Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Esta reportagem do Público tem provocado umas quantas reacções por aí. É um exercício que quase roça o caricatural e não deve ser confundido com o exercício sério de António Araújo. Mas quando leio a um dito liberal, em reacção à peça do Público, que "Um liberal, por tradição, deve rejeitar a tradição como argumento para o debate político, ou pelo menos relegar-lhe a importância que este merece: um estabilizador. A tradição não é necessariamente melhor ou pior. O seu único mérito foi sobreviver ao tempo, coisa que uma rocha também faz com especial primazia", percebo cada vez mais claramente a miséria intelectual que assola muitos dos liberais indígenas. Não se trata de mera opinião, mas de um erro clamoroso. Que se torna ainda mais grave quando, mais à frente, o mesmo autor refere que "Embora um liberal não partilhe do imaginário utilitarista de Stuart Mill ou não se identifique com Burke (...)."
Evidentemente, convinha averiguar o que liberais como Friedrich Hayek, Karl Popper, Edward Shils e Michael Polanyi pensavam sobre o conceito de tradição. Podem começar por aqui, ou por aqui, ou por aqui (o ensaio "Towards a Rational Theory of Tradition") ou ainda por aqui. E a respeito da não identificação do liberalismo com Burke, investigue-se o que pensava dele Adam Smith ou Hayek e as semelhanças entre este último e o parlamentar irlandês.
Ademais, este recorrente exercício de "para um liberal é assim" e "para um liberal não pode ser assado", além de muito pouco liberal, já enjoa, e bastaria uma breve leitura de uma pequena obra de João Ricardo Catarino, O Liberalismo em Questão, para ficarem maravilhados com a pluralidade que caracteriza o liberalismo. Ou, para os que preferem estrangeiros, aquele também pequeno livro - é melhor recomendar obras pequenas e concisas - de John Gray, Liberalism. É que não há um liberalismo, mas vários. Conforme escreve José Adelino Maltez no tomo II da sua tese de doutoramento, Ensaio Sobre o Problema do Estado:
"O liberalismo clássico desdobra-se em duas fundamentais vertentes: a do contrato social e a do conservadorismo evolucionista. O primeiro é radicalmente fundacionista, tende a ser utilitarista e cai na tentação da utopia; o segundo é consensualmente realista e marcadamente idealista. Ambos são normativistas e eticizantes, cada qual à sua maneira.
O problema talvez esteja no facto de haver um liberalismo que não sabe, nem quer saber, da economia, como o romantismo de Rousseau que, segundo Proudhon, «refere-se exclusivamente a direitos políticos: não reconhece os direitos económicos», ao passo que outros liberalismos, apenas pensam a economia, desdenhando da política."
Infelizmente, muitos liberais formados em economia continuam a protagonizar um certo analfabetismo intelectual. Os mesmos que, muitas vezes, clamam contra a ignorância sobre conceitos económicos básicos, pretendendo que quem não seja formado nessa magna ciência não emita opiniões sobre o funcionamento da economia. Também infelizmente, não aplicam um critério idêntico a eles próprios, pois que evitariam incorrer em disparates, acaso se coibissem de emitir opiniões sobre filosofia política, ciência política ou direito.