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1. Era perceptível desde o Verão que algo se iria passar no Norte do Mali, com o reforço de forças especiais francesas na região, a que se juntou a concentração de forças americanas no Mediterrâneo em Setembro (após o ataque ao consulado norte-americano em Benghazi). Ambos os países têm feito a vigilância de movimentos e a identificação de possíveis alvos. Desde que a região foi tomada pelos islamitas, França tentou virar os tuaregues contra os movimentos jihadistas ligados à Al Qaeda (Al Qaeda no Magrebe Islâmico e Ansar-Dine), criando uma luta interna de forma a permitir que o exército maliano, reforçado por contingentes dos países da região, lançasse um contra-ataque. Triplo fracasso. Não só não conseguiu criar essa divisão, como boa parte do exército governamental do Mali desertou para o lado dos rebeldes e o que existe é extremamente ineficaz, mal treinado, mal equipado e pouco motivado. Por último, o governo de Bamako tentou evitar a vinda das tropas aliadas, consciente de que se sabe quando os aliados chegam mas não se sabe quando partem. Ou seja, não podia resolver o problema sozinho mas também não queria ajuda externa. Neste impasse, e para resolver este problema que se arrastava havia já demasiado tempo, nos últimos meses França foi criando as condições para uma intervenção militar internacional (que seria dos países da CEDEAO) com o aval das Nações Unidas.
2. O fundamentalismo islâmico implantado pela Irmandade Muçulmana (organização que goza de grande apoio e financiamento do Qatar) está em progressão desde as «primaveras árabes», e nada indica que o processo seja reversível. Mesmo em Marrocos, país moderado e última monarquia do Magrebe, o governo é afecto à Irmandade Muçulmana e apesar da moderação conseguida pelo Rei através de concessões, não é certo que este regime se aguente; por um lado tem sido um regime sólido, prestigiado e popular, por outro a pressão para o derrubar e instalar uma república islâmica é grande. A Argélia é o único país do Norte de África que até agora escapou ao processo, e é também o maior e o mais forte, gozando também do poder de influência conferido enquanto um dos principais fornecedores energéticos da Europa. Mas há também a questão do povo tuaregue, presente numa vasta região dividida entre vários países com fronteiras traçadas a régua e esquadro, e que reclama um estado seu. Se se concede a independência a um estado tuaregue num desses países, isso criará problemas a todos os outros. A repetição da independência do Sudão do Sul não pode ser consentida.
3. Naturalmente que sempre que falamos dos interesses franceses na região do Sahel, temos de ter presente a Areva, o gigante francês da energia nuclear e as suas explorações de urânio. No entanto, e mesmo que esses interesses existam nesta guerra, será manifestamente exagerado considerá-los como um motivo para esta guerra. Se fosse, certamente não teria havido unanimidade no Conselho de Segurança das Nações Unidas no apoio a esta intervenção (o que é digno de registo sobretudo sabendo-se que a China também tem interesses na região), nem haveria aviões ingleses, americanos ou canadianos a apoiar directamente esta expedição. A intervenção deverá explicar-se pela necessidade de travar os islamitas e evitar que se forme um grande Afeganistão na região do Sara/Sahel, o que seria uma ameaça para a Europa. Infelizmente, e mais uma vez, a União Europeia tem primado pela passividade, até porque o Norte da Europa acha que o islamismo na margem sul do Mediterrâneo não lhe diz respeito e que é apenas um problema para os países do Sul. E será para estes países (Espanha, Portugal, França, Itália, Malta e Grécia) que a tensão que se está a acumular no Norte de África tenderá - e mais cedo do que se pensa - a transbordar.
4. França é actualmente, a maior potência militar europeia, e dispõe de forças numerosas, bem equipadas e treinadas. No entanto, com os cortes orçamentais a que a defesa tem sido sujeita, em algumas áreas as capacidades ressentem-se e isso é visivel. Por exemplo, o stock de bombas da Força Aérea foi quase esgotado na campanha da Líbia, em 2011, e ainda não foi completamente reposto. Grande parte do equipamento é dos anos 80 e, no caso dos aviões de transporte, anterior a isso e com muito uso. A ajuda solicitada aos aliados tem sido, justamente, de aviões de transporte, dos quais depende toda esta operação. Por seu lado, a capacidade combativa dos islamitas, determinados, bem treinados e bem armados (com a pilhagem dos depósitos do exército líbio, no momento da queda de Kadaffi) e movendo-se rapidamente em simples pick-ups, tem sido uma surpresa. Normalmente, não deveriam conseguir resistir dias a fio às forças francesas, como tem acontecido. Isto confirma que o know-how da guerra do Afeganistão e provavelmente muitos combatentes, mudaram-se para o Norte de África. Esta Sexta, a cidade de Konna foi tomada pós uma semana de combates, mas - por enquanto - não são reveladas baixas malianas nem francesas.
5. O conflito está a tornar-se regional. O ataque ao complexo de gás de In Aménas (um dos mais importantes do país) por parte de jihadistas vindos de território líbio (que controlam, no Sul) poderá levar a Argélia a uma intervenção no país vizinho para os perseguir nas suas bases, o que seria justificado perante a comunidade internacional dada a necessidade de segurança dos recursos energéticos. Por outro lado, o Leste da Mauritânia tem sido atravessado pelos jihadistas e nos últimos dias deram-se passos para o alastramento da guerra a este país, com o presidente local a oferecer auxílio ao Mali (contra a opinião da esmagadora maioria das forças vivas do país, que são pró-jihadistas). No início da semana, Espanha ofereceu a França a disponibilidade das suas bases aéreas e navais para as operações em África, tendo os franceses solicitado o uso das Canárias para apoio da sua aviação, o que prenuncia operações sobre território Mauritano (já que o espaço aéreo argelino está acessível às aeronaves francesas, nas ligações com a Europa). Já esta Sexta à noite, os franceses referiam que os combatentes jihadistas estavam a escapar atravessando a fronteira com a Mauritânia. Nos últimos meses, Espanha reforçou o seu dispositivo militar nas Canárias, algo que as circunstâncias estão a justificar.
6. Portugal, face a esta situação, fez até agora o mínimo dos mínimos que se lhe exigia: demonstrou apoio político a França e prometeu apenas apoio militar no seio da missão da UE de treino do exército maliano - uma missão de utilidade algo duvidosa, já que demora meses a formar novas tropas - valendo-se da boa desculpa da situação financeira. Naturalmente que Portugal não deve favores nenhuns a França (que há muito que faz o que pode para prejudicar a presença portuguesa em África, nomedamente na Guiné-Bissau) nem à CEDEAO, que alinha com França e que apoia directamente com as suas tropas o regime golpista que em 2012 tomou o poder em Bissau. Mas, caso se dê um maior envolvimento de outros países europeus no conflito, será difícil alhear-se da situação, e ficar apenas a assistir numa questão em que somos parte interessada: o islamismo no Norte de África é uma ameaça à segurança nacional e algo de mais efectivo provavelmente terá que ser feito, seja no apoio a França, seja a outros países envolvidos. Além de que o fluxo de refugiados que a guerra está a gerar poderá vir a afectar-nos, sendo que o envio de uma missão humanitária (provavelmente para a Mauritânia) também deverá ser de considerar. Por fim, é preciso olhar para a situação com realismo e responsabilidade. O Ministério da Defesa tem agora mais com que se ocupar do que a reprivatização dos estaleiros de Viana do Castelo ou a disparatada venda de parte dos caças F-16 (que não são muitos e que há muito deviam estar presentes também na Madeira, como defende a Força Aérea).
Pouco passava do meio dia. Informações recebidas através de canais privilegiados indicavam ser prudente, por questões de segurança, que o Senhor X (nome fictício) fechásse portas mais cedo, naquele Domingo de Sol difícil. O Senhor X (nome fictício, repito) é um dos históricos comerciantes Portugueses de Kinshasa, trazidos de Leopoldville, e bem conhecido já bem além dos restrictos domínios da nossa comunidade.
A cidade acordava lentamente. Mal se tinham escutado, durante toda a manhã, as habituais pregações dos coloridos Pastores que, a golpes de pincel, salpicam toda a cidade por detrás de cada esquina, por debaixo de cada pedra.
Foi só por volta das três da tarde, no entanto, que chegaram os primeiros indícios de uma revolução em curso nas ruas de Kinshasa. "Quelques coups de feu tirés par militaires inconnus près de la résidence Présidentielle. Prière d’éviter tout déplacement inutile". De seguida chega uma declaração oficial, confusa e precipidada, do ministério da comunicação, que dá a entender ter havido uma tentativa de golpe de estado por parte de militares não identificados, uma tentativa de assassinato do Grande Chefe, um assalto à Casa Branca.
A uma velocidade vertiginosa chovem telefonemas, enviam-se mensagens, trocam-se galhardetes por entre fóruns e redes sociais, mas subitamente, em menos de nada, a revolução chega ao fim para os desgraçados revoltosos: dos sete seis foram 'eliminados', o que foi apanhado encontra-se detido para ser interrogado pelas autoridades competentes.
Animam-se de novo as hostes cibernéticas, nascem à duzia as teorias da conspiração: Feriram o Presidente. Evacuaram os Ministros. Mataram o Presidente. Mataram os Ministros.
Os dissidentes do regime, muitos no exílio, aproveitam também para deixar um ar da sua graça, numa das teorias que mais eco fez pelas ruas da cidade: de acordo com os rumores, terá sido tudo, afinal, um embuste preparado pela presidência, de forma a permitir acusar de conspiração os adversários mais bem colocados para as próximas eleições presidenciais e, de uma forma simples e discreta, retirá-los de cena antes de causarem danos maiores.
É certo que o Presidente não morreu, como também não morreram Ministros, mas seja qual for a verdade dos factos, há uma consideração primordial que importa reter: Kinshasa mantém-se na vanguarda dos mais relevantes movimentos globais. Se é Revolução a palavra de ordem, Kinshasa é a sua capital. E a exemplo de outras tendências que marcaram o mundo nos últimos anos, também esta revolução seguiu a mesma fórmula mágica:
Foram 5, 7 minutos. Mas muito intensos.
Tendo em conta a actual situação internacional, prevejo que a agitação no mundo Árabe venha a contagiar também o Sudão num futuro muito próximo. Assim sendo, é também provável que o Sul possa aproveitar o facto de Al Bashir poder estar a braços com uma complicada situação em Cartum, para fortalecer a sua posição em Abyei, uma região de fronteira entre o Norte e o Sul, ainda sem delimitações acordadas, muito rica em petróleo e zona de conflicto tribal.
De forma a evitar potenciais abusos de parte a parte, defenderei uma eventual iniciativa da criação, o quanto antes, de uma força internacional para a securização da fronteira. Idealmente esta seria apadrinhada pelos EUA, mas dado que os fantasmas de Mogadishu ’93 ainda assombram a Casa Branca, temo que esta seja uma possibilidade demasiado remota.
Como alternativas, surgem a União Africana ou uma nova Missão das Nações Unidas. Parece-me desde logo que uma força da UA não tenha a capacidade de responder adequadamente a uma situação que tem todos os ingredientes necessários para um potencial genocídio, pelo que urge ao Conselho de Segurança da ONU (sem dúvida um ‘mal menor’) discutir a criação de uma Missão especialmente dedicada ao patrulhamento da fronteira, como de resto existe já, se bem que em moldes diferentes, entre a Índia e o Paquistão, a Eritreia e a Etiópia, e o Líbano e Israel.
Além do mais, tenho o pressentimento de que a actual Missão da ONU no Sudão (UNMIS) se tornará rapidamente obsoleta, já que é presumível que a vontade de al-Bashir seja ver-se livre dos ‘capacetes azuis’ assim que se torne efectiva a independência do Sudão do Sul. Tomando em consideração esta presumível vontade, seria preferível que a ONU se antecipasse com um plano e um propósito claro, aproveitando os poucos trunfos que ainda terá junto do Presidente Sudanês, para consituir um projecto que possa ser apoiado pelos dois governos.
Finalmente, convém referir que, verificando-se revoltas nas ruas de Cartum, seria do maior interesse para al-Bashir ter uma força de salvaguarda da sua fronteira a Sul, mesmo que este não tenha, para já, capacidade ou interesse em o admitir. Escusado será dizer que esta opção servirá ao mesmo tempo os interesses do Sul, mesmo que seja em potencial detrimento de algum território.
(Desta questão omiti propositadamente o Darfur, já que o paradigma de fronteiras deste território assume contornos bastante diferentes)
Num só movimento materializa-se das águas dormentes e toma a sua presa desprevenida. Faz ainda um pequeno compasso de espera para que a vítima, entre dentes, expire o seu último adeus. Com dois ou três movimentos desfaz-lhe a coluna, como quem quebra nozes, e em menos de nada a devora inteira. Volta para as águas, que voltam dormentes, e é como se daqueles breves instantes… nada.