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O painel que deu início à última tarde das Conferências do Estoril 2013 teve a participação de Lívia Franco, da Universidade Católica Portuguesa, João Marques de Almeida, antigo director do Global Dialogue do Gabinete de Conselheiros de Política Europeia, Kolinda Grabar Kitarovic, Secretária-Geral Adjunta para a Diplomacia Pública da NATO, e Stanlake Samkange, Director da Divisão de Política, Programação e Inovação do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas, que se debruçaram sobre a temática da governança global num painel moderado por Eusebio Mujal-León, da Universidade de Georgetown.
A título introdutório, o moderador assinalou que nos encontramos numa era de transição para uma grande incerteza no que concerne à representação e representatividade das instituições, estando a legitimidade destas em causa, pelo que importa renová-las aos vários níveis, local, nacional e internacional, visto que que há problemas que requerem respostas técnicas, mas que são fundamentalmente políticos e necessitam, portanto, que os abordemos com a perspectiva de reforçar o poder de decisão dos cidadãos.
Lívia Franco iniciou a sua reflexão salientando que vivemos num mundo dominado por problemas transnacionais que extravasam a capacidade de os estados singularmente entendidos os resolverem e em que há um fosso crescente entre os fins almejados pelas organizações internacionais e os meios ao seu dispor, ou seja, uma grande distância entre a procura e a oferta de governança global. A docente da Universidade Católica sublinhou também que estes dois factos são expectáveis, visto que vivemos num mundo de rápidas mudanças que ninguém controla, pelo que a referida distância não é uma anomalia, antes representa uma reacção orgânica a uma pressão sobre o sistema internacional advinda das mudanças geopolíticas e tecnológicas. Todavia, a governança global aumentou a qualidade de vida de milhões de pessoas, é responsável pela existência de normas internacionais numa miríade de assuntos e a vida quotidiana é hoje mais fácil em virtude disto mesmo. Lívia Franco sugeriu ainda o encerramento de instituições internacionais que já não respondem às problemáticas contemporâneas e a transformação das organizações existentes, essencialmente reformando as suas regras internas para permitir o surgimento de um novo multilateralismo baseado no networking entre as diversas organizações.
Começando por discordar frontalmente de Lívia Franco, João Marques de Almeida declarou-se um céptico em relação à governança global precisamente em virtude da sua experiência profissional em Bruxelas, considerando que a União Europeia tem o objectivo irrealista de salvar toda a gente, de salvar o planeta, sublinhando por várias vezes que está na altura de a Europa se ajudar a si própria, de ajudar os seus cidadãos, e questionando como é possível que em face da maior crise desde a II Guerra Mundial a União Europeia continue a ajudar monetariamente países como o Brasil, Índia ou China, embora não tenha deixado de assinalar que há países que devem continuar a ser ajudados pela Europa, especialmente em África. Com um pendor marcadamente realista no que à Teoria das Relações Internacionais diz respeito, Marques de Almeida apontou como uma das possíveis soluções para a crise uma política muito dinâmica e agressiva de comércio internacional, que permita aumentar significativamente as exportações, desejando, por último, que as negociações entre a União Europeia e os Estados Unidos da América para a criação de um mercado transatlântico de bens e serviços sejam bem sucedidas.
Lívia Franco e João Marques de Almeida protagonizaram um animado debate em que estiveram em confronto as perspectivas idealista e realista sobre as Relações Internacionais, com a primeira a mostrar-se favorável ao já referido novo multilateralismo e o segundo a afirmar que a governança global e a política internacional em geral são, no fundo, acerca do poder, tal como os mercados, pelo que não admira que a competição pelo poder esteja a aumentar em todo o lado, inclusive na própria União Europeia – daí que Marques de Almeida tenha questionado “Como podem os europeus falar em governança global quando ainda estamos a lutar pela governança europeia?”
A Secretária-Geral Adjunta para a Diplomacia Pública da NATO, por seu turno, defendeu a Aliança Atlântica não só como uma organização de segurança e defesa, mas também como uma aliança de valores que visa promover o bem-estar e a cooperação económica. “A NATO foi formada para defender a nossa liberdade pessoal, económica e política”, afirmou Kolinda Grabar Kitarovic. De seguida, observou que o mundo ainda está a recuperar da crise económica, estando a pobreza e o nível populacional a aumentar, o que coloca grandes pressões sobre os mercados de trabalho e, por isto mesmo, a NATO actualmente olha para a segurança não apenas com uma perspectiva tradicional, mas com uma perspectiva holística, preocupando-se com conflitos dentro de estados entre actores não estatais, ciber-segurança, terrorismo, crime organizado, epidemias, degradação ambiental e desafios globais que só podem ser resolvidos pela acção colectiva. Foi isto mesmo que levou a NATO a adoptar a chamada comprehensive approach, que a ONU chama integrated approach. Trata-se de uma abordagem militar e civil que reúne contribuições de toda a comunidade internacional, procurando que diversos tipos de actores trabalhem em conjunto de forma totalmente coordenada. Kolinda Grabar Kitarovic reforçou ainda que é urgente uma maior coordenação e cooperação entre as organizações internacionais e que a segurança necessita de envolver cada vez mais os cidadãos, que os indivíduos têm um papel maior a desempenhar, o que requer uma comunicação de qualidade que não confunda o público.
A terminar o painel esteve Stanlake Samkange, que procurou evidenciar como a segurança alimentar é essencial para a governança global, embora não tenha deixado de perguntar se aquela estará no centro das preocupações desta. Curiosamente, foi o último orador quem se pronunciou brevemente sobre o conceito de governança global, afirmando que não se trata de ter um governo global (algo que em muitos casos nem a nível nacional funciona bem, quanto mais a nível internacional), mas sim coordenação e a capacidade de enfrentar problemas comuns, o que se constitui como um trabalho muito difícil mas permite alcançar consensos importantes. O Director da Divisão de Política, Programação e Inovação do Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas deixou à audiência alguns números que permitem perspectivar os problemas enfrentados: anualmente, o Programa Alimentar Mundial tem um orçamento de cerca de 4 milhões de dólares e ajuda cerca de 90 milhões de pessoas, existindo 870 milhões de pessoas em todo o mundo que não têm segurança alimentar – o que implica quatro dimensões, disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade. Com o aumento populacional que se prevê para as próximas décadas, poderemos assistir a um aumento considerável dos preços dos alimentos, o que agravará significativamente o problema. Stanlake Samkange crê que a governança global poderá permitir enfrentá-lo adequadamente, mas assinalou que os mecanismos existentes precisam de ser melhorados e as organizações reformadas, o que depende em larga medida da vontade política, não deixando também de afirmar que os mercados são importantíssimos e essenciais para promover a segurança alimentar, embora seja necessário tornar a competição mais salutar através da eliminação de subsídios que distorcem o funcionamento dos mercados.
(publicado originalmente no Cables from Estoril)
Presidido por Reuven Amitai, Reitor da Faculdade de Humanidades da Universidade Hebraica de Jerusalém, o segundo painel desta manhã, que abordou a temática da Segurança Humana, contou com a participação de Luís Fraga, Presidente do World Stability Observatory e antigo Senador espanhol, Gabriele Jacobs, directora do Composite Project na Erasmus University, Helena Rego, do Sistema de Informações da República Portuguesa, António Rebelo de Sousa, Vice-Presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, e Mariana Van Zeller, jornalista da National Geographic.
Luís Fraga começou por salientar que não é um académico, desta forma evitando entrar numa discussão de teor conceptual, preferindo falar um pouco da sua experiência pessoal ao nível de conflitos em países como a Colômbia e El Salvador, tendo transmitido como mensagem principal a necessidade de existirem elites políticas de boa qualidade que possam realmente preocupar-se em minorar desigualdades sociais, fomentar uma sociedade civil forte e resolver problemas reais dos cidadãos. Sublinhou ainda que a política internacional mudou, já não é apenas relativa a parlamentos e governos nacionais, dizendo respeito a uma multitude de actores e níveis de actuação e governação, o que faz da Segurança Humana um assunto a ser tratado globalmente, mas nestes diversos níveis (local, nacional, regional, internacional), embora tenha deixado no ar duas questões: I) terá a global governance preocupações com a segurança humana; ii) será que a ONU terá realmente força suficiente para responder a todas as situações?
Gabriele Jacobs, ao contrário do orador anterior, é uma académica que não tem a mesma experiência de terreno do antigo Senador espanhol. É uma psicóloga organizacional que trabalha questões relativas às forças policiais, procurando compreender cada força no seu contexto social específico e envolver políticos e académicos em debates em que procura entender quais as práticas que funcionam em cada país. Partilhou com a audiência as duas lições principais que retira do seu trabalho: i) o crime é internacional mas o policiamento não é, não deixando de ser surpreendente o pouco conhecimento e os preconceitos que polícias de diferentes países têm umas sobre as outras, pelo que há pouca partilha de informação e dar informação à Interpol ainda parece algo exótico; ii) o discurso público sobre a segurança está largamente desligado do que muitos especialistas consideram como prioritário, sendo a ameaça de terrorismo sobrevalorizada pela opinião pública que simultaneamente subvaloriza outros tipos de criminalidade mais comuns e frequentes.
Talvez contrariando um pouco esta segunda lição de Jacobs, Helena Rego principiou a sua intervenção sublinhando que qualquer um pode ser terrorista e que vivemos num mundo muito complexo em que precisamos de soluções e raramente temos tempo para parar e tentar perceber o que se passa à nossa volta. Para além de tendermos a ver o mundo pela lente do etnocentrismo, frequentemente incorremos no erro de o analisar a partir de pequenas partes, fruto em larga medida da compartimentação disciplinar e da especialização que nos impede muitas vezes de ver a bigger picture, para além de vivermos inundados por informação, o que contribui para uma certa desorientação, pelo que é necessário dar relevo à partilha de informação e ao papel dos indivíduos na produção e manutenção de segurança.
António Rebelo de Sousa foi talvez o orador com a apresentação mais sistematizada. Procurando ligar a segurança humana à teoria da relatividade económica e aos problemas sistémicos que o mundo enfrenta, elaborou sobre o conceito de segurança humana como resultando da convergência entre segurança tradicional, política, económica, ambiental, alimentar, pessoal e a nível de saúde e da comunidade, argumentando que todas em conjunto têm influência no bem-estar e no Índice de Desenvolvimento Humano. Dizendo-se crente numa Quarta Revolução Industrial, baseada nos sectores da saúde e da energia, Rebelo de Sousa acredita num aumento da esperança média de vida, decréscimo de preços e crescimento económico gerador de mais emprego. Por último, referiu ainda a necessidade de as democracias ocidentes complementarem as estratégias de soft defence com hard defence como forma de evitar um conflito generalizado.
A última oradora deste painel, Mariana Van Zeller, relatou a sua experiência na Nigéria, onde observou as condições de vida abaixo do limiar da dignidade humana que atingem muitos nigerianos que vivem lado a lado com luxuosos complexos turísticos.
Destaque ainda para o período de debate em que António Rebelo de Sousa e Luís Fraga consideraram que estratégias de segurança nacionais são essenciais e compatíveis com estratégias de cariz global, embora não exista uma instituição global que possa gizar uma estratégia à escala mundial. Mariana Van Zeller afirmou ainda que vivemos num mundo mais seguro apesar de termos a percepção que não, afirmando que se algo aparece nos jornais, não precisamos de o recear, pois à partida será uma anomalia. Gabriel Jacobs concluiu a manhã afirmando que este tempo de social media que vivemos permite-nos ter muito mais possibilidades de controlar e fiscalizar os governos e a acção política.
(publicado originalmente no Cables from Estoril)