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Estou ao balcão de um banco para levantar dinheiro. À minha frente, uma rapariga cuja idade não consigo estimar - pela ausência de constituição física e pelo fácies desdentado, num ricto apático e amedrontado, tanto pode ter 30, como 40, como 50 - arrasta os sacos reutilizáveis, cheios até meio com algumas conservas, e pede ao caixa para lhe contar um maço de notas. Pede educadamente, com uma timidez extrema, e com a humildade de uma Santa daquelas Santas que nem sabem que o são.
Estão aqui cem euros, diz o bancário, e no olhar dele vejo um reflexo do meu, uma vontade de pintar o Palácio de S. Bento a negro azeviche com letras luminosas, como as que custam muitas vezes cem euros a quem as paga através do Doutor António Costa. Ninguém parece saber como calcular múltiplos de cem, é uma arte que se perdeu com a paixão pela educação do Engenheiro António Guterres. Os pobres precisam muito mais de saber calcular divisores, de fazer contas de subtrair, portanto presumo que o ensino esteja no rumo correcto. Nós é que não o compreendemos assim.
Pergunta com quanto pode abrir uma poupança. A resposta: cem euros. Não pode deixá-los lá naquele momento, porque não sabe do seu documento de identificação - de nenhum deles. Vai-se embora.
Deixo passar à frente outra pessoa, uma senhora andrajosa, de compleição esmagada, erodida por anos de deambulação aos caídos e a quem, de certeza, nunca passou pela cabeça dar importância às paneleirices propaladas pelos media quando denotam Portugal como o melhor disto, o maior daquilo, e outras ventilações escapulidas dos gabinetes onde já não se fazem contas há cerca de quarenta anos.
Vem com uma dúvida, diz que depositou a pensão do marido no mês passado na conta poupança, que a moveu logo para a conta à ordem, que não vê lá o dinheiro, que não tem papel nenhum. O caixa conhece-a, sabe que é dada a amnésia e a episódios de confusão, recorda-se perfeitamente que nesse mês o dinheiro não chegou sequer a entrar na poupança. Tenta convencê-la a esperar um pouco para que os restantes clientes possam ser atendidos. Eu ofereço-me para ajudá-la a compreender o molho de recibos e talões que traz consigo, mas mal me acerco, ela encolhe-se como se eu fosse portador da lepra mais viciosa. Nem sequer estou de fato e gravata, ando vestido como sempre, com umas calças de ganga, botas de caminhada, uma sweat-shirt preta e um hoodie preto por cima. Não tenho ar de bandido; mas ela retrai-se, esconde os documentos, balbucia que não, que espera ali ao canto.
Levanto o meu dinheiro. Troco um olhar enternecido com o caixa e vamos os dois ao resto do nosso dia.