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A República (5)

por Nuno Castelo-Branco, em 06.10.11

 

(continuação)

 

Diário de N. White Castle: Lisboa, 6 de Outubro de 1910

 

Os acontecimentos dos últimos dias, forçaram-me a tomar a drástica decisão de anular os restantes compromissos aprazados muito antes do início desta viagem. Era suposto visitar o Porto e as suas adegas, assim como Leixões e uma parte do Minho, onde tenho alguns amigos. Desisto. Tudo o que vi nestas últimas horas é demasiadamente angustiante e digo-o sem pestanejar, fez com que perdesse o respeito por este velho e fiel aliado que tantos serviços prestou à nossa pátria, sem que muitas vezes nós, ingleses, o reconhecêssemos. Agora é tarde, não ajudámos a quem muito devíamos e que neste momento de desgraça, ruma em direcção a Inglaterra, onde esperam encontrar abrigo.  Estou certo de que saberemos acolhê-los com a merecida dignidade e que por fim estejam a salvo destes energúmenos que agora em Portugal ditam a sua lei.

 

Um pouco por todo o lado surgem grupos perfeitamente identificados com o PRP e as suas ramificações carbonárias - ou será exactamente o inverso? - que procedem a depredações e violências de todo o tipo, encarniçando-se especialmente contra os edifícios religiosos e a propriedade de alguns destacados responsáveis do regime deposto. Os padres continuam a ser humilhantemente despidos das suas vestes em plena rua, são tosquiados como se fossem gado e sovados a murro, estalo ou bastonada, sob o olhar indiferente de uma Guarda Municipal ainda ontem derrotada pela própria inércia. Ardem conventos e claro está, os senhores do momento aproveitam para fazer mão baixa nos valiosos bens que encontram portas  adentro. Missais preciosos, iluminuras, inconábulos, tudo é roubado ou destruído. Na calçada estão já em cinzas, telas de mestres portugueses dos séculos XV ao XVIII e figuras religiosas de santos em talha são despedaçadas sem olhar, pelo menos, ao seu valor patrimonial. Outra nota absolutamente iníqua e revoltante, é o facto do surgimento de bandos armados que confiscam as bandeiras nacionais, ateando-lhes fogo em crepitosos autos-da-fé nos Restauradores e Rossio e tudo isto, sem que o pusilânime exército tome uma atitude. É a selvajaria mais infrene que campeia em toda a sua violência primitiva, no meio de dichotes e cantorias com as estrofes mais reles que possamos imaginar. As freiras são tratadas como se prostitutas fossem, sendo despojadas dos seus bens e postas na rua. É este o novo Portugal. Um pouco por todo o lado, meliantes armados de martelos, destroem as coroas que encimavam os escudos nacionais dos edifícios públicos e isto acontece, segundo alguns decentes transeuntes me disseram, para o costumeiro fingimento de obra feita. Assim, dentro de algumas décadas, um povo estupidificado por uma pretensiosa elite de escroques, pensará que tudo aquilo que existe, tem a autoria dos santarrões adoradores da estrangeira Marianne. Simultaneamente, grupos de caceteiros invadem as residências de conhecidas figuras da sociedade lisboeta, forçando os atemorizados proprietários a fazer sumir sob panos negros, os brasões que durante séculos adornaram as fachadas. Parece aos olhos do mundo que o país morreu ou está de luto e sem disso ter a consciência, são os próprios cangalheiros que fazem a festa e se ufanam com o funeral das suas próprias vidas de homens livres. Vou partir, nada mais tenho para fazer aqui, num país que se rebaixou à condição de tugúrio mal frequentado. Até os cabecilhas do novo regime já assumiram sem pejo a sua herança de mau agouro, pois organizam-se procissões comandadas pelo directório republicano, que ao cemitério do Alto de S. João, situado nos arrabaldes da cidade, vão prestar homenagem aos regicidas de 1908. E nem é preciso procurar muito para encontrar a perfeita sintonia que impera naquelas hostes, uma vez que os retratos dos assassinos surgem nas lacrimosas pagelas profusamente distribuídas pelo partido, lado a lado dos mais conhecidos dirigentes, como o Costa, o Almeida ou o Bernardino. Estranhamente, fazem-me de imediato recordar uma certa espécie de gente que tive a ingrata oportunidade de observar na Sicília, quando da minha visita aos monumentos mais importantes da antiga Magna Graecia. O mesmo olhar turvo e reservado, o semblante raivoso e a arrogante aspereza nas atitudes, submetendo qualquer acto a senhas e contra-senhas.  São estes os grandes homens que querem governar Portugal e para confirmá-lo, já fizeram içar por todo o lado o miserável trapo do partido, pretendendo vê-lo consagrado como nova bandeira nacional. Chegarão a tanto?

 

A caminho do cais, continuam as mesmas cenas acima descritas e pasme-se, uma reedição tardia do Carnaval, mas desta vez, em Outubro. Surgem por todo o lado crianças com aspecto de macaquinhas de feira vestidas de ... república! Incrível mas absolutamente verdadeiro, mais parecendo viciosos duendes mascarados de carrascos de boné vermelho, tal o grotesco das figuras. Tudo isto é bastante ordinário e descoroçoante e passa-se já em pleno século XX! Atrasados, atrasados, o rei Carlos tinha razão quando afirmava que há males que de longe vêem. 

 

Agora, uma das primeiras atitudes das autoridades é rastejar perante o país que odiaram durante décadas. Suprema hipocrisia, protestam a sua fidelidade aos ingleses, fazem por esquecer quarenta anos de agravos e de suicida loucura que nos obrigou a um indesejável Ultimatum.  Suspeito que cairão em todo o tipo de torpezas para conseguirem o reconhecimento internacional que ninguém no seu perfeito juízo parece, por agora, disposto a conceder-lhes, tal a má reputação desta cambada.

 

Tendo finalmente embarcado para Portsmouth, fico a pensar como será este país dentro, digamos, de  cem anos? Terá conseguido esquecer toda esta violência, desperdício de energia e falta de respeito por si próprio e por uma história sem igual? Terá concedido de forma pacífica e ordeira a independência ao seu imenso império colonial que logicamente um dia se emancipará tal como a monarquia o soube fazer relativamente ao Brasil? Terá finalmente atingido o nível de desenvolvimento dos seus parceiros europeus de quem lenta mas inexoravelmente se ia aproximando? Consolidará uma democracia, ou passará por uma ininterrupta e mortífera série de revoluções, golpes de Estado, assassinatos de homens públicos, ruína financeira, corrupção e generalizada miséria?

 

Não acabará tudo isto pela instauração de uma ditadura que se eternizará no tempo e nos espíritos? 

 

Já a caminho da barra, olhei em direcção à popa e pela última vez vi Lisboa. Pareceu-me estranha. Já não era a mesma cidade refulgente de luz branca que tinha encontrado há apenas alguns dias. O sol poente tingia-a de uma luz avermelhada, como se um imenso incêndio a abrasasse. 


publicado às 09:04

 

 

Os acontecimentos dos últimos dias forçaram-me a tomar a drástica decisão de anular os restantes compromissos aprazados muito antes do início desta viagem. Era suposto visitar o Porto e as suas adegas, assim como Leixões e uma parte do Minho, onde tenho alguns amigos. Desisto. Tudo o que vi nestas últimas horas é damasiadamente angustiante e digo-o sem pestanejar, fez com que perdesse o respeito por este velho e fiel aliado que tantos serviços prestou à nossa pátria, sem que muitas vezes nós, ingleses, o reconhecêssemos. Agora é tarde, não ajudámos a quem muito devíamos e que neste momento de desgraça, ruma em direcção a Inglaterra, onde esperam encontrar abrigo.  Estou certo de que saberemos acolhê-los com a merecida dignidade e que por fim estejam a salvo destes energúmenos que agora em Portugal ditam a sua lei.

Um pouco por todo o lado surgem grupos perfeitamente identificados com o prp e as suas ramificações carbonárias - ou será exactamente o inverso? - que procedem a depredações e violências de todo o tipo, encarniçando-se especialmente contra os edifícios religiosos e a propriedade de alguns destacados responsáveis do regime deposto. Os padres continuam a ser humilhantemente despidos das suas vestes em plena rua, são tosquiados como se fossem gado e sovados a murro, estalo ou bastonada, sob o olhar indiferente de uma Guarda Municipal ainda ontem derrotada. Ardem conventos e claro está, os senhores do momento aproveitam para fazer mão baixa nos valiosos bens que encontram portas  adentro. Missais preciosos, iluminuras, inconábulos, tudo é roubado ou destruído. Na calçada estão já em cinzas, telas de mestres portugueses dos séculos XV ao XVIII e figuras religiosas de santos em talha são despedaçadas sem olhar pelo menos, ao seu valor patrimonial. Outra nota absolutamente iníqua e revoltante, é o facto do surgimento de bandos armados que confiscam as bandeiras nacionais, que após ardem em crepitosos autos-da-fé nos Restauradores e Rossio e tudo isto sem que o pusilânime exército tome uma atitude. É a selvajaria mais infrene que campeia em toda a sua violência primitiva, no meio de dichotes e cantorias com as estrofes mais reles que se possa imaginar. As freiras são tratadas como se prostitutas fossem e são despojadas dos seus bens, postas na rua sem apelo. É este o novo Portugal. Um pouco por todo o lado, meliantes armados de martelos, destroem as coroas que encimavam os escudos nacionais dos edifícios públicos e isto, segundo alguns decentes transeuntes me disseram, para o costumeiro fingimento de obra feita. Assim, dentro de algumas décadas, um povo estupidificado por uma pretensiosa elite de escroques, pensará que tudo aquilo que existe, tem a autoria dos santarrões adoradores da estrangeira Marianne. Simultaneamente, grupos de caceteiros invadem as residências de conhecidas figuras da sociedade lisboeta, forçando os atemorizados proprietários a tapar com panos negros, os brasões que durante séculos adornaram as fachadas. Parece aos olhos do mundo, que o país morreu ou está de luto e sem disso ter a consciência, são os próprios cangalheiros que fazem a festa e se ufanam com o funeral das suas próprias vidas de homens livres. Vou partir, nada mais tenho para fazer aqui, num país que se rebaixou à condição de tugúrio mal frequentado. Até os cabecilhas do novo regime já assumiram sem pejo a sua herança de mau agouro, pois organizam-se procissões comandadas pelo directório republicano, que ao cemitério do Alto de S. João, situado nos arrabaldes da cidade, vão prestar homenagem aos regicidas de 1908. E nem é preciso procurar muito para encontrar a perfeita sintonia que impera naquelas hostes, uma vez que os retratos dos assassinos surgem nas pagelas profusamente distribuídas pelo partido, ao lado dos mais conhecidos dirigentes, como o Costa, o Almeidaou o Bernardino. Estranhamente, fazem-me de imediato recordar uma certa espécie de gente que tive a ingrata oportunidade de observar na Sicília, quando da minha visita aos monumentos mais importantes da antiga Magna Graecia. O mesmo olhar turvo e reservado, semblante raivoso e arrogante aspereza nas atitudes. São estes os grandes homens que querem governar o país e para confirmá-lo, já fizeram içar por todo o lado o miserável trapo do partido que pretendem ver consagrado como nova bandeira nacional. Chegarão a tanto?

 

A caminho do cais, continuam as mesmas cenas acima descritas e pasme-se, uma reedição tardia do Carnaval, desta vez em Outubro. Surgem por todo o lado crianças com aspecto de sopeirinhas vestidas de ... república! Incrível mas absolutamente verdadeiro, mais parecendo viciosos duendes mascarados de carrascos de boné vermelho, tal o grotesco das figuras. Tudo isto é bastante ordinário e descoroçoante e passa-se já em pleno século XX.! Atrasados, atrasados, o rei Carlos tinha razão quando afirmava que há males que de longe vêm. 

 

Agora, uma das primeiras atitudes das autoridades é rastejar perante o nosso país, de quem tripudiaram durante décadas. Suprema hipocrisia, protestam a sua fidelidade aos ingleses, fazem por esquecer quarenta anos de agravos e de suicida loucura que nos obrigou a um indesejado Ultimatum.  Suspeito que cairão em todo o tipo de torpezas para conseguir o reconhecimento internacional que ninguém no seu perfeito juízo parece, por agora, disposto a conceder-lhes, tal a má reputação desta autêntica cambada de néscios.

 

Tendo finalmente embarcado para Portsmouth, fico a pensar como será este país dentro, digamos, de  cem anos? Terá conseguido esquecer toda esta violência, desperdício de energia e falta de respeito por si próprio e por uma história sem igual? Terá concedido de forma pacífica e ordeira a independência ao seu imenso império colonial que logicamente um dia se emancipará tal como a monarquia o soube fazer relativamente ao Brasil? Terá finalmente atingido o nível de desenvolvimento dos seus parceiros europeus de quem lenta mas inexoravelmente se ia aproximando? Consolidará uma democracia, ou passará por uma ininterrupta e mortífera série de revoluções, golpes de Estado, assassinatos de homens públicos, ruína financeira, corrupção e generalizada miséria? Não acabará tudo isto pela instauração de uma ditadura que se eternizará no tempo e nos espíritos? 

 

Já a caminho da barra, olhei em direcção à popa e pela última vez vi Lisboa. Pareceu-me estranha. Já não era a mesma cidade refulgente de luz branca que tinha encontrado há apenas alguns dias. O sol poente tingia-a de uma luz avermelhada, como se um imenso incêndio a abrasasse. 

publicado às 13:33






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