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Hoje escrevo no Observador sobre como a reforma do sistema eleitoral (que, mais uma vez, foi adiada para as calendas gregas), o centralismo, a regionalização, a valorização do interior, o regresso de emigrantes e o crescimento económico são questões intrinsecamente ligadas. Infelizmente, estamos reféns de partidos políticos que, parafraseando Lampedusa, andam há décadas a mudar alguma coisa para que fique tudo como está. Por isso, termino este artigo assim:
Dir-me-ão que estou a ser demasiado ambicioso e até irrealista com estas propostas, quando, afinal, eu próprio aventei acima que dificilmente os principais partidos abdicarão do statu quo, ao que acresce termos uma sociedade civil anémica com pouca capacidade de pressionar o sistema político. Mas tudo isto serve também outro propósito: evidenciar a distância entre o discurso e a acção dos partidos políticos nos temas a que aludi e a nossa incapacidade, enquanto sociedade civil, para fiscalizarmos e responsabilizarmos o poder político e o pressionarmos no sentido de se proceder a reformas realmente estruturais que aproveitem mais eficientemente os recursos naturais, humanos e financeiros do país. Como escreveu Miguel Torga, “Somos, socialmente, uma colectividade pacífica de revoltados.” Os partidos políticos agradecem.
Lá fora, ainda não foi desta que a onda populista se tornou tsunami.
Cá dentro, à esquerda, se um partido no governo, com um péssimo cabeça de lista, consegue este resultado, imagine-se o que não conseguirá nas legislativas se as circunstâncias sociais e políticas se mantiverem estáveis; à direita, se esta não for capaz de se entender, de gerar um projecto inovador e agregador, de concorrer a eleições em coligações amplas, dificilmente voltará a ser governo nos próximos anos - e não será com as lideranças de Rio e Cristas, ambos sem ideias para o país e com o carisma de uma couve de Bruxelas, e ignorando ou descurando o potencial da Aliança e da Iniciativa Liberal, que conseguirá conquistar o poder.
A grande vencedora, porém, continua a ser a abstenção, que, como é habitual, foi vilipendiada durante toda a noite por vários políticos e políticos-comentadores. A este respeito, e em modo telegráfico, saliento apenas que os sistemas partidário e eleitoral portugueses são bastante elitistas, fechados, pouco representativos da sociedade portuguesa e avessos à participação política. Podemos sempre colocá-los em perspectiva histórica e levar em consideração as condicionantes com que se defrontou uma recente e frágil democracia nos anos seguintes ao 25 de Abril de 1974. Mas passados 45 anos, temos partidos-cartel que dificultam a entrada de novos partidos no jogo democrático, não há a possibibilidade de candidaturas independentes à Assembleia da República, o mandato livre dos deputados é, na verdade, um mandato imperativo pertencente aos partidos que impõem uma profundamente anti-democrática disciplina de voto, não há eleições primárias nos partidos, não temos voto preferencial, não temos círculos uninominais e a tão propalada reforma do sistema eleitoral é mero ornamento de programas eleitorais de partidos que, obviamente, nunca irão abdicar voluntariamente de um sistema que lhes dá o poder que detêm e lhes permite continuarem a desdenhar a sociedade civil. A representação é cada vez mais ténue e a participação política para a generalidade da população, porque os partidos assim o querem, limita-se ao voto em listas previamente feitas pelas máquinas partidárias, ou seja, a uma mera ratificação do que os partidos decidem à porta fechada. É claro que há pessoas que têm pouco ou nenhum interesse pela política, mas colocar inteiramente o ónus da abstenção na generalidade dos portugueses, demitindo-se os partidos de quaisquer responsabilidades pelo actual estado de coisas, é, no mínimo, incorrecto e injusto. Por tudo isto, de cada vez que oiço da boca de políticos, em noites eleitorais, a ladainha da abstenção e do desinteresse dos portugueses pela política, apetece-me logo puxar da pistola. Isto é assim e continuará a ser assim porque os partidos querem que assim seja.
..."quando essas molas, deslocadas, se cruzam, se combatem e se embaraçam é preciso uma força que as restitua ao seu lugar. Esta força não pode estar em nenhuma destas molas, porque lhe serviria para destruir as outras. É preciso que esteja fora delas, que seja dalgum modo neutral para que a sua acção se aplique onde for necessário aplicar-se, e para que seja preservadora e reparadora sem ser hostil".
Não se trata de escrita de um qualquer perigoso e passadista intelectual do tradicionalismo, nem jamais o poderia ser. É da autoria de Benjamin Constant e dado o regime em que vivemos, permanece tão actual como quando foi vertida em letra de imprensa. Assim sendo, temos então a perfeita resposta às alegações de imparcialidade que vão espumosamente pontilhando consulados eivados de descarado favoritismo desde o alvorecer da actual situação de trinta anos em que Portugal sobrevive. Ninguém imagina um Poder Moderador e perfeitamente limitado por um dado texto constitucional a participar em ágapes sectários, planeando conspiratas de péssima literatura de cordel, favorecendo e mal escolhendo as intimidades com escusas personagens. É o que infelizmente temos assistido ao longo de demasiadas décadas - desde os tempos dos nossos bisavós - e o elemento transversal aos três regimes que a imposta presente fórmula já encerra.
Relendo a obra D. Carlos (de Rui Ramos, um historiador que melhor faria em abandonar o jornalismo a pronto), eis alguns excertos que no presente momento convém lembrar, num puxar da vossa imaginação ou descuidada leitura da imprensa, avivando-nos a memória acerca daquilo com que agora quase comparativa e diariamente deparamos. Recordemos então o famoso "escândalo dos adiantamentos" que serviu para um punhado de sediciosos demolirem o regime.
O sublinhado é meu:
"A popularidade sempre foi cara. Ora D. Carlos não tinha dinheiro. As suas principais fontes de rendimento eram o subsídio do Estado (chamado como em Inglaterra a Lista Civil e as propriedades da sua família, a chamada "Casa de Bragança". Por carta de lei de 28 de Junho de 1890, D. Carlos passara a receber a mesma Lista Civil que fora atribuída ao seu bisavô* D. João VI, em 1821: 365 contos por ano, isto é, um conto de réis por dia, para cobrir todas as despesas da Casa Real, dos empregados à manutenção dos palácios, viagens, etc. (...) Se tomarmos a despesa pública como um sinal da riqueza do país, D. Carlos recebia um valor equivalente a cerca de um quinto do que tinha sido concedido ao seu bisavô* . Além disso, todos os reis, desde D. Maria II, tinham abdicado de parte da Lista Civil para participarem no esforço de equilíbrio das contas públicas. Em 1890, D. Carlos cedeu 40 contos à Grande Subscrição Nacional, e a partir de 1892, 73 contos por ano a favor do Estado - cerca de 20% da sua Lista Civil. O dinheiro para a monarquia foi sempre encolhendo ao longo do século XIX. (...) A comparação com outros monarcas estrangeiros era humilhante. (...)
A principal razão para a modéstia da dotação do rei de Portugal não estava na pobreza dos recursos do país, mas na cobardia e manha política de sucessivos governos, que tinham preferido recorrer a truques em vez de proporem frontalmente o aumento da Lista Civil. Para evitar a bancarrota do rei, os ministros decidiram adiantar-lhe dinheiro às escondidas. D. Carlos não tinha alternativa. A Casa de Bragança, quando a herdou, encontrava-se completamente endividada. A amortização de dois empréstimos, contraídos antes de 1889, um ao banco parisiense Comptoir National d'Escompte e outro ao Crédito Predial Português, deixavam ao rei não mais de quatro contos e quinhentos mil réis por ano. Era este o dinheiro do "bolso particular do rei": apenas duas vezes o que ganhava um ministro. (...) Foi então que recorreu ao expediente de exigir rendas pelos prédios da Casa Real usados pelo Estado, segundo tinha sido previsto na carta de lei de 16 de Julho de 1855, mas que o Estado nunca pagara. (...) As suas aflições de dinheiro e as da família real eram motivo de chacota nos cafés de Lisboa. (...) Embora fossem feitos pelos ministros sem consulta do parlamento, não eram exactamente ilegais. Em parte, porque, como notaram vários juristas, a carta de lei de 28 de Junho de 1890 não estabelecia o dia em que devia ser feito o pagamento da dotação: o adiantamento de rendimentos era assim possível sem ofensa à lei. Os pagamentos seguiam os trâmites normais. O dinheiro era entregue pelo Banco de Portugal por ordem da Direcção-Geral da Tesouraria , segundo instruções do ministro da Fazenda, contra recibo. Tudo pôde, depois, ser documentado com despachos, ordens, vales e recibos. Em 1907, a Direcção-Geral da Tesouraria apurou que tinham sido feitos adiantamentos a D. Carlos no valor de 771 contos de réis. Para os liquidar, a Casa Real desistiu então dos prédios e terrenos arrendados ao Estado, no valor de 465 contos, e do Iate Amélia a favor do ministério da Marinha, no valor de 306 contos. O relatório, de 31 de Março de 1911, inventou cerca de 5000 contos de adiantamentos, dos quais 3246 contos teriam sido feitos ao rei (...) Além disso, ter-se-iam gasto mais 3000 contos em obras nos palácios reais. A família real teria custado ao país cerca de 1000 contos por ano, o dobro dos 525 contos inscritos no orçamento. Mas para chegar a estes números, a comissão de responsável pela sindicância recorreu a todos os truques: incluiu, por exemplo, os 6 contos das despesas da aclamação, os 4 contos do funeral do imperador do Brasil e os 224 contos da recepção dos reis da Inglaterra e Espanha, uma despesa que já tinha sido assumida pelo Estado por lei de 24 de Novembro de 1904. A fraude era tão descarada que a própria comissão a admitiu, ao reconhecer que contara com "algumas quantias que devem ser consideradas despesas de legítima representação do país", mas que não tinha "elementos para destrinçar até onde chega essa legitimidade".
Em suma, os bens privados da Casa de Bragança teriam servido para sustentar o próprio Estado da Monarquia Constitucional. Actualmente, se excluirmos alguns casos belenenses que têm discretamente surgido na imprensa especializada em teres e haveres, e imposto o silêncio que acicata ainda mais um certo deixa andar.
Feita a compilação da infestada mercearia que presentemente é aquilo mais interessa à esmagadora maioria assoberbada com casos arautados pela televisão - desde os Emáudio e Macau, às operações que envolvem nomes próximos de ciclones e titulares de outros tempos, até a acções obtidas fora de Bolsa - talvez guardadas em casos cujo registo alegadamente não consta nos gabinetes estatatais - e casos de pavilhões à beira Tejo passados para a posse de sociedades em que densíssimos genros surgem como que por encanto, ou à inacreditável chusma de ass(c)essores, gabinetes de apoio, enxames de moleques de toda a ordem que vampirescamente se contam às centenas -, façamos então a comparação com as estapafúrdias manigâncias políticas que Belém e os seus têm prodigalizado, tudo inventando para o esconder de casos que se somam a outros tantos, numa voraz usura política por parte da cúspide do Estado e dando o péssimo exemplo às restantes instituições representativas. Soares, Sampaio e Cavaco talvez ficarão para memória futura, não por feitos que os sempre pressurosos áulicos aferram às suas excelsas personalidades, mas senão pelas tais contas de ábaco que debitam inimagináveis e bem escondidos ajustes directos, viagens com infindáveis comitivas ao Extremo Oriente - onde pululavam amigos de festa e quase nenhuns desculpabilizadores empresários desejosos de mostrar o que se fabrica em Portugal -, frotas de futura sucata de derradeiro berro num país em semi-ruína, uso e abuso de bastante pueris e escabrosos conúbios de fundo de salão atirados como pedrada política de intervenção junto do poder Executivo, total desprezo pelas atribuições do Legislativo com incompreensíveis dissoluções parlamentares como tempero da mistela, manipulação descarada do Judicial através de criteriosa escolha da magistratura e como epílogo, o facciosismo de casta como genérica pecha que resume aquilo que a presidência sempre foi e será.
Numa bem presente entremeada de cavaleiros e cavaleiras da fortuna, alguns deles risíveis e babosos prestidigitadores sucedâneos dos PBX de outros tempos, escanções em provas de leite, treinadores de treinadores de treinadores de futebóis e outros casos facilmente olvidáveis, eis o lote de criaturas que nem sequer significam um decálogo a reter a curto prazo. São sem excepção, a mais cabal demonstração da completa desadequação de uma instituição a um Portugal que em vez de meia dúzia de gerações ou uns séculos contabilizáveis pelos dedos de uma mão, tem o miraculoso privilégio de ombrear com os mais antigos países da Terra.
A abstenção não ditada pelo desinteresse, é, num âmbito de um esquema capciosa e flagrantemente desenvolvido para não permitir a sua remoção pela vontade popular - que jamais foi consultada para aquilo que verdadeiramente interessa, desde a república de 1910 às golpadas anticlericais da 1ª república, da retorcida provocação e rapina naval que levou a Alemanha a declarar-nos guerra em 1916, ao 28 de Maio e instauração pelas espadas da 2ª república, até à adesão à OTAN e à pseudo-descolonização, do salvífico ingresso na CEE e logo a assinatura de cruz do Tratado de Maastricht, à hoje reconhecidamente desastrosa entrada para o Euro e patética assinatura de Schengen e do Tratado de Lisboa -, um acto perfeitamente legítimo para contornar a estúpida e prepotente existência dos chamados Limites Materiais. Este articulado constante no texto constitucional, nada mais significa senão um auto-reconhecimento da imposição do papel dirigente da vanguarda de uma minoria de iluminados pela luz eléctrica. Não estou para isso e consequentemente, creio que o melhor a fazer é retirar-lhes o máximo daquilo com que se empanturram: o voto.
Não voto, dedicarei o domingo a outros imprevistos afazeres.
*D. João VI não era bisavô de D. Carlos I, foi um dos seus trisavós.
E depois do adeus dos tesourinhos das autárquicas (demora sempre mais do que o (im)previsto; os cartazes deixam-se ficar até serem rasgados pelo vento e perderem a cor) e dos resultados eleitorais de domingo, nada efectivamente se altera. Os protagonistas, os mesmos de sempre ou outros parecidos, nada poderão fazer para alterar o alinhamento político e financeiro desfavorável - a crise continuará e os juros da dívida resistirão nessa fasquia dos 7% -, mais coisa menos coisa. Uma nova configuração autárquica não altera as regras do jugo das leis da troika. Mas será que isso é motivo para não votar? Claro que não - o cidadão deve reclamar a sua quota na participação política. Deve fazer uso dessa prerrogativa consagrada na Constituição da República Portuguesa. E dir-me-ão que tudo isto é muito bonito no papel, mas que na prática o eleitor nacional está metido numa carga de trabalhos, que está metido em sarilhos. E é verdade. O portador de cartão de eleitor tirou a carta, está legalmente habilitado a conduzir o seu destino político, mas não confia no raio dos vendedores de automóveis que lhe querem dar a volta ao juízo e oferecer uma boleia. E não é só ao intelecto que é feito o apelo. A emoção descontrolada é uma força que deve ser levada em conta. Umas lágrimas bem metidas também servem para amolecer os mais duros. Seguro sabe-o, assim como Seara, Costa e companhia. Depois temos aquele clássico que faz parte da antologia política. O tal voto útil ou de protesto. Aquele cartão amarelo para penalizar os que estão no poder e não uma coisa baseada no mérito próprio - o voto entregue a quem de direito porque a proposta alternativa é boa -, muito melhor. E é aqui que reside grande parte do problema. As eleições autárquicas são um gato por lebre da política - irão ser tratadas pelos cidadãos como se fossem eleições legislativas. E depois acontece sempre o oposto mais tarde ou mais cedo. As legislativas servem também para outras encomendas e represálias - como se fossem autárquicas. E Portugal não passa disto, deste descentramento, desta incapacidade de estar no local à hora combinada. O mérito e o demérito político coexistem como um matrimónio feito num oito desde a primeira hora, ordem (Schauble está muito contente com a obra do governo e a população portuguesa quer mandar Passos Coelho às urtigas). Ou seja, parece que a pontualidade política e eleitoral é uma impossibilidade - o encontro de corpo e alma entre a vontade e o efectivo, a promessa e a realização. O cidadão vota, mas está com as tripas e o coração noutra liga. O cidadão abstém-se porque ainda tem saudades de um outro tempo (atenção!não disse senhora). O eleitor faz um boneco no boletim porque desejava voltar a ser criança ou não ter nascido. Estão a perceber onde quero chegar? Tenho alguma razão ou não? Enquanto os cidadãos não acertarem as agulhas da sua presença política, vão andar sempre a correr atrás do prejuízo. A corrida eleitoral que os Portugueses devem correr é uma maratona interminável, o que significa que qualquer acto diário tem importância e não pode ser esquecido. Se deixam a criança ser mal-educada, está o caldo entornado, e foi isso que aconteceu na infância e na adolescência da democracia em Portugal. O cidadão tem de se deixar de coisas (aquelas tretas que foram eles os responsáveis pelo desastre) e ser político - eleger-se diariamente. É no dia a dia que cada um de nós deve reclamar e participar na construção das comunidades, porque se a lógica for apenas de representatividade ou delegação de poder, mais cedo ou mais tarde a conta será apresentada pelo garçon. Não se pode dar rédea solta ao animal porque este se transforma num monstro, numa dívida política que nunca será paga. E foi algo assim que aconteceu a Portugal. Os juros da dívida politica estão a rebentar com os céus. É um inferno.
(fotografia; autárquicas 1976)
Não contentes em diluir o estipêndio na infinita pool de imberbes que o alimenta, vem o Estado estuporar os meus impostos no sustento de acólitos a tresandar a cueiros por todos os ângulos.
Via Gremlin Literário, o horror bureau-onanista em toda a sua nefanda extensão.
Votai e pagai, pécoras.
Leitura complementar: um Bruno pagava metade disto.
Artigo publicado originalmente no sítio da Juventude Popular do Porto (Fevereiro de 2013):
José Clemente Orozco, As massas
Uma das grandes pechas da contemporaneidade democrática é a relativa falta de originalidade dos seus intérpretes. As palavras repetem-se e as ideias rareiam. Porém, de quando em vez há alguns assomos de criatividade que ajudam, de certo modo, a melhor interpretar os grandes desafios do presente e do futuro. Colin Crouch, um cientista político relativamente desconhecido pelos indígenas, é um bom exemplo dos curtos lampejos de criatividade que de quando em quando vão surgindo no mumificado panorama intelectual ocidental. Numa obra escrita em 2000, com o presciente título Coping with Post-Democracy, Crouch cunhou o famigerado termo da pós-democracia que, hoje em dia, anda na boca de muito boa gente. O cerne deste conceito gravita em torno da tese de que as democracias contemporâneas combinam um grave défice de representatividade política com um poder adulterado pela simbiose excessiva entre a mecânica do Leviatã e o voluntarismo dos grandes potentados económicos. Deixando de lado a óbvia deriva esquerdista do autor, a que não é de todo alheia a sua verve sociologista, este conceito possui múltiplas virtualidades, mais que não seja pela capacidade demonstrada de desvendar alguns dos bloqueios que perpassam os modernos regimes demoliberais.
A teoria de Crouch tem na abstenção um suporte empírico estruturante. É fácil compreender o porquê. Hoje, mais do que nunca, as pós-democracias ocidentais confrontam-se com graves bloqueios na relação entre representados e representantes. Os canais de confiança, que outrora permeavam o funcionamento do sistema, deixaram pura e simplesmente de fluir. Os sistemas políticos representativos perderam, em grande medida, o capital de atracção que contribuiu, ao longo dos últimos decénios, para torná-los num dos últimos redutos de civilidade política, num mundo em constante mutação. A origem do problema não é, como muitos dos hermeneutas da academia apressam-se a fazer crer, simples e linear. O certo é que a crescente profissionalização das classes políticas, acompanhada, em simultâneo, da pauperização intelectual dos seus protagonistas mais salientes, ajudaram a exponenciar um problema latente nas democracias ocidentais.
A profissionalização da política trouxe a jusante um “modus operandi” assente na captura do aparelho estadual pelos profissionais do rentismo desabrido. A política deixou de ser um espaço de debate e discussão, o espaço por excelência da pólis, para ser um campo fértil em transacções de poderes e influências. A política tornou-se, de certo modo, num centro de transumâncias várias, em que os poderes jogam a sua participação no imenso palco da riqueza a redistribuir. O liberalismo social, universalizado no pós-guerra, teve aqui um papel sumamente relevante, e, simultaneamente, contraditório: o novo contrato social, crismado pelo tão adulado Estado Social, criou um catálogo extenso de novos direitos sociais, cuja contrapartida foi a expansão desmedida dos mecanismos coercivos do Estado. O desenlace deste paradigma é observável, hoje, a olho nu: de um lado, temos um Estado pantagruélico, fremente de tributos e prerrogativas, e, do outro, uma cidadania passiva e esbulhada, imersa numa luta hobbesiana pela sobrevivência, em que predomina a indiferença pela coisa pública. A abstenção é o resultado óbvio desta tendência de desresponsabilização.
A resposta que a grande maioria dos cidadãos encontra perante a falta de resposta do sistema aos seus anseios é um desinteresse radical, expresso na recusa em confirmar a autoridade dos que detêm as rédeas do poder. Como dizia de uma forma lapidar Arend Lijphart, a abstenção é um fenómeno disfuncional que, em boa verdade, tem efeitos assaz perniciosos na condução das políticas públicas, ao fixar quotas de influência díspares entre votantes e não-votantes. O que antes era medido pela força do voto, com a mobilização das massas ao sabor do apelo de um slogan vertebrador de sentimentos e pertenças, é, actualmente, usado em favor da passividade perante o jogo eleitoral das clientelas partidárias.
Portugal, um país esganado pelo rolo compressor da soberania perdida, é um bom exemplo desta doença democrática, basta observar que, nos últimos actos eleitorais, a média percentual da abstenção superou os 40%. Números que assustam e que dariam, em condições normais, que pensar. O cerne do problema encontra-se, pois, num contrato social gasto e falido, que já não oferece soluções credíveis às classes médias que, durante anos, viveram à sombra da sua imensa bonomia. Perante isto, que fazer? Apelar ao voto em branco, como fez Saramago? Aderir em massa aos slogans dos ditos indignados, zurzindo virulentamente nas elites políticas e económicas? Não, a resposta não se encontra nesses ditirambos delirantes, aliás, as respostas definitivas não fazem parte do menu, porque, em bom rigor, a ciência das certezas feitas é um exclusivo da ignorância. O único esboço de resposta possível à abstenção cívica da grande massa de cidadãos inactivos é a refundação do contrato social, contanto que o apego à lei, ao direito, ao contrato, e ao “due processo of law” estejam no cardápio de opções. Em suma, estado de direito, liberdade e autonomia, conceitos que por si só definem um conservadorismo salutar. Porque sem participação na coisa pública não há comunidade de partilha e destino que sobreviva.