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"Portanto, à pergunta feita há seis mil anos por Eclesiastes: "Quem pôde jamais sondar as profundezas do abismo?", dois, entre todos os homens, têm direito de responder agora - o Capitão Nemo e eu."
20.000 Léguas submarinas, Júlio Verne
É desta forma que termina este belíssimo clássico da literatura. Numa escrita seca e depurada, chamando à colação o sempiterno Eclesiastes, Júlio Verne coloca a questão do milhão de dólares: "quem pôde jamais sondar as profundezas do abismo?" Questão árdua e espinhosa, com uma resposta dúbia. No fundo, e fazendo agora a transposição da resposta de Verne para a realidade humilíssima do nosso querido Portugal, o povo português pode responder sem o menor rebuço que já viu, vê, e, pelos vistos, verá, de perto e privilegiadamente, as profundezas do abismo. Os portugueses não se limitam a sondar o pélago da desgraça, aliás, há muito que deixaram de o bosquejar. Hoje, na era do esbulho e do roubo homologado pela chancela estatocrática, os portugueses vivem no abismo. Respiram a voragem das labaredas infernais da miséria revelada. O que vejo diariamente pouco ou nada me conforta. São poucos aqueles que dizem não, que protestam, que ousam dar um passo em frente e denunciar a miséria do Poder. A educação democrática falhou rotundamente, com a audiência interessada dos arrivistas do Poder descarnado nos bastidores. Massificou-se a ignorância ao mesmo tempo que se perdiam os referentes do saber e da experiência. Deseducou-se e quebrou-se o elo da tradição. Hoje, o indivíduo preocupa-se somente com o seu ego, com a satisfação artificial das suas necessidades construídas, sem que, no fim, possa falar-se sequer de um elo social que ligue o individual ao colectivo. Por outras palavras, falta comunidade, o lugar dos livres e iguais. Falta a consciência dos direitos e dos deveres, da responsabilidade e da autonomia. No fundo, falhámos enquanto sociedade ao abeirar-nos excessivamente do abismo. Foi essa aproximação, temerária e imprudente, que quebrou o laço da comunidade. Se para Verne a resposta positiva à questão do Eclesiastes era um progresso, isto é um avanço da Humanidade, para nós, portugueses exauridos, a resposta afirmativa à magna questão atrás referida é o sinal mais candente do nosso sofrimento indizível. Resta-nos aguardar que esse abismo termine às mãos daqueles que não desistem, dos que sabem que o futuro, por mais imprevisível que seja, é o verdadeiro posto da Cidade. Do lugar da autêntica cidadania.