar, podem adoptar, isto não pode ser à la carte'.
PS (D): já agora, referenda-se a co-adopção? Podiam ter esperado pela adopção, ao menos era uma cena maior.