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Foto: urubu de cabeça vermelha, a ave totem do português médio que se alimenta da carniça deixada ao calhar por predadores que ocupam degraus cimeiros na pirâmide do proxenetismo de Estado
Durante alguns anos frequentei cafés, bares, transportes públicos e outros lupanares do vernáculo onde é possível coligir, por simples manutenção higiénica do funcionamento auricular, um tratado completo da identidade lusa.
Se há constelação de sintomas que possa valer ao diagnóstico diferencial da portugalidade, com pê pequeno, a listinha seguinte ilustrá-la-á com rigor:
- cegueira bucólica crónica. para o português, o país pode ter a mais baixa taxa de fertilidade da OCDE, corrupção rampante a céu aberto, anacronismos de vária sorte próprios do Terceiro Mundo, mas tem sol; e como sabemos desde a aura Abrilina, o sol brilhará para todos nós, porque tal como a água, a educação e o direito a casas mobiladas, o sol é de todos e o que é de todos não pode ser denegrido, que é como quem diz privatizado (a não ser pelo Estado, por grémios progressistas, ou por um comentador-presidente que esgrime com afectos pelo Bem Comum)
- anorexia piramidal inversa. mesmo sabendo que ocupa, na cadeia alimentar do esbulho ao dinheiro dos outros (seja por via fiscal directa, alocação de fundos europeus ou levando para casa uma resma A4 sacada ao economato da repartição) o lugar equiparado ao dos vermes anelídeos oligoquetas e poliquetas (Brusca, Richard (2007); Invertebrados - Rio de Janeiro: Guanabara Koogan) o português contenta-se com os restos esmigalhados que sobram da parasitose social
- paralaxe multipolar, ou efeito "sardinha-para-três". a gasolina custa dois euros por litro? não faz mal, imaginem se custasse três. surge uma coima de dez mil euro devido a erro judiciário? vocês não sabem como aquela gente vive na Somália, que nem casas de banho tem. arderam mil hectares de floresta? na Austrália é que foi queimar, queixais-vos de barriga cheia. as reformas aumentaram trinta cêntimos* em dois anos? no tempo dos meus avós andávamos descalços.
Será então de espantar que na iconografia do português pequeno-mundista mais valha um cupão de desconto, atribuindo, digamos, um euro na compra da décima grade de cervejas, do que uma crítica ao Ministro da Educação? Não, não é de espantar. E a fixação voyeurista em espectáculos pornosociais como a Casa dos Segredos, o jogo particular entre Arouca e Leixões, ou as tiradas inanes do teatro de revista agora acessível a qualquer cretino, ou cretina, com facebook? No pasa nada.
Enfim, é esperar. E enquanto esperamos nesta aldeia mágica, não esquecer, o tempo não passa, o mundo não gira, o dinheiro não acaba.
*por obra e graça do Senhor Santo Sócrates