Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Albert Camus, A Queda:
«O que é certo é que o próprio censurado [Jesus Cristo] não pôde continuar. E eu sei, meu caro, o que estou a dizer. Houve tempo em que eu ignorava, em cada minuto, como poderia chegar ao seguinte. Sim, pode-se fazer a guerra neste mundo, macaquear o amor, torturar o seu semelhante, brilhar nos jornais ou simplesmente dizer mal do vizinho enquanto se faz malha. Mas, em certos casos, continuar, somente continuar, eis o que é sobre-humano. E ele não era sobre-humano, pode crer. Gritou a sua agonia e eis porque o amo, a esse meu amigo, ele que morreu sem saber.»
Albert Camus, A Queda:
«Acredite-me, as religiões do mundo enganam-se desde o momento em que pregam moral e fulminam mandamentos. Deus não é necessário para criar a culpabilidade nem para castigar. Para isso bastam os nossos semelhantes, ajudados por nós próprios. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria respeitosamente. Eu espero-o a pé firme: conheci o que há de pior, que é o juízo dos homens. (…) Vou dizer-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Realiza-se todos os dias.»
Albert Camus, A Queda:
«Era de origem honesta mas obscura (meu pai era oficial), e no entanto, certas manhãs, humildemente o confesso, sentia-me filho de rei ou sarça ardente. Tratava-se, repare bem, de algo bem diferente da certeza em que eu vivia de ser mais inteligente do que ninguém. Tal certeza, aliás, é inconsequente que é partilhada por tantos imbecis. Não, à força de ser cumulado, sentia-me, hesito em confessá-lo, um eleito. Eleito pessoalmente, entre todos, para este longo e constante êxito. Aí estava, em suma, um efeito da minha modéstia. Negava-me a atribuir este êxito unicamente aos meus méritos e não podia acreditar que a reunião, numa só pessoa, de qualidades tão diferentes e tão opostas fosse apenas o resultado do puro acaso. Eis porque, vivendo feliz, eu me sentia, de certa maneira, autorizado a fruir desta felicidade por algum decreto superior. Se lhe disser que não tinha qualquer religião, perceberá ainda melhor o que havia de extraordinário nesta convicção. Extraordinária ou não, ela ergueu-me, durante muito tempo, acima do ramerrão quotidiano, e pairei, literalmente, durante anos, dos quais, para dizer a verdade, ainda tenho saudades.»