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Diário de N. White Castle: 2 de Outubro de 1910, a chegada a Lisboa
Após uma breve viagem marítima sem história, cheguei esta manhã à capital portuguesa. Habituado à exiguidade territorial que os mapas mostram, jamais pensei encontrar uma cidade como Lisboa, mas sim um pequeno porto semelhante a tantos outros que já vira nas minhas meridionais deambulações em toda a bacia do Mediterrâneo. Esta cidade é diferente, beneficiando de uma entrada natural que só pode ser comparada ao Corno de Ouro da capital dos sultões. Tal como Constantinopla, Lisboa vista do mar parece incandescente, pois não podemos considerar a longa desembocadura do Tejo como um rio, dada a imensidão do potencial porto interior. A montante, deparamos com um espantoso mar interior a que deram o nome de Mar de Palha e que reflecte a luz solar com uma inaudita intensidade, surgindo a capital como uma miragem, onde a indefinição das formas lhe confere uma grandiosidade insuspeitada. Este imenso porto de refúgio, é uma das mais privilegiadas posições estratégicas do mundo, pois por esta costa passa todo o comércio que liga as metrópoles europeias ao Novo Mundo e às colónias em África e na Ásia. Conhecendo bem a nossa longa convivência com este país, compreende-se facilmente o vital interesse que representa para a Royal Navy, a manutenção desta maravilha natural em mãos amigas.
Desde a entrada daquilo a que os portugueses chamam a Barra, desfrutamos do privilégio de uma vista única da margem norte, pontilhada por casario ainda relativamente disperso e que num futuro que julgo não muito distante, acabará por unir a vila de Cascais à própria capital. Notam-se claros indícios do progresso material deste século, uma vez que tal como em qualquer uma das nossas cidades ribeirinhas, vislumbro muitas chaminés fumegantes, este mal necessário que a industrialização nos faz pagar para podermos auferir das apregoadas comodidades já indispensáveis. Infelizmente, neste caso parece não ter existido uma verdadeira preocupação em criar uma zona industrial, pois é notória a existência de fábricas espalhadas um pouco por toda a parte, mesmo aquela - que me disseram ser a do gás - construída mesmo diante de um dos principais monumentos do país, a Torre de Belém. O comandante disse-me que consta que a rainha Amélia muito tem admoestado consecutivos governos no sentido de ser desmantelada a dita fábrica, colocando-a noutro lado. Para grande irritação da soberana, a inércia e a falta de coragem para enfrentar os interesses económicos, vão mantendo a situação num impasse que visivelmente tem consequências desastrosas para a integridade desta construção com quatrocentos anos. Além disto, a rainha tem preenchido o país inteiro com exemplos da sua benemerência que vai muito além dos garden-party da alta sociedade que por regra aqui é na sua maioria ociosa. Pelo contrário, a sua obra concita algumas adesões de connoisseurs e parece imensa num país demasiadamente distraído com a baixa política. De hospitais a lactários, de sanatórios a creches e a institutos ou museus, muito Portugal lhe ficará a dever.
Após deixar a minha bagagem no Hotel Avenida, decidi apresentar-me na nossa Legação, situada na parte alta, num bairro bastante burguês denominado a Lapa. Pouco interessado nas ociosas tertúlias próprias do corpo diplomático, fui contudo praticamente coagido a voltar ao palacete nesta mesma noite. Realizar-se-á um jantar com alguns dos mais destacados homens de negócios ingleses estabelecidos em Portugal. Deixaram-me claro que o meu conhecimento da língua, será preciosa ajuda para o estabelecimento de conversas com algum interesse para a avaliação da situação política neste país. Não deixarão de estar presentes alguns portugueses, na sua maioria comerciantes, mas disseram-me que as expectativas vão todas no sentido de auscultar a opinião de alguns oficiais do exército. Vamos ver, todo este cheiro a pólvora e a conspiração começa a despertar a minha curiosidade.
A Baixa é talvez a zona mais animada, aí se situando o melhor comércio, bancos, casas de seguros e empresas de navegação. É espantosa a multidão nas ruas, pois dir-se-ia estarmos não num dia normal de trabalho, mas no reboliço próprio de festas populares. Bandos de ociosos à porta de cafés e de casas que vendem vinho e carvão, parecem discutir animadamente a razão das suas vidas, ou talvez apenas, a derradeira intriga ou boato que aqui alastra como fogo em palha seca. Já quando estivera em Goa, tivera a oportunidade de me inteirar da apetência que uma certa camada urbana tinha por historietas mirabolantes, geralmente desprovidas de qualquer veracidade, mas capazes de alimentar todo o tipo de sentimentos, desde o ódio mais feroz e irracional, até à compaixão que implica a lógica beatitude da criatura alvo da conversa. E o mais interessante, consiste no curioso facto de um beneficiado pelas palavras de louvor, ser no próprio dia e devido a um outro boato, passar a ser arrastado até às portas do inferno, onde, claro está, existem sempre uns pobres diabos capazes de unicamente se exprimir no calão mais grosseiro de que esta rica língua é capaz.
Muito a propósito, decidi entrar num café situado na Praça D. Pedro IV, local que como muitos outros possui duas denominações. Oficialmente, tem o nome do monarca luso-brasileiro, mas para o comum dos mortais, sempre foi e será o Rossio. Este café, o Gelo, é um local já meu conhecido apenas pelo nome, pois já há muito sabia que nas suas salas se tinham reunido os conspiradores republicanos que assassinaram o rei Carlos e o príncipe Luís Filipe. Discutia-se a alta voz e qualquer um podia escutar planos conspirativos, atoardas e o constante e impiedoso martelar de reputações. Dir-se-ia ser Portugal uma terra de milionários, pois os cafés encontram-se a abarrotar a qualquer hora do dia e fiquei a pensar com os meus botões, do que viverá toda esta gente que passa os seus dias diante de copos e garrafas? A cidade encontra-se razoavelmente limpa, nota-se uma certa prosperidade e os armazéns da zona do Chiado estão muito bem fornecidos de todas as novidades parisienses que parecem ser da preferência dos portugueses da capital. Tal como em Londres, Viena ou Paris, as equipagens rivalizam no luxo das carruagens abertas e as senhoras burguesas, geralmente acompanhadas por uma filha ou pela empregada, fazem a rotina diária das lojas, comprando mais um par de luvas ou um extravagante e emplumado chapéu para um hipotético grande dia de festa. Casas de chá mobiladas com esmero e nas quais podemos degustar deliciosas especialidades locais, oferecem o espectáculo da passagem de la mode parisiènne, tal como se verifica em qualquer outra cidade europeia. Lisboa possui várias estações de caminhos de ferro, de onde partem comboios para todas as regiões do país, existindo uma muito razoável cobertura da rede ferroviária que é moderna e segundo dizem, eficiente. O porto está praticamente sempre lotado de navios que dos confins do planeta, trazem das colónias os produtos destinados ao consumo interno e à exportação, adivinhando-se facilmente - se as condições políticas assim o permitirem - um futuro de progresso material que não deixará de beneficiar amplas camadas da população. O país é territorialmente pequeno, mas espantosamente, possui o terceiro maior Império colonial, exercendo a sua soberania sobre possessões banhadas por três oceanos e continentes. É certo que o facto de pertencer à sempre inconvenientemente considerada esfera de influência britânica, permite-lhe o luxo de exercer o domínio sobre territórios infinitamente mais valiosos que aqueles onde flutuam as bandeiras da Alemanha ou da Itália, por exemplo.
No café Gelo, discutiam-se animadamente as últimas novidade relativas ao mundo da política local e as responsabilidades sobre imaginárias desgraças recaíam alternada mas invariavelmente nas pessoas do rei Carlos ou Manuel, na rainha Amélia e claro está, nos padres, bem capazes, segundo esta gente, de todos os crimes que a mente mais retorcida pode imaginar. Seguros de verem em mim um estrangeiro disposto a escutá-los e que ainda por cima fala português, procuraram convencer-me acerca da justeza das suas ideias e projectos inconsistentes e recorrendo ao habitual argumento do Ultimatum, julgaram-me facilmente coagido pela timidez. Retorqui secamente que humilhação muito maior infligíramos à França em Fachoda, sem que por isso se pensasse seriamente derrubar o regime vigente naquele país. Mais acrescentei que isso provava a consistência de uma opinião pública que sabia distinguir o essencial daquilo que é perfeitamente negligenciável. Logo decorridos alguns minutos, pareceu-me que esta gente vive obcecada com sonhos de grandeza e com dogmas redentores de uma situação que afinal só se resolverá com persistência no trabalho, banco de escola, paz política e respeito pela hierarquia, coisa impossível de imaginar nestes ligeiros espíritos em teimosa efervescência. Poderia executar rapidamente um xeque-mate aos malcriados palradores, questionando-lhes acerca daquilo que consideram ser uma república, que tal como a Inglaterra, Portugal é e sempre foi. Creio que para os meus interlocutores, consiste num mero sucedâneo dos santinhos milagreiros que devotadamente adoravam na sua infância, esperando curas, alimentação farta e se possível, um bilhete premiado na lotaria. No fundo, para esta gente, a república é apenas um milagre, talvez tirado das profundezas de uma fé aparentemente renegada. Rapidamente cansado da colossal ignorância orgulhosamente assumida pelos revolucionários profissionais, decidi não perder mais tempo, pelo que polidamente me despedi, manifestando o interesse em ver o couraçado brasileiro S. Paulo que transporta o presidente Hermes da Fonseca que está de visita a este país. Maravilha técnica do engenho britânico, este navio e o seu irmão gémeo Minas Gerais, são decididamente peças essenciais na manutenção do status quo na sempre instável região do cone sul americano.
Descendo a Rua do Ouro - a oficialmente denominada Rua Áurea -, cheguei ao preciso local onde caíram varados pelas balas assassinas o rei Carlos e o seu herdeiro. As fachadas poente da magnífica Praça do Comércio - o Terreiro do Paço dos lisboetas e Black Horse Square entre os meus compatriotas -, ostentam as indeléveis marcas da chacina, pois a cantaria foi fortemente atingida durante o tiroteio daquela tarde de inverno. Fiquei a pensar se a versão que corre, a de um acto isolado de dois assassinos, pode ser sustentada. Não foram apenas eles, tenho a certeza.
Bordejada por árvores que oferecem protecção ao inclemente sol, omnipresente durante mais de metade do ano, esta praça possui uma magnífica estátua ao rei José I e evidentemente, no seu pedestal podemos olhar para o rosto severo e decidido do marquês de Pombal, o hábil ministro que conduziu os trabalhos de reconstrução da cidade destruída pelo cataclismo de 1755. O comércio que aqui se pratica é bastante diferente daquele que vimos na Baixa, pois no Terreiro encontramos vendedores ambulantes e gente que vem dos arrabaldes da cidade para vender os seus produtos hortícolas e animais de capoeira. Os preços são razoáveis para a nossa bolsa, mas continuo a interrogar-me acerca da inextricável capacidade de tantos portugueses em permanecerem vivos e de boa saúde, dada a bem visível inércia e fare niente que salta aos olhos em praticamente todas as ruas da capital.
É uma interrogação que não deixarei de colocar esta noite aos meus convivas na embaixada.
3 de Outubro de 1910
Exausto pelo longo jantar e com a mente toldada pelos vinhos e licores que acompanharam e que se seguiram ao repasto, regressei a pé ao Avenida, pois nesta cidade é ainda possível caminharmos distâncias que no mapa parecem grandes, mas que bem vistas as coisas, consistem invariavelmente nuns centos de jardas, ou no máximo, uma milha e meia.
Tive a oportunidade de conhecer alguns dos mais influentes compatriotas estabelecidos neste país, assim como convidados portugueses que esperava muito diferentes daquela gente que conhecera há umas horas no Rossio. Triste ilusão, pois as fatiotas, gravatas e lustrosas cartolas, serviam apenas de disfarce para as mesmíssimas enraizadas certezas no nada. A vacuidade da argumentação era atroz e não consegui vislumbrar o menor indício de um projecto exequível e baseado em factos que lhe dariam viabilidade. Nada, nada, apenas grandes tiradas sobre a liberdade e a igualdade, não se esquecendo o costumeiro progresso social, sempre na boca de gente que tem assalariados a seu cargo, sem nada se preocupar com condições de trabalho ou direitos de quem lhes dá o sustento. Pelo contrário, pareceram-me estranhamente elitistas, pois tentando compreender à luz da experiência inglesa e alemã, aquilo que se passa no ainda bastante incipiente operariado português, retorquiram-me apontando a ineficiência dos socialistas que no seu douto parecer ..."andam conluiados com o rei"... sendo aqui substituídos na função de renovação da sociedade, por um partido republicano - o deles - que pretendendo meramente alterar a face do regime, julga poder modificar como num passe de mágica, toda a situação do país. Inacreditável, mas absolutamente verdadeiro. À mesa, o mais linguarudo foi um conhecido comerciante proprietário de um grande armazém no Chiado que bramia todo o tipo de impropérios contra o regime que afinal lhe permitia manifestar-se de forma tão aberta e descuidada. Um outro conviva segredou-me que constava que a dita rubicunda criatura, estivera envolvida na conspiração regicida, pelo que tomei de imediato as minhas distâncias, sem antes deixar-lhe bem claro que em Paris seria preso por muito menos. Calou-se e desviou o olhar para o copo. No entanto, o conviva que mais atenção me despertou, foi um oficial do exército, o coronel Cunha que por várias vezes increpou o exaltado comerciante épicier, no sentido de moderar o tom com que se referia a personalidades públicas da Corte e do Parlamento. O que não deixei de estranhar, foi a presença desta gente em ágapes da nossa Legação, sabendo-se que o Reino Unido cultiva as melhores relações com o governo português, além de os soberanos deste país se encontrarem entre os numerosos parentes da casa real britânica. Muito estranho, mesmo muito estranho. Porque será?
Questionando o dito coronel Cunha acerca da viabilidade de um golpe subversivo dos republicanos, ele olhou fixamente o seu adversário natural - o comerciante milionário - e afagou a espada, dizendo: "ainda há uns dias estive com S.M. e com o Duque de Wellington no Buçaco, na celebração do primeiro centenário da nossa vitória contra a França de Napoleão. El-Rei D. Manuel é o Chefe do Estado e por inerência, o comandante em chefe das forças armadas. Devemos-lhe a lealdade de camaradas de armas e neste caso, ainda lhe digo mais: devíamos ter tomado rapidamente uma atitude no dia do regicídio, pois o país inteiro conhece quem foram os responsáveis!" Dito isto, apontou com o queixo na direcção do estupefacto negociante que não conseguiu articular qualquer resposta. E continuando, foi dizendo ..."que se tentarem algo, desta vez vão ver como lhes dói, atiramos a matar!"
Julguei o regime perfeitamente seguro, pois este exército tem uma certa experiência de combate. Quem não se recorda das grandes vitórias obtidas ainda há pouco tempo em Angola e Moçambique? Além disso, as celebrações do Centenário das Invasões francesas, consistiram num vibrante testemunho de fidelidade dos militares à Casa de Bragança e ao regime constitucional.
Terminado o jantar e a natural sequência de cigarros, brandy e Porto, manifestei visivelmente o meu cansaço, que plenamente se justificava pela viagem e longa caminhada que já fizera na cidade. Tive a infelicidade de ser forçado a aceitar a carruagem do comerciante que pressurosamente se ofereceu para me conduzir ao Avenida, quiçá tentando escusar-se da verborreia que abruptamente lhe interrompi. Pelo caminho voltou à carga e foi incessantemente palrando acerca das virtudes propiciadas pelo regime novo que ardentemente quer ver alvorecer em Portugal. Fala-me da liquidação da Igreja e de uma súbita modernização do tecido produtivo nacional. Segundo o seu infalível ponto de vista, a simples proclamação da república, susceptibilizará uma rápida queda dos preços, a instrução das massas e a consequente industrialização do país que passará a rivalizar com uma Bélgica ou uma Suíça. O delírio da propaganda - decerto eficaz no Gelo, mas que em mim, experiente como sou na análise da situação económica e social dos países que visito e onde tenho interesses -, produziu o efeito exactamente contrário. Este homem sonha com uma esquadra de couraçados que esmague a espanhola em poder e número. Num Portugal onde a escola é quase universalmente tomada por excentricidade de classe, julga possível alfabetizar o país inteiro em apenas alguns poucos anos e declara muito senhor de si, que os recursos do Estado - os impostos, quer dizer, o seu dinheiro - têm sido malbaratados pelo actual regime e são suficientes para servir de alavanca ao que ele designou por novo fontismo, isto é, um amplo programa de modernização das estruturas nacionais, desde o ensino aos transportes e à indústria. Conhecendo a dependência portuguesa relativamente ao exterior, interrogo-me se este homenzinho possui a mais ínfima ideia acerca dos problemas que levantou, pois sendo de difícil resolução em países mais poderosos, aqui, sem o regresso de um longuíssimo período de estabilidade, encontram-se mais longe que qualquer estrela do firmamento apenas vislumbrável por potente telescópio.
Aliviado por me furtar ao diluviano discurso de inanidades e pétreas certezas, recolhi-me ao meu quarto, sem que antes me tivessem avisado na portaria, que ..."qualquer coisa se está a passar". O que será agora? Mediante o pagamento de algumas moedas, fiquei ciente de que o porteiro está a par de tudo aquilo que de estranho se passa nas redondezas e desta forma, não deixará de me fornecer informações.
Após o almoço, soube-se que um médico de loucos, um tal dr. Bombarda fora abatido por um dos seus doentes, mas já corria célere o boato apontando o dedo aos jesuítas que neste preciso momento, parecem ir ocupar o lugar que a sociedade durante séculos reservou aos filhos de Israel. É claro que diante do Gelo já pude verificar a concentração de todos os vadios do costume, em forte gritaria e clamando por sangrenta vingança. A certo momento, um dos mais exaltados berrou que era necessário ir à sede do partido republicano buscar armas e bombas. Não podia acreditar no que escutava. Que país é este onde se permite a transformação de uma sede partidária em arsenal de subversivos? Uma simples rusga policial teria decapitado o dito partido em apenas alguns minutos, pensei eu. Contudo, um numeroso bando lá foi em desalvorada correria em direcção ao Largo de S. Carlos, onde diante da Ópera, se situa a dita sede. Como curiosidade, devo acrescentar que concomitante a este largo, situa-se o próprio Governo Civil de Lisboa, local pejado de policias e funcionários governamentais que pelo que ouço, pretendem ignorar aquilo a que chamam de "picardias". Pretendem isso sim, acalmar os exaltados e segundo as suas preclaras cabeças decidiram, é melhor ignorar as provocações, porque ..."essas coisas morrem por si"...
No meio da grande confusão e desta vez para minha satisfação, voltei a encontrar o comerciante que conhecera na Legação e que parecia estar plenamente ciente de tudo o que se passava. Mais, confessou-me com ar de altiva importância, que os republicanos escutavam todas as conversas telefónicas efectuadas pelo governo e pelo palácio real, pois algumas das telefonistas estavam incumbidas desse serviço de espionagem. É o deboche completo. Desta forma vim a saber que o chefe do governo contactara telefonicamente a rainha Amélia, ausente em Sintra, inteirando-a do que se passava na capital. O rei recebia o presidente brasileiro num banquete oficial em Belém e pensei que tudo isto não passava de mais um abortado devaneio dos amigos de alguns dos meus convivas de véspera. Esperava ver a todo o momento o exército a ocupar os pontos nevrálgicos da cidade, liquidando quaisquer intentos de desacato da ordem pública. Estranhamente, nada aconteceu. Fiquei também na posse da informação que dava como certo o refúgio dos chefes republicanos nos estabelecimentos de banhos de S. Paulo, ao Cais do Sodré. Toda esta bernarda parecia de antemão comprometida e decerto acabaria em rotundo fiasco. Num súbito impulso, lembrei-me que na véspera o coronel Cunha me oferecera o seu cartão, colocando-se à minha inteira disposição para aquilo que julgasse necessário. Dirigi-me ao local da sua residência, no Príncipe Real, onde me disseram que sua excelência estava de prevenção no quartel. Tranquilizado pelas palavras da esposa do oficial, resolvi retirar-me, convencido de que a manhã seguinte traria a esperada novidade do desvanecimento da combatividade revolucionária.
4 de Outubro de 1910
Durante a madrugada de hoje, não consegui adormecer devido ao tiroteio perfeitamente audível na Baixa. Subitamente, o pessoal do hotel decidiu fechar as portadas, evitando maçadas decorrentes de tiros perdidos. Sentimos o passo apressado dos militares da Guarda Municipal que ocupavam posições na Praça dos Restauradores, enquanto corriam boatos contraditórios acerca da adesão ou passividade dos regimentos aquartelados na capital. Tínhamos a perfeita consciência de que por muitas bombas artesanais que pudessem arremessar, os chamados carbonários e os "anarquistas" - eufemismo pelos quais os republicanos se faziam tratar -, jamais poderiam conseguir qualquer resultado positivo face ás tropas de linha, bem armadas, organizadas e municiadas. O factor vital consistia na capacidade de decisão dos comandantes e pelo que ouvira da boca do coronel Cunha, a obediência à hierarquia era um facto. Desta forma, continuei seguro de uma rápida extinção do movimento subversivo que politicamente, teria de ter consequências na ordem interna. Julgava muito candidamente, ter agora o governo a oportunidade única de decretar a imediata expulsão da camarilha do directório do PRP que já há quase três décadas impedia o normal funcionamento das instituições. Muito a propósito, entabulei então conversa com um francês que há muito residia neste hotel e que para meu espanto, está plenamente convencido da inevitabilidade da derrota monárquica. Procurando retorquir com o evidente carácter minoritário e local dos republicanos, respondeu-me exactamente aquilo que todos os estrangeiros consideravam um sinal evidente: no dia 1 de Fevereiro de 1908, sendo demitido João Franco das suas funções de presidente do Conselho de Ministros, consumara-se assim a queda do regime. Condescendera-se com os criminosos, o regicídio ficava impune, permitira-se o enxovalho público do novo rei, da sua família e da própria ordem constitucional. E voltando-se subitamente para mim declarou:
"Olhe que esta situação não é nova! Vivo neste país há quinze anos e o que tenho assistido durante todo este tempo, prova sobejamente tudo aquilo que lhe disse!" Dito isto, pediu-me para o acompanhar ao seu quarto, onde me mostrou alguns volumes com recortes de imprensa, cópias de actas de sessões parlamentares e uns quantos livrinhos mal amanhados que me informou serem propaganda paga pelo PRP.
" - Está a ver esta colecção? Desde já lhe digo, cher ami, que é um autêntico libelo de acusação do criminoso processo de sabotagem deste Estado constitucional. Consiste num aterrador dilúvio de todo o tipo de infâmias inimagináveis além-fronteiras! Olhe e leia com atenção! O apelo ao crime regicida "à moda sérvia" é constante. Por exemplo, aqui estão excertos de alguns discursos do António José de Almeida no Parlamento. Sabe quem é este sujeito, ainda por cima um médico? Acha isto possível em qualquer país civilizado? Em França, uns ditos destes dariam azo à imediata prisão dos atrevidos. Já viu em que termos esta gente se refere à rainha e ao resto da família? E o Costa, sabe quem é?"
Dito isto, acrescentou: - "é uma das mais desprezíveis, cobardes e turvas criaturas que conheci em toda a minha vida. Homem capaz de todas as vilanias, de um egoísmo à prova de qualquer análise de foro psicológico. Acredite no que lhe digo. Esta gente não presta, é má, rancorosa, incompetente e tornará a vida deste país num inferno! Por exemplo, já ouviu falar deste exemplar de literatura de cordel? É o famoso " O Marquês da Bacalhoa" que arrastou até ao precipício, a reputação da rainha e da sua entourage. É difícil imaginarmos o grau de baixeza a que se recorre, tendo como objecto uma senhora que poucos meses antes da sangueira do 1º de Fevereiro e durante a sua visita a Londres, era a figura central na célebre foto de cabeças coroadas presentes no palácio de Buckingham. Rainha de um pequeno país, a sua reputação de um ideal de mulher do nosso tempo, honesta e de uma impressionante presença que apenas encontrava rival na czarina Alexandra, colocava-a sempre no centro das atenções gerais. O desvelo com que a imperatriz alemã a olhava, é revelador do respeito que a rainha Amélia merecia. O PRP tudo fez para amesquinhar a soberana e consumou o crime, fazendo publicar O Marquês da Bacalhoa. Coisa mais infame é difícil de conceber e claro está, tem a chancela do directório republicano, disso não existe hoje qualquer dúvida! Questiono-me quotidianamente acerca da atitude que as potências tomarão perante a quase certa vitória final destes bandidos e sempre lhe vou garantindo - rivalidades históricas à parte - que muito mal faz o governo de Londres em não intervir decididamente, pois o que está em causa, é também a segurança do flanco peninsular da nossa Entente Cordiale que no rei Carlos tinha um firme esteio. Imagino o desespero do rei Eduardo VII que cerceado na sua acção, pouco ou nada poderá decidir quanto aos seus familiares de Lisboa. Com este PRP no poder, não poderemos contar com um exército português sequer capaz de garantir a inviolabilidade das fronteiras das suas extensas colónias africanas. Veja bem o enorme perigo que isso representa para o Império Britânico. Terão enlouquecido em Westminster?!"
Questionei-o então, acerca da verdadeira situação que o país vive, pedindo para se abstrair um pouco da guerrilha da propaganda. Respondendo, foi dizendo ..."pede-me o impossível, pois aqui é impensável tomarem-se medidas sejam elas de que carácter forem. Vigora a política da terra queimada e na verdade, só a instauração de um novo modelo constitucional que exima o soberano do jogo partidário - à semelhança daquilo que acontece na Inglaterra - poderá tranquilizar os espíritos. O mais curioso é que a esmagadora maioria da população é disso mesmo que está à espera e o rei Manuel é de facto popular. No entanto, os partidos nada mudarão, pois a garantia do seu sustento são os rendosos lugares proporcionados pelo exercício do poder político. O que pensa você pretenderem os ditos republicanos que aliás têm sido muito beneficiados pelos denominados rotativos? Até hoje têm servido como uma arma de arremesso de ambos, na feroz disputa pelo governo e nada mais que isso! No plano social, Portugal, sendo um país de escassos recursos materiais, não está assim tão atrasado como parece à primeira vista. Possui inteligências, institutos científicos e infra-estruturas bem construídas e recentes. Se você quiser, pode escolher hoje ir à Ópera, ao teatro de variedades que aqui se chama de revista ou tão só deleitar-se com uma representação clássica. Existem boas livrarias com todas as novidades que do estrangeiro chegam. A imprensa é livre e se existe censura, esta é sempre a posteriori, quando o mal já está dito e feito. Sempre quero ver o que os ditos republicanos farão com a liberdades de imprensa de que o país ainda beneficia... tenho sérias e razoáveis dúvidas quanto a tudo isto, para nem sequer mencionar a questão eleitoral"...
Esmagado pelas inesperadas revelações, decidi questioná-lo acerca da possível reacção das forças armadas:
- "Olhe, essas também estão em dúvida, porque desde o assassinato do rei, a impunidade da propaganda nos quartéis, conduziu à progressiva deterioração do respeito pela hierarquia. Não tendo existido uma imediata resposta ao assassinato de D. Carlos, muitos oficiais encararam a contemporização da política pretensiosamente crismada de "acalmação", como uma rendição total. Dos militares, também nada de bom podemos esperar. Não se trata de uma questão de cobardia, mas sim de puro e simples laissez-faire, oportunismo, falta de sentido daquilo que verdadeiramente interessa e consequentemente, talvez aceitarão a nova situação sem se manifestarem... enfim, mais uma vergonhosa ignomínia! Juramentos a bandeiras, são coisas vistas com displicência. As forças armadas? Não passam de funcionários públicos muito zelosos da segurança dos seus postos."
Soubemos então do motim a bordo de alguns dos cruzadores da armada, pelo que considerámos tornar-se de hora a hora, mais crítica a situação das forças leais ao regime. Apanhadas entre dois fogos, a única solução seria tomar de assalto a posição dos revoltosos na Rotunda, situada no cimo da Avenida da Liberdade. Do directório do PRP nada se sabia, sendo muito provável mais uma das habituais fugas ou um seguro esconderijo enquanto espera o desenlace dos acontecimentos. A polícia poderia facilmente procurá-lo, pois Lisboa inteira conhece por boato o local onde se acoita: os Banhos de S. Paulo. A posição das unidades militares da área de Lisboa é totalmente desconhecida e suspeitámos que o silêncio indiciava a pura abstenção. Contudo, o resultado da luta ainda parecia incerto, dada a resistência oferecida pelas tropas realistas que acabaram por confinar os revoltosos à Rotunda. Já se mencionava o nome do conhecido e bravo africanista Paiva Couceiro, uma garantia de lealismo. Tudo parecia possível ou provável e claro está, a situação residia única e simplesmente na decisão dos militares em intervir, esmagando a sedição. O porteiro do hotel acabou finalmente por nos informar que um dos caudilhos republicanos, o almirante Reis, se tinha suicidado, ao que parece por julgar perdida a sua causa.
Os períodos de intensa fuzilaria -com escassas baixas de parte a parte, há que afirmá-lo - alternavam com outros de aparente calma. Surpreendentemente, soubemos que ambos os adversários recebiam visitas de populares, como se de uma festa ou romaria se tratasse e com os apetecidos "comes e bebes" de acompanhamento. Aquele que por mero acaso vencesse, contaria com a imediata adesão das massas citadinas, sempre prontas a festejar o herói do momento, aspecto caricato que dava a esta situação, uma sonora nota de ópera bufa.
Durante algumas horas, tentei telefonar para a nossa Legação, sem que tal fosse possível e assim, já a altas horas da noite, decidi ir uma vez mais a casa do coronel Cunha, procurando obter o máximo de informações credíveis. Tocando a sineta, mal pude acreditar quando o próprio me veio abrir a porta, apresentando-se despenteado, de barba por fazer e fardado de roupão. Da forma mais amistosa que lhe foi possível, convidou-me a entrar e pelo caminho até ao salão, foi dizendo que nada sabia do que se estava a passar.
- "E a sua unidade"?, perguntei-lhe incrédulo.
- "Lá deve estar, de portões fechados e aguardando os acontecimentos"...
- "Aguardando os acontecimentos?! Mas não era suposto V. Exa. encontrar-se neste preciso momento à frente do seu regimento, honrando o juramento que fez questão em reafirmar há apenas 48 horas?!"
Empalidecendo, o coronel Cunha balbuciou algumas palavras incompreensíveis e depois, de forma mais decidida, concluiu a nossa rápida entrevista, apontando-me o caminho da saída:
- "Sabe, o meu compromisso é para com o país e não com este ou aquele regime. Os juramentos são feitos a uma determinada situação de um momento preciso. Se amanhã tivermos de proferir um outro, paciência"...
e encolhendo os ombros, deixou cair mãos, dizendo ..."é a vida"...
5 de Outubro de 1910
Durante toda a madrugada troou o canhão e já nem sequer sabíamos se os estrondos provinham de granadas lançadas pela esquadra amotinada ou pelas peças de 75 colocadas desde a Rotunda até ao Torel, estas últimas bem perto dos Restauradores, onde ainda me encontrava. Dada a trágica situação que passava a irmanar Lisboa com a Odessa do couraçado Potemkine, dei graças aos céus por ainda não termos vendido qualquer couraçado à marinha portuguesa. Imagino os estragos que neste momento estaria a provocar numa cidade submetida a um dilúvio de granadas de 12 polegadas! Quem estava no hotel e conhecia bem a situação, dizia que os sediciosos venceriam, dada a abstenção do grosso do exército que facilmente teria liquidado a triste aventura. Para dificultar as coisas às unidades combatentes fiéis à legalidade, começaram a escassear as munições, pois os tiros provenientes das suas linhas tornaram-se cada vez mais espaçados, até quase cessarem por completo.
Logo pela manhã, parece que um representante do Kaiser Guilherme em Lisboa, quis garantir a segurança dos seus concidadãos residentes na capital e cometeu a imprudência de se deslocar com uma bandeira branca à terra de ninguém que separava os dois grupos contendores. Isto foi interpretado como uma rendição das tropas fiéis, o que provocou de imediato uma enorme aglomeração de gente excitada com os acontecimentos e consequentemente, terminaram os combates.
Decidi sair à rua para ver o que se passava e soube que tinham proclamado a república na Câmara Municipal, situada num largo adjacente à Praça do Comércio. Sabemos como psicologicamente funcionam as multidões, pois se a tropa tivesse cumprido o seu dever consagrado pelo juramento, neste preciso momento andariam pelas ruas bandos populares à caça dos traidores e decerto a sede do PRP seria já pasto das chamas. Mas como o resultado foi diferente, verifiquei de imediato aquilo que decerto será o modus vivendi futuro neste país. Dois padres que iam a passar no Rossio, estavam a ser violentamente sovados e de vestes despedaçadas, submetiam-se à vindicta de uma gentuça comandada por uns tipos de aspecto inclassificável e que de espingarda na mão, iam organizando grupos de acção punitiva. Coisa estranha esta, uma vez que desde o fim da guerra civil há já mais de setenta anos, a Igreja passara a ser fortemente controlada pelo Estado e até bispos pertenciam a organizações maçónicas, integrando plenamente a sociedade política liberal. Em Portugal, o radicalismo anti-religioso do PRP decerto mergulhará o país no caos. Os sectores mais conservadores da Igreja estarão finalmente livres para o exercício das suas actividades, pois é isso mesmo o que significa a dita separação da Igreja e do Estado. No nosso país, a igreja anglicana encontra-se de tal forma submetida, que podemos até afirmar que exercemos uma espécie de política regalista, na qual o nosso rei assume as funções aqui reservadas ao próprio Papa! Que estúpidos, tacanhos e ignorantes são estes pretensos republicanos portugueses...
O resto, é o que se previa. Adesões de última hora, delírios dignos do carnaval e pasme-se, esta gente que agora comanda, vai apresentando a revolução como coisa ordeira e decente, pois à porta dos bancos colocaram rufias armados, não vão os populares lembrarem-se de roubar os bens dos donos da revolução, quase todos homens de cabedais e boas posses, latifundiários, banqueiros e agiotas. Grande revolução esta, que começa logo por ser proclamada - segundo me disseram -, por um conhecido grande proprietário rural, bon vivant ocioso e dado a coisas do frisson mondain, um tal Relvas!
Já para o fim da tarde, conheci os nomes das novas autoridades no poder. Na Legação sabem bem quem eles são e junto a um senil com pretensões a literato que dá pelo nome de Braga, surge logo o tal facínora Costa de quem me falou Monsieur Peyrot. A estes surgem igualmente associados um entusiasta das ditaduras que se chama Basílio Teles, um trânsfuga das hostes monárquicas de nome Machado (e que segundo me disseram tem o curioso título de barão de Joane), e alguns mais, cuja insignificância não lhes dá qualquer direito a que retenha a identidade. Não me posso esquecer do tal grosseirão parlamentar, o médico dr. Almeida que todos sabem ser o coordenador da manufactura de bombas terroristas do partido que ajuda a dirigir. O director do hotel disse-me que este sujeito é aquilo a que vulgarmente se designa de demagogo, capaz de grandes tiradas oratórias junto da ralé, ao mesmo tempo que no Parlamento protagoniza episódios onde a linguagem escandalosa, a infâmia e o simples insulto, serviram sempre para agradar aos arrebanhados contingentes de populares que assistiam às sessões. Que regime sairá daqui, é coisa que até o maior idiota pode facilmente prever, porque esta gente não se encontra minimamente preparada, não tem a confiança das grandes potências, está envolvida em numerosos crimes de sangue e pior que tudo isto, durante anos lançou prodigamente ao solo, as sementes da anarquia, do ódio e da falta de respeito pelo outro e pela Lei. Prevejo um futuro infalivelmente manchado pela ruína, guerra civil e rebaixamento de Portugal no concerto das nações e desta certeza, ninguém me tira.
Infelizmente, fui involuntariamente obrigado a presenciar uma deplorável cena de escabrosa cobardia e oportunismo. Quando regressava ao hotel, vi passar o tal coronel Cunha já impecavelmente fardado e levado em ombros por populares, coisa que me fez de imediato recordar cenas semelhantes que presenciara há uns anos no México. O inepto oficial já não ostentava no boné, a coroa regulamentar do uniforme! Aderira de imediato à nova situação e fico a pensar naquelas palavras altivamente proferidas no jantar na nossa Legação, quando afagando o sabre de cerimónia - pois apenas para isso serve e o futuro decerto o confirmará -, dizia ..."atiraremos a matar!" Que vergonha, que miserável criatura e dizem-se eles os herdeiros daqueles que talharam pela espada e pelo sacrifício este país, levando a sua bandeira ao Brasil, Índia e Japão! Como é isto possível? São estes os homens que a Europa passou a admirar após as chamadas campanhas de pacificação em África? É a desonra, o total opróbrio e isto dias após um solene juramento! Como poderá no futuro este país confiar nos militares que há séculos guardam ciosamente a sua independência? Para a segurança da Inglaterra e a partir de hoje mesmo, julgo que o nosso Estado Maior deverá deixar de contar com estas forças armadas para o cumprimento dos compromissos inerentes à Aliança, pois provaram-no até à saciedade que não merecem a mínima confiança. O que seria o seu desempenho num campo de batalha numa futura grande guerra europeia? Na verdade, não tendo manifestado num heróico impulso a sua indignação pelo vil assassinato do seu próprio Comandante-em-Chefe há apenas dois anos, deixaram de contar como força de confiança e respeitabilidade. São um bando de energúmenos uniformizados, apenas cientes do seu papel consumidor de recursos de um Estado que lhes dá cama, mesa e um totalmente imerecido estatuto social.
Foi esta a minha experiência durante os dias de uma revolução que não o é, pois não vejo qualquer viabilidade nos megalómanos projectos redentores propalados pelos seus próceres. Não terão os idolatrados couraçados, nem o tal "bacalhau a pataco". O pão não será praticamente gratuito e agora definitivamente no poder, os grandes interesses económicos farão sentir pesadamente a sua mão estranguladora dos direitos dos operários. Estou seguríssimo de uma futura e radical repressão nas ruas, de mais sangue, opressão da imprensa, fraude eleitoral, esbulhos e ataques à integridade pessoal de muitos daqueles que dentro em pouco se recordarão amargamente dos tempos em que eles próprios de tudo se serviram para espezinhar quem durante décadas lhes deu liberdade de expressão, paz social e progresso material. O tempo o dirá.
6 de Outubro de 1910
Os acontecimentos dos últimos dias, forçaram-me a tomar a drástica decisão de anular os restantes compromissos aprazados muito antes do início desta viagem. Era suposto visitar o Porto e as suas adegas, assim como Leixões e uma parte do Minho, onde tenho alguns amigos. Desisto. Tudo o que vi nestas últimas horas é demasiadamente angustiante e digo-o sem pestanejar, fez com que perdesse o respeito por este velho e fiel aliado que tantos serviços prestou à nossa pátria, sem que muitas vezes nós, ingleses, o reconhecêssemos. Agora é tarde, não ajudámos a quem muito devíamos e que neste momento de desgraça, ruma em direcção a Inglaterra, onde esperam encontrar abrigo. Estou certo de que saberemos acolhê-los com a merecida dignidade e que por fim estejam a salvo destes energúmenos que agora em Portugal ditam a sua lei.
Um pouco por todo o lado surgem grupos perfeitamente identificados com o PRP e as suas ramificações carbonárias - ou será exactamente o inverso? - que procedem a depredações e violências de todo o tipo, encarniçando-se especialmente contra os edifícios religiosos e a propriedade de alguns destacados responsáveis do regime deposto. Os padres continuam a ser humilhantemente despidos das suas vestes em plena rua, são tosquiados como se fossem gado e sovados a murro, estalo ou bastonada, sob o olhar indiferente de uma Guarda Municipal ainda ontem derrotada pela própria inércia. Ardem conventos e claro está, os senhores do momento aproveitam para fazer mão baixa nos valiosos bens que encontram portas adentro. Missais preciosos, iluminuras, incunábulos, tudo é roubado ou destruído. Após os saques, na calçada estão já em cinzas telas de mestres portugueses dos séculos XV ao XVIII e figuras religiosas de santos em talha são despedaçadas sem olhar, pelo menos, ao seu valor patrimonial. Outra nota absolutamente iníqua e revoltante, é o facto do surgimento de bandos armados que confiscam as bandeiras nacionais, ateando-lhes fogo em crepitosos autos-da-fé nos Restauradores e Rossio e tudo isto, sem que o pusilânime exército tome uma atitude. É a selvajaria mais infrene que campeia em toda a sua violência primitiva, no meio de dichotes e cantorias com as estrofes mais reles que possamos imaginar. As freiras são tratadas como se prostitutas fossem, sendo despojadas dos seus bens e postas na rua. É este o novo Portugal. Um pouco por todo o lado, meliantes armados de martelos, destroem as coroas que encimavam os escudos nacionais dos edifícios públicos e isto acontece, segundo alguns decentes transeuntes me disseram, para o costumeiro fingimento futuro de obra feita. Assim, dentro de algumas décadas, um povo estupidificado por uma pretensiosa elite de escroques, pensará que tudo aquilo que existe, tem a autoria dos santarrões adoradores da estrangeira Marianne. Simultaneamente, grupos de caceteiros invadem as residências de conhecidas figuras da sociedade lisboeta, forçando os atemorizados proprietários a fazer sumir sob panos negros, os brasões que durante séculos adornaram as fachadas. Parece aos olhos do mundo que o país morreu ou está de luto e sem disso ter a consciência, são os próprios cangalheiros que fazem a festa e se ufanam com o funeral das suas próprias vidas de homens livres. Vou partir, nada mais tenho para fazer aqui, num país que se rebaixou à condição de tugúrio mal frequentado. Até os cabecilhas do novo regime já assumiram sem pejo a sua herança de mau agouro, pois organizam-se procissões comandadas pelo directório republicano, que ao cemitério do Alto de S. João, situado nos arrabaldes da cidade, vão prestar homenagem aos regicidas de 1908. E nem é preciso procurar muito para encontrar a perfeita sintonia que impera naquelas hostes, uma vez que os retratos dos assassinos surgem nas lacrimosas pagelas profusamente distribuídas pelo partido, lado a lado dos mais conhecidos dirigentes, como o Costa, o Almeida ou o Bernardino. Estranhamente, fazem-me de imediato recordar uma certa espécie de gente que tive a ingrata oportunidade de observar na Sicília, quando da minha visita aos monumentos mais importantes da antiga Magna Graecia. O mesmo olhar turvo e reservado, o semblante raivoso e a arrogante aspereza nas atitudes, submetendo qualquer acto a senhas e contra-senhas. São estes os grandes homens que querem governar Portugal e para confirmá-lo, já fizeram içar por todo o lado o miserável trapo do partido, pretendendo vê-lo consagrado como nova bandeira nacional. Chegarão a tanto?
A caminho do cais, continuam as mesmas cenas acima descritas e pasme-se, uma reedição tardia do Carnaval, mas desta vez, em Outubro. Surgem por todo o lado crianças com aspecto de macaquinhas de feira vestidas de ... república! Incrível mas absolutamente verdadeiro, mais parecendo viciosos duendes mascarados de carrascos de boné vermelho, tal o grotesco das figuras. Tudo isto é bastante ordinário e descoroçoante e passa-se já em pleno século XX! Atrasados, atrasados, o rei Carlos tinha razão quando afirmava que há males que de longe vêm.
Agora, uma das primeiras atitudes das autoridades é rastejar perante o país que odiaram durante décadas. Suprema hipocrisia, protestam a sua fidelidade aos ingleses, fazem por esquecer quarenta anos de agravos e de suicida loucura que nos obrigou a um indesejável Ultimatum. Suspeito que cairão em todo o tipo de torpezas para conseguirem o reconhecimento internacional que ninguém no seu perfeito juízo parece, por agora, disposto a conceder-lhes, tal a má reputação desta cambada.
Tendo finalmente embarcado para Portsmouth, fico a pensar como será este país dentro, digamos, de cem anos? Terá conseguido esquecer toda esta violência, desperdício de energia e falta de respeito por si próprio e por uma história sem igual? Terá concedido de forma pacífica e ordeira a independência ao seu imenso império colonial que logicamente um dia se emancipará tal como a monarquia o soube fazer relativamente ao Brasil? Terá finalmente atingido o nível de desenvolvimento dos seus parceiros europeus de quem lenta mas inexoravelmente se ia aproximando? Consolidará uma democracia, ou passará por uma ininterrupta e mortífera série de revoluções, golpes de Estado, assassinatos de homens públicos, ruína financeira, corrupção e generalizada miséria?
Não acabará tudo isto pela instauração de uma ditadura que se eternizará no tempo e nos espíritos?
Já a caminho da barra, olhei em direcção à popa e pela última vez vi Lisboa. Pareceu-me estranha. Já não era a mesma cidade refulgente de luz branca que tinha encontrado há apenas alguns dias. O sol poente tingia-a de uma luz avermelhada, como se um imenso incêndio a abrasasse.
"Portugal foi fundado em 5 de Outubro de 1143. Sim, não me enganei no dia. Portugal foi fundado num 5 de Outubro, o mesmo 5 de Outubro do golpe de estado que implementou um regime anti-democrático e violento vulgarmente conhecido pelo eufemismo I República. Por outras palavras, a glorificação dos revolucionários de 1910 esconde a fundação do país. Portugal fez 870 anos no sábado, mas a elite comemorou 103 anos de um golpe de estado que uma minoria impôs ao país.
O país é anterior às ideologias. O país precede os regimes. Os regimes e as ideologias existem para servirem o país, e não o contrário. Ao celebrar 1910 em vez de 1143, a III República está a dizer que Portugal existe para servir a ideologia da esquerda jacobina."
No mesmo local e à mesma hora.
Uma manifestação com muitos milhares de pessoas. Cobertura do jornal? Zero.
A comemoração do estado a que chegámos: 17 fulanos têm honra a foto e colunazinha. Melhor teriam feito em engrossar os costumeiros dez jagunços que ontem foram berrar asneiras na Praça do Município. Assim, em vez dos entusiasticamente acusadores dedos de duas mãos, Cavaco teria contado com as unhacas de seis mãos, uma delas com apenas dois dedos, uma singela homenagem aos bombistas carbonários que nos deram o verde-tinto. Quanto aos sargentos, aqui está o tal fugaz momento de fama.
103 anos de "república" (república entendida como sistema de governo, e não como a administração do bem comum) traduziram-se no ocaso da memória colectiva dos nossos condidadãos. Hoje, dia 5 de Outubro, nós, portugueses, deveríamos estar a celebrar a assinatura do tratado de Zamora, que crismou, como é sabido, a independência do reino de Portugal. Mas, em vez disso, o motivo das nossas celebrações é uma data que. bem vistas as coisas, carreou a destruição inapelável das tradições mais arraigadas da grei portuguesa. O indício mais forte do nosso decaimento vê-se, precisamente, no desprezo que, ironicamente, o grosso do nosso povo vota às datas matriciais da Nação. O 5 de Outubro é, por conseguinte, uma espécie de data mítica, sob a qual, com muita prestidigitação à mistura, germinou o "Portugal Novo" moderno e progressista. A história, com as suas costumeiras vicissitudes, tem-se encarregado de desmentir o dogmatismo republicano, colocando a nu as falácias de uma mundividência que falseia impudentemente. Portugal decaiu, mas continua, felizmente, de pé, à espera do levantamento das suas gentes, sobretudo, daqueles que não baixam os braços, e que não esquecem, afortunadamente, os seus antepassados. Foi este o espírito que animou as famosas Cortes de Lamego, que culminaram com o Grito de Almacave: Nos liberi sumus, Rex noster liber est, manus nostrae nos liberverunt. Fomos e somos livres, mas falta-nos cumprir Portugal.
Publicado aqui.
Ainda nem sequer arrefeceu o corpo das autárquicas, ainda mal se enterraram os resultados das eleições, e já entramos claramente num outro ciclo de motivações políticas. Cavaco Silva e António Costa, de mãos dadas ou não, em dia comemorativo, invocam os atributos de um país democrático, mas não devem estar a referir-se a Portugal. Devem estar a sonhar alto. Ora veja-se: cidadãos de primeira e cidadãos de segunda não pode ser tolerado (que grande embuste. Os tribunais e o sistema de justiça demonstram precisamente o oposto); importância da educação na promoção social (a educação? devem estar a gozar. A promoção social assenta no tamanho da carteira e no estatuto decorrente do dinheiro); a democracia não pode ser secundarizada (então e a troika e os tribunais? Foram eleitos pelo povo?); o poder está ao serviço do povo (bullshit! o poder está ao serviço de grupos financeiros e corporações); a escola é o mais importante instrumento de mobilidade social (sim, aqui têm razão, acertaram na ideia, mas não referem o sentido descendente do ensino em Portugal). Como podem constatar, a demagogia continua a ser o que sempre foi: um conjunto de palavras vazias sem correspondência com a realidade. Não sei se António Costa quer aproveitar ensinamentos de Cavaco Silva no sentido de preparar a sua rampa de lançamento a Belém, mas deve levar em conta outro candidato em fim de ciclo europeu. Durão Barroso, que mais dia menos dia será corrido da presidência de comissão, ainda pode vir a dar um pézinho de dança nas presidenciais. Quando o presidente da comissão vem com esta conversa de que um segundo resgate a Portugal não está em cima da mesa, parece que já emigrou de Bruxelas para o terreiro de Passos Coelho, e que está alinhado com a marcha da indignação nacional. O populismo também não deixou de ser o que era. Pelo andar do calendário político, tempos interessantes avizinham-se, mas tenho sérias dúvidas que todas estas excitações pessoais sirvam o interesse nacional. Não. António Costa não chega ao fim do mandato municipal. Não. Seguro não serve como alternativa. E o que resta aos portugueses? Aguentar as aspirações políticas de representantes eleitos por sufrágio mais transcendental que universal. Lamentavelmente para Portugal, o grande vencedor parece ser a austeridade crónica que conheçerá ainda maiores desenvolvimentos nos anos que se seguem. A república de Portugal está exposta às suas contrariedades num sentido que extravasa o idealismo de revoluções recentes. É curioso como António Costa foi aclamado rei de Lisboa para no dia seguinte ser vaiado de um modo tão intenso. O povo-eleitor também deve reflectir sobre o modo como reparte a sua personalidade política. Um dia é uma coisa no dia seguinte outra. Afinal o que resta? Resta um país feito em cacos económicos e sociais, apesar das lideranças absolutas, das preferências ideológicas e dos discursos de salão nobre.
Aqui fica o meu artigo de hoje para o Diário Digital, publicado também no blog da Real Associação de Lisboa.
(1 de Dezembro de 2012, fotografia cordialmente cedida pela Real Associação de Lisboa)
No meio da catástrofe que se abateu sobre Portugal e os portugueses, uma tendência fetichista com a eliminação dos feriados emerge entre os que nos vão sujeitando a uma penosa navegação à vista. Ilustrativa quanto baste da perigosidade do Leviatã e dos que o manobram praticando o velhinho princípio cesarista de divide et impera, esta tendência torna-se ainda mais preocupante quando colocada em perspectiva nos contextos da intervenção internacional a que o consulado socrático infelizmente nos trouxe e da crise da União Europeia que muitos parecem querer ultrapassar com uma fuga para a frente em direcção a um federalismo muito pouco federalista e democrático, o que me traz à memória uma célebre gaffe de João Pinto, antigo jogador do Futebol Clube do Porto: “Estávamos à beira do abismo e fizemos o que tínhamos a fazer: demos o passo em frente.”
Não constando do memorando de entendimento com a troika ou do programa do actual governo quaisquer referências à redução do número de feriados, não deixa de ser intrigante assistir a esta tendência apresentada como forma de penitência, visando a redenção perante os parceiros internacionais e ajudando a reforçar ideias perigosas como a de que em Portugal trabalha-se poucas horas, quando na verdade trabalhamos mais horas que a média europeia, ou a de que a culpa da crise que vivemos é da nossa total responsabilidade, quando se é certo que os governantes erraram em muita coisa nas últimas décadas, também não deixa de ser porque o sistema financeiro europeu e as políticas da União Europeia contribuíram em larga medida para os desvarios que nos trouxeram ao estado a que chegámos.
Primeiro foram os quatro feriados que o governo achou por bem negociar em sede de concertação social, como se esta tivesse qualquer mandato para tal – o que é revelador não só da falta de conexão entre as confederações que ali têm assento e a nação, mas também dos tiques autoritários que perpassam este governo. Há dias, foi notícia a intenção do governo de tornar o 25 de Abril um feriado de celebração opcional nas embaixadas, missões bilaterais e serviços consulares portugueses. Sendo o feriado fundacional do regime, não deixa de ser estranho que a sua celebração deixe de ser obrigatória nas representações externas do estado português, o que em conjunto com a eliminação do feriado do 1.º de Dezembro só vem agravar ainda mais a preocupante propensão para não nos darmos ao respeito na arena internacional.
Mas mais grave que isto é este fetiche parecer-me estar enquadrado no processo de apagamento da identidade portuguesa em curso, sobre o qual escrevi no início deste ano. Como se não bastasse o absurdo Acordo Ortográfico que vai desfigurando a língua portuguesa, o governo ainda se considera no direito de dispor a seu bel-prazer de celebrações de mitos que dão corpo à nossa identidade nacional, à nossa pátria, não hesitando inclusive em enveredar pelo já referido dividir para reinar, no qual caíram monárquicos e republicanos a respeito do 1.º de Dezembro e 5 de Outubro. Este processo não é fruto do mero acaso. Trata-se de um ataque despudorado ao Estado-nação, que visa abrir brechas para permitir, em primeiro lugar, o enfraquecimento e manipulação da identidade nacional, e em segundo, o reforço da lealdade e identificação com a União Europeia, o que poderá vir a reflectir-se na tentativa de implantação de uma suposta identidade supranacional que muito facilitaria o trabalho aos eurocratas que, não satisfeitos com a fragmentação a que a maioria das nações e sociedades europeias foram e estão a ser sujeitas, parecem apostados em dar o passo em frente em direcção ao abismo. Não estou com isto a dizer que a União Europeia não deve avançar no sentido de uma federação. Mas conhecendo-se o historial do método comunitário, apenas suspeito fortemente que o processo que levará a uma federação europeia aprofundará o défice democrático e terá muito pouco respeito pelas identidades nacionais.
Desenganem-se os que julgam, como salienta Pierre Manent, que uma nação “é um traje ligeiro que se possa pôr e tirar à vontade, ficando-se na mesma.” Escreve o autor francês que “Ela é esse todo no qual todos os elementos da nossa vida se reúnem e ganham sentido.” Como assinala Roger Scruton, é a cultura que nos une e a pátria é o lugar onde regressamos, nem que seja apenas em pensamento, no fim das nossas deambulações. Por mim, continuo a subscrever Pessoa quando afirma que “O Estado está acima do cidadão, mas o Homem está acima do Estado” e apenas acrescento que a pátria está acima do estado, não podendo ser aprisionada por este nem por nenhum de nós e sendo, na realidade, o mito que fundamenta o burkeano contrato entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer. Porque recordando ainda Miguel Torga, a pátria é “o espaço telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre humana e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto sossega, a sua inteligência fulgura, o seu passado tem sentido e o seu presente tem futuro.”
Que actualmente sejamos liderados por um governo que tem revelado esforços muito tímidos quanto a fazer aquilo para que foi eleito e que ambos os partidos da coligação prometeram em campanha eleitoral – reformar o estado –, preferindo a velha e estafada receita do aumento de impostos, parece-me ser uma vicissitude de um regime democrático, que não deixa de reforçar o descrédito dos agentes políticos e, consequentemente, do regime. Mas que numa das mais graves horas que enfrentamos colectivamente, ainda sejamos sujeitos a uma ofensiva anti-patriótica, é somente trágico.
Portugal já se habituou aos ditos, semana sim, semana sim. O homem não pára, é um fenomenal portento de vitalidade e vale mais do que o PS, PSD, CDS, PC e BE juntos em santa aliança. Sendo aos noventa anos um gigante da política doméstica, não há notícia que não comente, nem caso em que não pretenda continuar a exercer aquela "magistratura de influência" que tantas memórias deixou desde o rectânculo peninsular, até Macau.
Durante anos colocou as eleições, como o obelisco central da praça da democracia. Normalizou as coligações interpartidárias, quando num país avesso a entendimentos de Estado, tal coisa, embora tão naturalmente europeia, fosse considerada como um quase absurdo que estorvava os normais interesses das agremiações políticas. Conseguiu-o e por duas vezes utilizou o PSD e o CDS para se manter no poder e dar alguma firmeza ao regime. Agora cultiva impulsos bem diversos, vendo nas eleições que não dão o "resultado que interessa", um estorvo que urge minimizar:
“Há momentos em que as eleições não se justificam porque não resolverão nada e podem antes complicar muito a situação”, frase que Salazar decerto muito bem compreenderia, embora jamais a tivesse pronunciado. Poderíamos até dizer que se trata de um indirecto reconhecimento honoris causa dos princípios basilares da inexistente 2ª República que existiu, queira ou não queira, bem verde e vermelha.
No que respeita às origens da catástrofe que jamais o atingirá na sua condição de ultra-beneficiário do sistema, acredita piamente na existência de uma total "falta de sensibilidade política e de vergonha", alijando tudo o que neste país se passou desde já há mais de trinta anos, oseu consulado governativo incluído. Os roubos descarados, as PPP, as negociatas banca-política-construtoras de camaradas, a falsificação dos concursos públicos tornados meros pro forma, a péssima - isto, na melhor das hipóteses - administração de dinheiro público e de fundos comunitários que outrora foram mais rutilantes que o ouro do Brasil, a total destruição do aparelho produtivo, a ausência de uma política externa de garantia da soberania nacional, o ataque desbragado às Forças Armadas, o completo deboche na gestão dos centros urbanos que há décadas estão a saque, tudo isto pouco importará. Vogando ao sabor de uma maré europeia definitivamente baixa e que deixa o caranguejo português em areia seca, garante que “a própria troika teme, seriamente, pelo que pode acontecer ao nosso país, no plano social, dado o desespero e a violência crescente nos portugueses”. A verdade a dizer é que treme antes do mais, pela sobrevivência do sistema que ajudou a erguer e que se há uns tempos ainda pareceria de uma solidez granítica, hoje tem aquela consistência da terra em liquefação, prenunciadora de um "terramoto à antiga portuguesa".
Para o que conta e evitando um tão indesejável quão hipotético sucesso relativo, o que agora mais importa é liquidar o governo e a maioria, macaqueando-se as eleições que tal como Cunhal dizia, "não servem para nada", passando-se para um esquema de comissários europeus à imagem de Monti. Mário Soares não se atreve a ir ao ponto de exigir novo escrutínio, pois todos entenderiam a clara desfaçatez do "assim não vale" das alternâncias urneiras. Desta forma, o estatuto de protectorado fica garantido e oferece melhores perspectivas aos tontos e irrealizáveis sonhos federalistas de Bruxelas. É este o verdadeiro, o único móbil que já não engana seja quem for. Se a montização do poder não for possível, há contudo que trazer para a área da governação os seus correligionários de partido, arredando Paulo Portas - considerado demasiadamente astuto - e talvez reeditando um bloco central de interesses que se dedique afanosamente a esconder ou a adoçicar, tudo aquilo que há muito o país deveria saber. Voluntarizando-se, o ex-deputado, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, ex-1º ministro e ex-presidente, surge agora como a suprema tapadera de tudo aquilo que aos poucos, muito a conta-gotas, vai surgindo nos media. O problema que ainda não se colocou às suas venerandas circunvoluções cerebrais, consiste na pouca credibilidade que estes golpes de prestidigitação colhem junto dos credores e financiadores do regime.
Como estocada final, o articulista não poderia terminar a sua posta diária, sem voltar à carga com o felizmente extinto 5 de Outubro. Afirma que “o Presidente Cavaco Silva teve a ideia peregrina de excluir o povo da cerimónia”. “Um 5 de Outubro sem povo não faz sentido nenhum".
Claro que Mário Soares tem toda a razão, embora a verdade exija que se diga que quanto a este caso, Cavaco Silva está totalmente isento de culpa, sendo apenas um autómato de serviço.
Como jamais houve povo nas comemorações do 5 de Outubro - uma não-efeméride que apenas propicia o derradeiro dia de praia em cada ano -, por isso mesmo foi o anónimo feriado abolido. Infelizmente não existe qualquer "agenda oculta".
Dobrar a Bandeira Nacional
A dobragem da Bandeira Nacional, especialmente em cerimónias, deverá ser efectuada de modo a que, no final, resulte um rectângulo com a largura e comprimento do Escudo Nacional. A dobragem deverá ser feita por, normalmente, quatro pessoas, seguindo os seguintes passos:
1. Coloca-se a bandeira na horizontal, segura pelas bordas da tralha e do batente;
2. Dobra-se o terço superior para trás;
3. Dobra-se o terço inferior para trás;
4. Dobra-se o lado do batente (encarnado) para trás;
5. Finaliza-se, dobrando-se o lado da tralha (verde) para trás.
O resultado:
(Macau, 1999)
Assim se trata a Bandeira Nacional com respeito e se dobra de forma a se poder ver exactamente qual a sua posição evitando equívocos (no mínimo) embaraçosos. Não se dobra a Bandeira Nacional como se fosse um lençol ou uma toalha!
Que grandes republicanos estes que comemoraram o Cinco de Outubro de 1910! Tanto discurso inflamado, tanto orgulho nos "valores republicanos" e nem a própria bandeira sabem tratar com o devido respeito, numa cerimónia feita para as câmaras numa Praça do Município vazia de assistência. Com cerimónias como a deste ano, a suspensão do feriado é um bom pretexto para os republicanos deixarem de celebrar o Cinco de Outubro: é um favor que fazem à República.
Imagens e texto do protocolo de dobragem da Bandeira Nacional do site dos Escoteiros de Portugal - Grupo 242 de Corroios, a quem envio saudações cordiais. No mesmo site pode ser consultado o texto do Decreto-Lei nº150/87 de 30 de Março, sobre o uso da Bandeira Nacional.
José Malhoa, Outono, 1918
A única conclusão a retirar do degradante espectáculo público protagonizado pela nata política do regime neste penoso 5 de Outubro, é apenas uma: este regime, na catrefada de erros que o tem caracterizado, chegou ao seu crepúsculo terminal. O tribalismo "devorista" das nossas elites, e a impermeabilidade das mesmas ao pulsar da vida quotidiana, conduzirão, mais dia menos dia, a um fim súbito.
«If your crew has to abandon a ship in distress to save their lifes, the last thing to do (if you have time to do so) is to turn the flag upside down. This means that you woud give up any right on the vessel or cargo and anybody who manages to rescue the ship afterwards could keep it»
(fotografia cortesia da Causa Real)
Portugueses,
Nesta hora difícil que Portugal atravessa, talvez uma das mais difíceis da nossa já longa história, afectando a vida das famílias portuguesas e dos mais desfavorecidos de entre nós, Eu, enquanto descendente e representante dos Reis de Portugal, sinto ser meu dever moral e obrigação política dirigir-vos uma mensagem profunda e sentida, como se a todos conseguisse falar pessoalmente.
Estamos a viver uma terrível crise económica, o nosso país vê-se esmagado pelo endividamento externo, pelo défice das contas públicas e pela decorrente e necessária austeridade.
O actual regime vigora há pouco mais de 100 anos, e muitos dos seus governantes, por acção ou omissão, não quiseram ou não foram capazes de evitar o estado de deterioração a que chegaram as finanças públicas. Tais governantes, é preciso dizê-lo de forma clara, foram responsáveis directos pela perda da soberania portuguesa e pelo descrédito internacional em que caiu Portugal, uma das mais antigas e prestigiadas nações da Europa. Sem uma estratégia de longo ou sequer de médio prazo, sem sentirem a necessidade de obedecerem a um plano estratégico nacional, não conseguiram construir as bases necessárias para um modelo de desenvolvimento politicamente são e economicamente sustentável, optando, antes, pelo facilitismo e pelo encosto ao Estado.
Infelizmente, o Estado, vítima também ele da visão curta com que tem sido administrado, tem permitido que se agravem as assimetrias regionais, que se assista à desertificação humana do nosso território e que fique cada vez mais fundo o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres.
Infelizmente, Portugal continua a ser dos países europeus com índices de desigualdade mais altos. Todos têm o direito de ver bem remunerado o esforço do seu trabalho, da sua criatividade, da sua ousadia e do seu risco, mas a ninguém pode ser cortada a igualdade de oportunidades.
Agora, neste momento de particular gravidade, em que nos é pedido um esforço ainda maior, recordo que o Estado é sobretudo suportado pelo fruto do esforço, do trabalho dos portugueses e de muitas das empresas a quem os portugueses dão o melhor das suas capacidades. Todos eles são merecedores do respeito por parte de quem gere os nossos impostos, e é esse respeito, esse exemplo que se exige ao Estado. Não posso deixar de aplaudir a dedicação, a entrega e sobretudo a enorme boa vontade com que inúmeros funcionários públicos se dedicam a servir com dignidade o nosso país.
Mas este diagnóstico e estas constatações valem pouco, valem muito pouco, quando confrontados com as dificuldades com que muitos portugueses hoje se debatem. Um facto é incontornável: a crise está aí e toca-nos a todos, e com ela se vão destruindo postos de trabalho, se vai degradando o nível de vida das nossas famílias e se vão desprotegendo os mais frágeis. Não tenhamos ilusões: muitos são os que hoje só sobrevivem graças à imensa solidariedade de que o nosso povo ainda é capaz. Porque somos um povo generoso, gente de bem, somos um povo capaz de tudo quando nos unimos em torno de um objectivo comum.
Torna-se importante, por isso, lembrar que neste dia, há quase 9 séculos, contra todas as adversidades, nascia Portugal, uma nação livre e independente, fruto da vontade e sacrifício dum povo unido à volta do seu Rei.
Então, como agora, foi fundamental a existência de um projecto nacional, uma causa comum e desejada que a todos envolveu: grandes e pequenos, governantes e governados, homens e mulheres. Um projecto que tinha, acima de tudo, o Rei e os portugueses, unidos por um vínculo indestrutível, constantemente renovado e vencedor, um vínculo de compromisso que nos ajudou a ultrapassar crises avassaladoras no passado, e que se prolongou pelos séculos seguintes, sendo interrompida apenas em 1910.
Foi essa mesma comunhão, uma comunhão de homens livres, que permitiu a reconquista e o povoamento do território, bem como, mais tarde, a epopeia dos descobrimentos e a expansão de Portugal pelo mundo. Foi todo um Povo, o nosso Povo, que enfrentou, com coragem e determinação os mares desconhecidos, "dando, assim, novos mundos ao mundo". Foi a gesta de todo um Povo que permitiu criar este grande espaço de língua e afectos da Lusofonia, vivido em pleno pelas nações nossas irmãs, hoje integradas na CPLP. E foi a renovação desse projecto que permitiu a restauração da nossa independência em 1640, neste local, naquela que foi uma verdadeira refundação nacional, só conseguida pelo esforço e sacrifício dos Portugueses de então.
É pois este o desafio que temos hoje pela frente: refundar um projecto nacional capaz de unir todos os Portugueses de boa vontade, com o objectivo de reerguer Portugal, devolvendo a esperança e o orgulho a cada português. Esse projecto mobilizador é imprescindível para que cada um de nós possa ambicionar ter uma vida normal, socialmente útil, para que possa ser promovido pelo mérito e pelo esforço do seu trabalho, criar uma família e contribuir, cada um na sua medida, para o engrandecimento de Portugal.
Para que este projecto nacional seja possível, teremos de repensar o actual sistema político e as nossas instituições, procurando alcançar uma efectiva justiça social e a coesão económica e territorial, aproximando os eleitos dos eleitores.
Devemos também considerar as vantagens da Instituição Real, renovando a chefia do Estado para restaurar o vínculo milenar que sempre uniu os portugueses ao seu Rei.
O Rei interpreta o sentir da Nação, e age apenas pelo superior interesse do país, e nenhum outro interesse deve também mover os actores políticos. Portugal precisa de autoridade moral, de união em torno de um ideal, Portugal precisa de um projecto que seja o cimento em torno da Nação – a política e, acima dela, a Coroa, deve procurar sempre servir esse ideal, e nunca servir-se dele em benefício próprio.
É num sistema político, moderno, democrático, que a Chefia de Estado, isenta como tem de estar de lutas políticas e imbuída de uma autoridade moral que lhe advém do vínculo indestrutível e milenar com os portugueses, pode e deve zelar pelo bom funcionamento das instituições políticas, assegurando aos portugueses a sua eficácia e transparência. É a mesma Chefia de Estado que pode e deve apoiar a acção diplomática do Governo com o elo natural que a liga aos países lusófonos e a muitos dos nossos congéneres europeus. Acredito que só é possível debater a integração europeia, na sua forma e conteúdo, em torno de um elemento agregador: a agenda própria de um país multisecular na Europa, mas também com continuidade linguística, histórica, social, patrimonial e empresarial em geografias distantes. É o Rei que, personificando a riqueza da nossa história e cultura, é o último garante da nossa independência e individualidade enquanto Nação.
Portugal, nação antiga, com um povo generoso e capaz de grandes sacrifícios, sê-lo-á ainda mais se encontrar no Estado e nos seus representantes o exemplo de cumprimento do dever, de assunção dos sacrifícios e de sobriedade que os tempos de hoje e de sempre exigem.
Unidos e solidários num renovado projecto nacional que devolva a esperança aos Portugueses, reencontrados com uma instituição fundacional – a Instituição Real – sempre isenta e centrada no bem comum, então todos nós Portugueses – em Portugal ou espalhados pelo mundo através das vivíssimas comunidades emigrantes – com a grandeza de alma de que sempre fomos capazes nas horas difíceis, estaremos dispostos aos necessários e equitativos sacrifícios que a presente hora impõe. Em nome do futuro de todos os que nos são queridos, filhos e netos. Numa palavra: em nome de Portugal.
Não duvido que, aconteça o que acontecer, os Portugueses, com calma, ponderação e perseverança, saberão lutar para continuar a merecer o seu lugar na história e no concerto das nações. Eu e a minha Família – assim os Portugueses o queiram – saberemos estar à altura do momento e prontos para cumprir, como sempre, o nosso dever, que é só um: servir Portugal.
Existe uma alternativa muito clara à actual situação a que chegou a este regime, alternativa que passa por devolver a Portugal a sua Instituição Real e que, se não resolve por si só todos os nossos problemas actuais, será certamente – como o provam os vários países europeus que a souberam preservar – um grande factor de união popular, de estabilidade política e de esperança coletiva. Numa palavra, de progresso.
Portugal triunfará! assim saibamos unir esforços, assim saiba cada um de nós, de forma solidária, dar o melhor de si mesmo, não esquecendo nunca os que mais sofrem e os que mais precisam. Que ninguém duvide: somos uma nação extraordinária, e o valor e a coragem do nosso povo serão a chave do nosso sucesso.
Viva Portugal!
Aquele amplo salão de portas escancaradas à população de Lisboa, é um local carregado de memórias da nossa luta por uma independência hoje mais do que nunca ameaçada. Esta tarde recebeu centenas de portugueses que ouviram as palavras de total entrega da Casa Real ao povo. Não podendo nem desejando participar nas questiúnculas da micro-política partidária, o Senhor D. Duarte fez o discurso que ao país mais convém, não deixando de vincar a inequívoca posição da Casa de Bragança quanto ao catastrófico momento que o país atravessa. Um abissal contraste com o caudal de lugares comuns hoje medrosamente murmurados no Pátio da Galé.
Terminada a cerimónia, S.A.R. dirigiu-se à conhecida e popular A Ginjinha do Rossio, onde, para grande surpresa dos muitos clientes que àquela hora bebericavam e na rua aproveitavam os derradeiros dias de um sol ainda a fazer-nos lembrar o verão que já passou, o chefe da Casa Real abertamente falou com quem ali estava e com outros que de imediato por ali ficaram numa curiosa expectativa.
Aquele que para muitos é simplesmente tratado como O Rei, não deve nem teme. Não se eximindo ao contacto com a população, ouviu queixas e palavras de incentivo a uma causa que representa a derradeira esperança de milhões de oprimidos nos seus direitos de cidadania.
Com este Rei, os esmagados súbditos da República seriam os verdadeiros e únicos senhores do país.
"O actual regime vigora há pouco mais de 100 anos, e muitos dos seus governantes, por acção ou omissão, não quiseram ou não foram capazes de evitar o estado de deterioração a que chegaram as finanças públicas. Tais governantes, é preciso dizê-lo de forma clara, foram responsáveis directos pela perda da soberania portuguesa e pelo descrédito internacional em que caiu Portugal, uma das mais antigas e prestigiadas nações da Europa."
Excerto do discurso de S.A.R. Dom Duarte, Duque de Bragança.
No dia em que a República Portuguesa hasteou a sua bandeira ao contrário, é com muito prazer que o Estado Sentido apresenta em exclusivo e em primeira mão o vídeo da aventura de um intrépido monárquico que, em 5 de Outubro de 2010, hasteou a bandeira azul e branca no consulado de Portugal em Macau, acontecimento que foi noticiado pela Lusa, conforme imagem abaixo.
Neste preciso momento, está Pacheco Pereira na SICBalsemão da cleptocracia e como sempre proverbialmente rabioso de "não colocado à mesa", verberando as autoridades governamentais por não tencionarem comparecer no Pátio da Galé, evitando a comemoração da ostentosa e perdulária bagunça feita instituição.
É mesmo verdade, o primeiro-ministro não se apresentará ao pesaroso evento em vias de extinção garantida, seguindo aquilo que os portugueses ditaram há várias gerações: não interessa a data e o infausto acontecimento, não param um único segundo para pensarem no assunto e simplesmente não vão, não querem saber. Embora empurrando os próprios temores para outrem, nem sequer Mário Soares se maçará em aparecer, também ele com receando improváveis "maus encontros" com uma população que como sempre, ficará em casa.
Como o vértice do obscuro esquema vigente não podia faltar à comemoração da razão da sua própria existência, atrapalhadamente conseguiu organizar uma missa negra quase clandestina, precisamente naquele sítio onde outrora se ergueu um Paço Real de seculares glórias. Onde há quase quatrocentos anos se restaurou a independência julgada para sempre eterna, amanhã estarão presentes muitos dos coveiros da soberania nacional. Ali mesmo, a uns metros do sítio onde se inaugurou o século republicano no 1º de Fevereiro de 1908 - 5 de Outubro é a sua data gémea -, comparecerão algumas altas individualidades obrigadas ao frete que é um autêntico suplício de más relações públicas. Nesta miséria que nos derreia, não se arriscam a qualquer praça e nem sequer uma grande sala de espectáculos lhes poderá valer. Ficam-se por um pátio, coisa escondida e protegida pelas sólidas paredes que o bom gosto e o zelo do josefismo pombalino soube construir.
De ano para ano, a reunião vai emagrecendo de convivas, talvez ralados pelo parecer mal em época de tantos apertos e evidentes insucessos que a própria menção do nome República implica.
Amanhã será celebrada uma cerimónia que será como uma procissão de finados, talvez ligeiramente suavizada por umas tantas flores e modernizada pelas cadeiras de plástico "de empilhar", destinadas às três dúzias de hierarcas da ruína de Portugal. Dez milhões de não convidados carpirão mágoas próprias, talvez encerrados em casa e vituperando uma a uma, as conhecidas criaturas que forem surgindo nos ecrãs.
Num povo que a República condenou às galés, o regime não poderia ter escolhido melhor local para celebrar as suas exéquias: o Pátio da Galé.
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«Tu julgas que eu ignoro o perigo em que ando? No estado de excitação em que se acham os ânimos, qualquer dia matam-me à esquina de uma rua. Mas, que queres tu que eu faça? Se me metesse em casa, se não saísse, provocaria um grande descalabro. Seria a bancarrota. E que ideia fariam de mim os estrangeiros, se vissem o rei impedido de sair? Seria o descrédito. Eu, fazendo o que faço, mostro que há sossego no País e que têm respeito pela minha pessoa. Cumpro o meu dever. Os outros que cumpram o seu.»
O Público encanitou-se por no próximo dia 5 de Outubro, o 1º ministro não comemorar o desastre de 1910. Pelo que se diz, estará em Bratislava e não comparecendo à nojeira, apenas fará precisamente o que o resto da população portuguesa faz: ignora a coisa. Mas afinal que país é este em que se anuncia o fim da comemoração da chantrona parasita e afinal de contas, aqui está ela pela "última vez"? Parece o tal caso das cassetes que foram, mas afinal ainda não foram destruídas.
Enquanto o 1.º de Dezembro e o 5 de Outubro são extintos definitivamente, os feriados religiosos "ficam suspensos apenas por cinco anos, sendo a situação reavaliada no final desse período, ou seja, em 2018", por ser essa a vontade da Santa Sé. Neste vale tudo da "governamentalização da coisa pública no seu máximo de simbólico" (José Adelino Maltez), já que se invoca a vontade da Santa Sé, então e porque não negociar com a imperadora do Sacro Império Germânico a suspensão formal da nossa soberania por 5 anos, a troco de mais uns cobres para manter a cleptogerontocracia vigente? E de caminho, que tal tentar também sacar umas massas a nuestros hermanos, negociando a nossa História e passando a ter manuais de História Ibérica ou coisa que o valha?
Sugiro ainda a leitura de Luís Menezes Leitão, e relembro o que em Janeiro escrevi a este respeito, que podem também encontrar no número 7 do Correio Real:
Por mais que não celebre o 5 de Outubro, infelizmente não partilho da alegria que parece ter acometido alguns monárquicos a respeito da extinção do 5 de Outubro. Primeiro, porque quando a extinção da celebração do 1.º de Dezembro já havia sido anunciada, nada mais restava ao governo senão extinguir também o 5 de Outubro; não o fazer seria ainda mais escandaloso, como escrevi aqui, mas ter extinguido os dois é um acto de violência perpetrado sobre todos nós, portugueses - era uma situação de perda para todos, logo à partida, pelo que o melhor seria nunca ter acontecido. Segundo, porque esta questão está envolta numa demagogia ignóbil passada como economicismo pelos aprendizes de Maquiavel, como se esta história dos feriados fosse realmente resolver os problemas do país quando o estado continua a gastar à tripa forra e sem ser verdadeiramente reformado. Terceiro, porque acabámos todos a ser gozados pelo governo vigente, onde o dividir para reinar parece ser mote levado à letra no processo de gaspar-alvarização em curso. Infelizmente, passou a ser mais importante para alguns monárquicos celebrar a extinção do 5 de Outubro do que tentar preservar o 1.º de Dezembro, assim como para alguns republicanos o contrário também é verdade, quando dever-nos-íamos, todos, ter unido contra o Leviatã, porque, e em quarto lugar e o mais importante, como também escrevi aqui, não compete ao governo, ou pelo menos não deveríamos deixar que lhe competisse, dispor como bem entender de celebrações que pertencem ao domínio da sociedade, que são reflexo dos mitos com que inventámos a nossa nação.