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Solteiros e bons rapazes

por Nuno Gonçalo Poças, em 05.05.16

É vê-los, do Saldanha à Avenida da Liberdade. Uma massa uniformizada de proletários de fato e gravata, de sapatos compensados e blazer, barbas aparadas, cabelos arranjados, que entra nas consultoras e nas sociedades, de smartphone em punho, fazendo rolar o ecrã com os polegares, de auscultadores nos ouvidos. Trabalham de manhã, almoçam nos restaurantes ou nos doentios centros comerciais da zona, trabalham à tarde, jantam nos mesmos centros comerciais, trabalham à noite, saem tarde, esgotados, bebem um copo com os amigos, publicam fotografias nas redes sociais. No dia seguinte tudo se repete. Quem quer sair às seis da tarde, pede autorização ao superior hierárquico com uma semana de antecedência – mesmo sabendo que essa autorização pode ser alterada em cima da hora. Não há motivos que os façam não trabalhar. O trabalho é essencial. Vem sempre primeiro.

Tens a tua mãe doente? Sim, está muito bem, mas como não és médico tens aqui um prazo urgentíssimo, que já devia estar feito há dias, se o trabalho fosse devidamente organizado, e que vais ter de ficar a despachar até à meia-noite. O teu irmão casa-se amanhã? Pois, então que seja muito feliz, mas como quem se casa não és tu, tens de vir trabalhar amanhã, porque temos aqui um closing muito urgente e tu és indispensável. Ai amanhã é sábado? Pois, pá, mas isto o trabalho não conhece dias da semana. É no trabalho que uma pessoa se realiza, pá. O teu irmão que não fosse um imbecil – não se casasse, tivesse ido trabalhar. A tua mulher está a ter o vosso primeiro filho? Sim, claro, os filhos são uma grande coisa, claro, mas tens de sair imediatamente do hospital e vir para o escritório, que estamos aqui aflitos com uma coisa muito mais urgente. O quê, a tua mulher está em casa com um recém-nascido e a empresa não lhe está a pagar salário? Isto realmente há gente má no mundo. Ainda bem que nós te damos a oportunidade de trabalhar nesta fantástica empresa, rapaz, onde podes trabalhar umas parcas 12 horas por dia e onde ainda te damos o privilégio de levar trabalho para casa, para que possas chegar ao teu sofá à uma da madrugada e responder a emails. O que seria de ti sem nós. Alguém tem de pagar contas, não é, filho? Não te sentes feliz com esta oportunidade que te demos de gozar dois dias de licença de paternidade? Pudeste trabalhar em casa, descansado. Isto é um favor que te fazemos, rapaz, tudo por um bom salário, por bons prémios que te vamos dar, pela progressão idílica que estás a ter nesta empresa. Precisas de sair mais cedo porque o teu filho está doente? Mas tu queres uma mulher para quê, afinal? Podias ter uma vida muito melhor se não te tivesses casado. Se não tivesses filhos. Agora que tens filhos e mulher, para que raio queres tu ir para casa com um filho doente? Para cuidar dele? Casasses melhor. E tu, mulher que se queria evoluída, por que diabo me pedes tu férias quando te demos o privilégio de ficar três meses em casa a ganhar 50% do salário e a trabalhar todos os dias, logo depois do parto? Para que raio engravidaste tu, mulher do século passado?

Enquanto houver, numa grande parte do tecido empresarial urbano, a apologia dos solteiros – que não engravidam, que não têm compromissos pessoais que não possam desmarcar, que não casam, que não descansam; enquanto houver, numa grande parte do tecido proletário-chique das grandes cidades, a aceitação desse paradigma; enquanto houver gente que aceita ficar no trabalho até às oito da noite, quando está a ler jornais desde as seis, porque “é mesmo assim”; enquanto houver gente que acha que o trabalho é a única coisa que as realiza pessoalmente; enquanto houver gente que só encontra felicidade, para lá do trabalho, em fotografias de paisagens ou de pratos de comida que possa publicar nas redes sociais; enquanto houver situações profissionais híbridas, entre o contrato de trabalho e a profissão liberal, que não conferem nem liberdade, nem regras; enquanto houver tudo isto, não há políticas de natalidade que nos valham.

publicado às 14:50


8 comentários

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De José Lima a 05.05.2016 às 15:35

Tem toda a razão. Lamento apenas que não tenha escrito este artigo mais cedo, durante o governo de Passos Coelho, que tinha o horror que descreve como modelo ideal de sociedade. O trabalho e a economia como fins em si mesmos e não como meios para um fim mais elevado - o bem comum do todo social. Mas, enfim, mais vale tarde do que nunca...
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De Anónimo a 06.05.2016 às 16:15

Que disparate. Como se isto tivesse alguma coisa a ver com gorverno PSD/CDS. Acha que é diferente agora? Acha que é diferente do que foi quando Sócrates esteve no poder? Tenha juizo
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De José Lima a 06.05.2016 às 18:01

Aprenda mas é a ler! Eu escrevi que o governo de Passos Coelho tinha este estado de coisas como modelo ideal de sociedade, não disse que isto não ocorresse durante os governos de Sócrates ou não ocorra agora ainda durante o de Costa! E se eu fui bem crítico dos governos de Sócrates (mesmo neste espaço) e não me revejo no de Costa (não votei em nenhum dos partidos da chamada "geringonça"), tenho a honestidade de lhes reconhecer, pesem todos os seus defeitos - imensos, no caso do de Sócrates-, que aquilo que o artigo descreve não era ou é modelo de relações laborais que esses mesmos governos tivessem ou tenham como ideal. E é também por atitude destas, deste tipo de "hooligans" pafistas anónimos e irracionais, arregimentados para debitarem alarvidades nas caixas de comentários, que esta direita dos interesses estritamente economicistas nunca mais há-de ir a lado nenhum em Portugal, por muitas bandeirinhas nacionais que continue a pôr na lapela.<br>
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De Anónimo a 05.05.2016 às 22:03

Tem razão. Enquanto houver a liberdade de não procriar, não há política de natalidade que resista. A Democracia é uma chatice.
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De Anónimo a 06.05.2016 às 19:45

"Spoken like" @ típica@ gaj@ que sente sempre necessidade de justificar porque é que não tem filhos...




Mil perdões se me enganei.
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De André Miguel a 07.05.2016 às 10:50

Muito bem escrito e cheio de razão. Somos atrasados em tudo e temos umas elites do mais provincianas que pode haver, apesar do seu esforço urbano-chique. É ver os horários de trabalho e as práticas de gestão nos países mais desenvolvidos e comparar. Não é à toa que Portugal e Grécia são dos países da Europa onde mais horas se trabalha, mas a produtividade anda nas ruas da amargura. Isto está tudo ligado.
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De Leitor a 07.05.2016 às 16:34

Sim, a culpa é dos solteiros.
O empregadores abusadores são completamente inocentes, independentemente do estado civil.

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