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Penúria endémica

por Fernando Melro dos Santos, em 29.09.16

Foto: urubu de cabeça vermelha, a ave totem do português médio que se alimenta da carniça deixada ao calhar por predadores que ocupam degraus cimeiros na pirâmide do proxenetismo de Estado

 

Durante alguns anos frequentei cafés, bares, transportes públicos e outros lupanares do vernáculo onde é possível coligir, por simples manutenção higiénica do funcionamento auricular, um tratado completo da identidade lusa. 

 

Se há constelação de sintomas que possa valer ao diagnóstico diferencial da portugalidade, com pê pequeno, a listinha seguinte ilustrá-la-á com rigor:

 

- cegueira bucólica crónica. para o português, o país pode ter a mais baixa taxa de fertilidade da OCDE, corrupção rampante a céu aberto, anacronismos de vária sorte próprios do Terceiro Mundo, mas tem sol; e como sabemos desde a aura Abrilina, o sol brilhará para todos nós, porque tal como a água, a educação e o direito a casas mobiladas, o sol é de todos e o que é de todos não pode ser denegrido, que é como quem diz privatizado (a não ser pelo Estado, por grémios progressistas, ou por um comentador-presidente que esgrime com afectos pelo Bem Comum)

 

- anorexia piramidal inversa.  mesmo sabendo que ocupa, na cadeia alimentar do esbulho ao dinheiro dos outros (seja por via fiscal directa, alocação de fundos europeus ou levando para casa uma resma A4 sacada ao economato da repartição) o lugar equiparado ao dos vermes anelídeos oligoquetas e poliquetas (Brusca, Richard (2007); Invertebrados - Rio de Janeiro: Guanabara Koogan) o português contenta-se com os restos esmigalhados que sobram da parasitose social

 

- paralaxe multipolar, ou efeito "sardinha-para-três". a gasolina custa dois euros por litro? não faz mal, imaginem se custasse três. surge uma coima de dez mil euro devido a erro judiciário? vocês não sabem como aquela gente vive na Somália, que nem casas de banho tem. arderam mil hectares de floresta? na Austrália é que foi queimar, queixais-vos de barriga cheia. as reformas aumentaram trinta cêntimos* em dois anos? no tempo dos meus avós andávamos descalços.

 

Será então de espantar que na iconografia do português pequeno-mundista mais valha um cupão de desconto, atribuindo, digamos, um euro na compra da décima grade de cervejas, do que uma crítica ao Ministro da Educação? Não, não é de espantar. E a fixação voyeurista em espectáculos pornosociais como a Casa dos Segredos, o jogo particular entre Arouca e Leixões, ou as tiradas inanes do teatro de revista agora acessível a qualquer cretino, ou cretina, com facebook? No pasa nada. 

 

Enfim, é esperar. E enquanto esperamos nesta aldeia mágica, não esquecer, o tempo não passa, o mundo não gira, o dinheiro não acaba. 

 

 

 

 

 *por obra e graça do Senhor Santo Sócrates

publicado às 08:36


1 comentário

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De M a 04.10.2016 às 02:28

Os contadores da estória da "sardinha-para-três" esquecem-se de mencionar que as sardinhas eram secas e salgadíssimas. O meu avô contava que quem comia uma sardinha inteira ficava mal até ao dia seguinte. Eram comidas com papas ou migas ao almoço (por volta das 10-11h) depois de uma manhã de trabalho no campo. A carne e os enchidos também não eram comidos em grandes quantidades porque também eram muito salgados. O sal era conservante pois não havia frigoríficos e congeladores como hoje em quase todas as casas e não se demolhava tanto tempo antes de cozinhar. Como os trabalhos do campo requerem bastante esforço e energia as leguminosas, pão, frutos secos, queijos e azeite/azeitonas eram preferidos por serem alimentos mais calóricos e a carne, o peixe e os ovos comiam-se de vez em quando e em pequenas quantidades. Tanto o meu avô como o meu bisavô chegaram aos 90 numa época em que a esperança média de vida andavava pelos 50-60. Nos anos 70 ele dizia-me: 'comer bifes todos os dias faz mal à saúde' tal como nos dizem hoje os nutricionistas que o excesso de proteína animal é-nos prejudicial. E do sal na alimentação nem se fala.


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