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(Breve ensaio elaborado no âmbito da disciplina de Agenda do Pensamento Contemporâneo, leccionada pelo Professor José Adelino Maltez ao 1.º ano do Mestrado em Antropologia, frequentada pela minha pessoa como disciplina opcional do Mestrado em Ciência Política)
Se há autor que em Portugal atingiu um estatuto quase intocável é José Saramago. Laureado com um Prémio Nobel, a sua vasta obra encontra-se traduzida e publicada em diversas línguas e países. O seu mais recente livro, Caim, foi acompanhado por declarações polémicas em relação à Igreja e à Bíblia, algo que sempre foi característico no autor – recorde-se a polémica em torno de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Desta feita, Saramago veio dizer que “a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”[1].
Dan Brown, por seu lado, alcançou o estrelato da literatura mundial com o controverso Código Da Vinci, fazendo agora chegar às livrarias O Símbolo Perdido. Sempre com o secretismo, a maçonaria e a religião como pano de fundo, torna-se extremamente oportuna a sua última obra quando analisada em conjunto com Caim, com o objectivo de percepcionar divergentes concepções sobre a Bíblia.
Na realidade, independentemente daquilo que separe as concepções de cada autor, importa realçar, em consonância com o Professor José Adelino Maltez, que a relação do Homem com Deus é o mais premente assunto na Agenda do Pensamento Contemporâneo. Ademais, arriscamos afirmar que sempre o foi. Não é difícil encontrar na História da Humanidade fundamentos religiosos na base da esmagadora maioria dos movimentos políticos, sociais, culturais, artísticos e literários.
Aliás, como veremos, nesta relação, um dos elementos mais importantes é o Apocalipse, o milenarismo e a escatologia, referências de grande parte das tentativas de alteração ou mudança de algo na sociedade, muitas das vezes enformando ideologias comummente designadas por progressistas e, portanto, identificadas com a esquerda – que cai no paradoxo da literatura doutrinária de justificação assente numa oposição a uma religião quando ela própria se baseia em princípios e valores que, mais do que ideológicos, são religiosos.
Em O Símbolo Perdido, recorrendo à fórmula a que já habituou milhões de leitores, Dan Brown leva-nos numa aventura em busca do Mistério Maçónico, um grande segredo que, quando revelado, supostamente trará uma nova e grandiosa época em que o conhecimento sobre os maiores mistérios da Humanidade estará ao alcance de todos.
Através de uma narrativa perpassada por sucessivas descobertas em torno do poderoso simbolismo da cidade de Washington, onde se misturam elementos e símbolos maçónicos, rosacrucianos, alquímicos e católicos com valores filosóficos e princípios científicos, Dan Brown procura integrar de forma holística estas três componentes da vida de qualquer indivíduo, a religião, a filosofia e a ciência, concluindo por uma interpretação simbólica da Bíblia. Esta, não mais é do que uma obra que revela o conhecimento humano em todo o seu esplendor, tendo, alegadamente, para além do significado literal, uma segunda camada de significado que pode ser interpretada apenas por alguns, à semelhança do estilo da escrita maçónica, i.e., com uma interpretação literal ao alcance dos profanos e uma segunda inteligível apenas pelos irmãos maçónicos.
Saramago, por seu lado, reinterpreta a narrativa bíblica com Caim como personagem principal, levando-nos desde o Jardim do Éden até à Arca de Noé, passando por Sodoma e Gomorra, pela Torre de Babel, pelas conquistas de Josué, entre outras alegorias que se encontram no livro sagrado do catolicismo. Para o autor, o machismo e a fome são produto da Bíblia[2], os desaires na vida, nomeadamente, o não ter trabalho, casa, roupa ou comida, no caso, de Adão e Eva, são culpa de Deus[3], e o facto de um irmão matar outro é também culpa de Deus[4].
Não deixa de ser paradoxal, ou mesmo incongruente, que Saramago coloque o ónus de várias vicissitudes da vida e do mundo sobre uma entidade na qual não acredita. Porém, reconheça-se a consideração de Saramago quanto à maldade de Deus, quando este pede a Abraão para sacrificar o próprio filho[5], quando destrói as cidades de Sodoma e Gomorra[6] ou quando mata milhares de pessoas no sopé do Monte Sinai[7].
O erro de Saramago consiste precisamente na interpretação literal que faz da Bíblia, e na concepção utópica que tem de Deus. Para o autor, Deus sendo perfeito deveria fazer com que o mundo fosse perfeito. Esquecendo-se que Deus fez o Homem à sua imagem, e que o Homem é por natureza imperfeito, considera que Deus e a Bíblia são as razões pelas quais o mundo não é melhor, retirando qualquer ónus à acção dos homens – que a mais das vezes agem invocando Deus, acreditando numa entidade mística que responde aos anseios do seu eu mais irracional. A este respeito, em nosso ver, correctamente, Saramago assinala o pretensiosismo daqueles que afirmam que os desígnios de Deus são inescrutáveis, como se eles pudessem percepcioná-los e comunicar directamente com Deus[8].
Já Fernando Pessoa assinalava que “o erro capital de todas as definições perfeitas é a perfeição. Uma cousa perfeita deixa sempre suspeitas de não existência”[9]. A perfeição é utópica, e a utopia resulta de uma racionalização que, na História, encontra no Iluminismo o seu expoente máximo, chegando a acreditar-se que só é verdadeiramente livre aquele que se liberta pela razão.
Os sistemas racionais, assentando numa alegada cientificidade que deu corpo à Modernidade e rejeitou a Antiguidade e o papel central que a religião detinha na vida individual e em sociedade, começam desde logo com o sucedâneo de Rousseau e do que este idealizou, ou seja, Karl Marx, cujos ensinamentos vão servir de base aos revolucionários bolchevistas de 1917 e à experiência do comunismo, no qual Saramago se filia ideologicamente.
A acompanhar o comunismo, refiram-se o fascismo ou o nazismo, sistemas que apregoaram o racionalismo e que nem se aperceberam que eram tão ou mais religiosos que a religião católica ou outras. Isto porque, mais do que baseados na ciência, são baseados numa crença apocalíptica. Deve-se, no entanto, notar que Apocalipse significa revelação, ou seja, não é algo negativo, ao contrário do que o emprego habitual da palavra deixa adivinhar. Significa que, após uma revelação, após uma determinada alteração, como cantam os comunistas, “o sol brilhará para todos nós”.
No fundo, estamos aqui a recorrer aos ensinamentos de John Gray[10], considerando que estes sistemas racionais são baseados nesta escatologia milenarista, uma crença apocalíptica numa revelação ou alteração que fará com que o mundo seja um lugar melhor. O problema que a tentativa de colocar uma utopia em prática levanta é o de que os fins passam a justificar os meios, e todas as atrocidades cometidas em nome de uma ideologia passam a ser desculpadas pelas boas intenções iniciais. Isto é precisamente o mesmo que aconteceu com todas as guerras combatidas em nome de Deus. No essencial, ideologia e religião confundem-se, quando não são exactamente o mesmo, contrariando o que muitos dos mais radicais ideólogos pensam.
Saramago padece do viés da interpretação comunista da História, que é não só uma religião como uma profecia historicista que nada tem de científico. Acontece que as profecias não são susceptíveis de teste, tal como acontece com o marxismo, que, como assinala João Carlos Espada, “profetizou o advento inexorável do socialismo e do comunismo sem lhe atribuir um horizonte temporal definido”[11]. À luz da metodologia e teoria falibilista do conhecimento de Sir Karl Popper, é impossível refutar uma teoria que “anuncia a sua concretização sempre para o futuro”, pelo que se trata “apenas de uma crença ou de uma superstição”[12].
Saramago cai no erro e no paradoxo de criticar algo que é precisamente o mesmo que defende, dando especial relevo aos aspectos negativos da Bíblia, de Deus e da religião, esquecendo-se do importante papel que estes elementos desempenham na vida de milhões de indivíduos e das diversas sociedades, e preferindo salientar os ideais utópicos comunistas, esquecendo-se das atrocidades cometidas em nome destes. Se tem noção deste erro, só pode, então, ser considerado como intelectualmente desonesto.
Dan Brown, tendo uma interpretação mais simbólica, alude a um sincretismo universalista, reconhecendo os limites da capacidade racional do Homem, dado que a vida é precisamente uma mistura dos três elementos já referidos (religião, filosofia e ciência/razão), onde não há lugar à perfeição utópica, constituindo-se a Bíblia como uma das mais belas obras da Humanidade.
A divergência entre as duas concepções advém precisamente da concepção da natureza humana que dá corpo às respectivas obras. Só podemos concluir que se Deus fez o Homem à sua imagem, ele próprio só pode naturalmente ser imperfeito, pelo que a Bíblia reflecte precisamente essa natureza imperfeita, com os seus aspectos positivos e negativos.
Resta-nos concluir como principiámos, afirmando que a relação do Homem com Deus continua a ser uma das problemáticas mais prementes no pensamento contemporâneo - e provavelmente continuará. Em especial, aquilo que preocupa ambos os autores aqui tratados, a existência, ou não, de Deus, continuará a ser um mistério. Entre o jacobinismo anti-clerical e o fanatismo religioso, assinale-se o paradoxal provérbio popular que nos diz que Deus existe, apesar de nós próprios podermos não acreditar nele. Simplesmente, porque milhões de indivíduos acreditam em Deus. É, tão só, um facto sociológico, com o qual temos que lidar.
Referências Bibliográficas
Livros
Brown, Dan, O Símbolo Perdido, Lisboa, Bertrand, 2009.
Espada, João Carlos e Rosas, João Cardoso, orgs., Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004.
Gray, John, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008.
Maltez, José Adelino, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996.
Saramago, José, Caim, 7.ª Edição, Alfragide, Editorial Caminho, 2009.
Webgrafia
“"Bíblia é manual de maus costumes", diz o escritor José Saramago”, in Público Online, 18 de Outubro de 2009. Disponível em http://www.publico.clix.pt/Cultura/biblia-e-manual-de-maus-costumes-diz-o-escritor-jose-saramago_1405681. Consultado em 17/01/2010.
[1] Cfr. “"Bíblia é manual de maus costumes", diz o escritor José Saramago”, in Público Online, 18 de Outubro de 2009. Disponível em http://www.publico.clix.pt/Cultura/biblia-e-manual-de-maus-costumes-diz-o-escritor-jose-saramago_1405681. Consultado em 17/01/2010.
[2] Cfr. José Saramago, Caim, 7.ª Edição, Alfragide, Editorial Caminho, 2009, p. 20.
[3] Cfr. Idem, ibidem, p. 25.
[4] Cfr. Idem, ibidem, p. 38.
[5] Cfr. Idem, ibidem, p. 82.
[6] Cfr. Idem, ibidem, p. 101.
[7] Cfr. Idem, ibidem, p. 106.
[8] Cfr. Idem, ibidem, p. 39.
[9] Cfr. Fernando Pessoa, Cinco Diálogos sobre a Tirania, in Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, introdução e organização de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1980, p. 320 apud José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p.24.
[10] Cfr. John Gray, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008.
[11] Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos” in João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, orgs., Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand, 2004, p.24.
[12] Cfr. Idem, ibidem, p. 25.
(Paper elaborado no âmbito da disciplina de Agenda do Pensamento Contemporâneo, leccionada pelo Professor José Adelino Maltez ao 1.º ano do Mestrado em Antropologia, frequentada pela minha pessoa como disciplina opcional do Mestrado em Ciência Política)
Como praticamente todos os ismos que concretizam conceitos postulados pela teoria política, também sobre o conceito de nacionalismo se pode encontrar abundante bibliografia. Aliás, outra coisa não seria de esperar, se partirmos do pressuposto que o nacionalismo é, à semelhança do nazismo, comunismo e jacobinismo, um fenómeno moderno[1].
Sendo um fenómeno político, social e cultural associado ao que comummente designamos por Modernidade, não pode deixar de ser paradoxal a sua aparente e até ilusória relação com uma pretensa ideia de Antiguidade, associada a uma suposta consciência nacional, que nos remete para a origem da nação. Para se entender o conceito de nacionalismo, é necessário colocá-lo em perspectiva como concretização prática, romântica e ideológica da ideia de nação.
A nação, que no século XXI é a mais universal forma de vida política em comum – não admira, portanto, que frequentemente se escreva que “failed states need to enhance their nation building” -, é sempre perspectivada como encontrando justificação num passado longínquo. No entanto, a palavra nação só muito recentemente foi introduzida no vocabulário e na terminologia política, pelo que, naturalmente, “national claims to seamless antiquity can be relied on to be false”[2].
Quando os conceitos se desprendem da teoria, ganhando vida e aplicação na realidade e, consequentemente, corpo histórico, acabam por surgir em seu torno ideias falsas, como é o caso. E não só ideias falsas, que à academia e à ciência cabe desconstruir e clarificar, mas também entendimentos diversos. Importa, por isso, relembrar que “na ciência política não há afirmações indiscutivelmente verdadeiras, primeiros princípios, verdades eternas, mas apenas afirmações prováveis, susceptíveis de discussão e de adequação às realidades”[3].
Como tal, e a título de exemplo das acepções diversas e da falta de consenso acerca dos conceitos em análise, para Ernest Renan “A existência de uma nação é, perdoem-me esta metáfora, um plebiscito de todos os dias, como que a existência de um indivíduo, é uma afirmação perpétua de vida”, enquanto para Théodore Delos “A nação surge quando se dá a passagem da comunidade de consciência à consciência de se formar uma comunidade”[4]. Mas desta comunidade, por mais pequena que seja, segundo Benedict Anderson, não conseguiremos conhecer todos os membros, embora no nosso imaginário vivamos em comunhão[5]. Desta forma, a nação seria apenas uma comunidade imaginada, em que o sentimento de pertença e os laços que nos unem, não são mais do que fabricações construídas por processos de socialização e formação da personalidade.
A nação, poderia assim ser colocada como produto de um efeito Torre de Babel, se pensarmos que genericamente a uma nação corresponde uma cultura, língua, história e eventualmente, embora não necessariamente, uma etnia – o que não é verdadeiro, como veremos, mas ajuda a perceber o ponto de vista do efeito Torre de Babel, ou seja, a divisão dos povos em diversas línguas e raças, para não se entenderem. E se uma nação, de acordo com Joseph von Görres, é “tudo o que é estrangeiro”, se nos definimos ou somos definidos como nação por oposição ao que não somos, torna-se evidente o efeito Torre de Babel produzido como resposta ao projecto Iluminista e à Kantiana ideia de comunidade universal. Não deixa de ser irónico que, procurando o Iluminismo, por via da Razão, combater a Religião, a nação se tenha tornado a laicização desta última, por via de um efeito Torre de Babel, pelo menos na Europa continental, servindo como pressuposto do moderno Estado-nação. Isto é, quando no final do século XVIII e início do século XIX, Napoleão Bonaparte pretendeu construir um novo Império na Europa, talvez não tivesse a percepção que viria a provocar uma transformação nas relações internacionais, em que a ideia de nação criaria as mais profundas divisões entre povos que provavelmente nunca antes tiveram consciência nacional, apesar de já se encontrarem enquadrados politicamente por um Estado.
Tendo ganho relevo a partir da Revolução Francesa, a ideia de nação tornou-se em larga escala um substituto dos valores de comunhão e comunidade da Religião, passando a ser o foco de tensão principal entre os povos, originando acepções colectivistas derivadas do nacionalismo (o racismo, por exemplo), que inspiraram movimentos totalitários e autoritários, como o fascismo, o nazismo ou o comunismo. Provavelmente, em toda a História da Humanidade, nenhuma outra ideia esteve na origem de tão devastadora destruição, ao criar um sentimento de fraternidade que, de acordo com Benedict Anderson, tornou possível “over the past two centuries, for so many millions of people, not so much to kill, as willingly to die for such limited imaginings”
Mas o que é, afinal, a nação e o nacionalismo? Etimologicamente, nação vem do latim natio, que significa nascimento, raça, espécie, tipo, tribo[7], pelo que, genericamente, quando surgiu no século XVIII, “Nation meant, very roughly, what we sometimes mean by a people, when we are thinking of them as distinct from others, particularly in terms of birth or descent. It was thus applied most easily to strangers and, for this and other reasons, was readily used to refer to the Jewish people”[8].
O elemento determinante na origem do conceito foi, como já referimos, a Revolução Francesa, que substituindo um rei absoluto por um povo absoluto, procurou manter a soberania através do conceito de nação, que, de acordo com José Adelino Maltez, “sendo invocado como elemento de contrapoder, no sentido de sociedade natural contra o Estado, logo se foi transfigurando ora em povo revolucionário, ora em corpo político”[9]. A este se apôs o entendimento germânico, que aproveitou o facto de ter uma nação dispersa por diversos Estados e territórios para gerar um “conceito de nação de povo orgânico, procurando justificar a passagem de uma Kulturnation para uma Staatsnation”[10].
Estes dois entendimentos correspondem, grosso modo, à distinção entre nação entendida de forma subjectiva e de forma objectiva. A concepção objectiva é tributária de diversos autores alemães, franceses e britânicos, não apenas da concepção racial germânica, como sejam Gobineau, Otto Amon, Vacher de Lapouge, Augustin Thierry e H. Stewart Chamberlain. A componente germânica não deixa de ganhar particular relevo, definindo-se nação “por um conjunto de características objectivas, exteriores e hereditárias que se impõem aos indivíduos”, nomeadamente, “a raça ou etnia, a língua, depois o território, os costumes e a religião”, que se constituem como critérios definidores de uma nação, “facto que alheia o nível de consciencialização e qualquer atitude voluntária por parte das populações em questão”. Conclui António de Sousa Lara que, desta forma, “a nação é algo que acontece às pessoas. A pertença ou não pertença a dada nação, pode assim verificar-se, mas não se pode discutir”[11].
Por outro lado, a concepção subjectiva, tem como grande precursor o já referido Ernest Renan, autor que desde logo aponta factos que obstam à concretização da nação assente em noções de raça, território, língua ou religião. Nem a Alemanha escapa à mistura de sangue, até porque a história humana difere da zoologia; os Estados Unidos e a Inglaterra, a América espanhola e Espanha, Portugal e o Brasil, são apenas exemplos de diferentes nações que falam a mesma língua, ao passo que a nação suíça alberga várias línguas; a religião tornou-se, em grande parte, um assunto do foro individual, em que cada um crê e pratica o que quer; e, por último, em relação ao território, acreditar que os limites de uma nação advêm da geografia, é apenas uma arbitrária justificação para a violência[12]. Definindo-a primeiramente de forma negativa, i.e., em relação ao que não é, Renan conceptualiza positivamente a nação como “uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que, a bem dizer, são apenas uma, este princípio espiritual. Uma está no passado, outra no presente. Uma é a posse em comum de um rico legado de recordações; a outra é o consentimento actual de, o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que se recebeu indivisa. O homem não se improvisa. A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo passado de esforços, sacrifício e dedicação”[13]. A este respeito, diz-nos António de Sousa Lara que a nação entendida de forma subjectiva é “uma atitude quase contratual do indivíduo que aceita ou recusa pertencer a dada experiência histórica com todas as consequências que essa atitude possa envolver no presente e no futuro, quer para ele, quer para a experiência em questão. A charneira da definição está, assim, situada ao nível da vontade e dos sentimentos íntimos dos indivíduos”[14].
É um erro tentar que uma das acepções predomine sobre a outra. Na realidade, cada nação forma-se de acordo com uma narrativa histórica única e irrepetível, em que estão presentes componentes de ambas as correntes, complementando-se e não excluindo-se, embora o grau de influência de cada uma varie de caso para caso. Assim, “a Suíça e o Brasil são exemplos da predominância do vector subjectivista, enquanto para as grandes tribos negro-africanas e para a Nação judaica e para a árabe, por exemplo, tenha sido predominante o vector objectivista[15].
No que concerne ao nacionalismo, importa realçar que o vocábulo e adjectivação de nacionalista, surge pejorativamente como qualificação dos aristocratas franceses em relação e reacção aos revolucionários jacobinos, e foi o “Abade Augustin Barruel que, numas Mémoires pour Servir à l’Histoire du Jacobinisme, em 1797, pela primeira vez, utilizou o ismo: o nacionalismo ocupou o lugar do amor geral (…) Foi assim permitido desprezar os estrangeiros, enganá-los e ofendê-los. Esta virtude foi chamada patriotismo”. Efectivamente, partindo dos ensinamentos de Rousseau, confundem-se os conceitos de nação com a vontade e o interesse geral, como narrativa justificativa do ódio aos étrangers à la nation - como foram qualificados os membros da nobreza e do clero, cerca de meio milhão de pessoas -, ao ponto de um conhecido autor e teorizador sobre a democracia totalitária, Jacob Leib Talmon, ter assinalado que “a partir do jacobinismo, o conceito de nação restringe-se naturalmente àqueles que se identificam com a vontade e o interesse geral: os outros não pertencem efectivamente à nação: são alienígenas”[16]. Também para Eric Hobsbawm, o nacionalismo, “by definition excludes from its purview all who do not belong to its own nation, i.e., the vast majority of human race”[17].
Não deixa de ser irónico que tendo o conceito de nação surgido à esquerda, com os jacobinos, tornando-se a nação uma categoria meramente utilitária, inventada por activistas políticos para alcançar determinados objectivos políticos, se venha a verificar também uma difusão do conceito à direita, através da “ideologia do Estado burocrático e centralizado”[18].
É assim que, a partir do século XIX, se geram duas perspectivas de nação, que inicialmente contradizendo-se, acabaram por originar a mesma “tirania racional e o consequente terrorismo de Estado”[19]. Como assinala José Adelino Maltez, “O nacionalismo francês, de matriz jacobina, republicanista e democratista, gerou um novo iluminismo cidadanista que, em nome do Estado, destruiu os direitos naturais e originários. Deste modo, eis como um cidadanismo massificado acabou por sufocar o libertacionismo individualista, quando transformou o indivíduo, portador de direitos naturais e originais, num cidadão dotado de direitos civis concedidos pelo Estado. Por se lado, o objectivismo, que teve como matriz o culturalismo germânico, apontou para uma nação linguística e étnica, tendo como consequência, o nacionalismo zoológico do racismo hitleriano. O primeiro, gerou a centralização política, administrativa e cultural, promovida pela burocracia, pelo exército de conscrição e pela escola pública obrigatória, com os seus livros únicos. O segundo levou às teorias do espaço vital, a teoria dos grandes espaços com Estado-director, com as anexações e as conquistas”[20].
Embora tenha origem num processo revolucionário que se pretendeu racionalista, é com a ascensão da corrente literária do romantismo que, ao longo do século XIX, o nacionalismo se torna uma “explosão sentimental, contrariando deste modo, o classicismo, considerado por Camus como o domínio sobre as paixões, mesmo as paixões colectivas, bem como a confiança nas palavras, utilizadas com prudência”[21].
Importa, no entanto, destrinçar uma certa confusão entre nacionalismo e patriotismo. Paul Gilbert realça desde logo a concepção de Harold Nicholson, de que o patriotismo inglês não é nacionalista, já que "English pride is not the complacency and self-satisfaction about the countrv that fosters them”[22]. Embora seja frequente a sugestão de que o nacionalismo é um tipo de sentimento de lealdade à nação, pode tão facilmente ser equacionado em conjunto com o patriotismo como em contraste com este. Mas, na realidade, o nacionalismo não é um sentimento, ao contrário do patriotismo. O nacionalismo poderá, quanto muito, originar sentimentos patrióticos. O patriotismo, por seu lado, não necessita do nacionalismo para ser criado, já que é o amor por um país, seja ele considerado em termos nacionalistas ou não. Como assinala Gilbert, “nationalism (…) involves, among other things, a belief about the proper object of patriotism – namely, one’s nation. Putting this belief together with someone’s belief as to what his nation is will naturally lead him to patriotism. It may be natural, therefore, to confuse the sentiment of patriotism to which nationalism gives rise with the belief that it consists in, but such a view would be mistaken. And similarly mistaken would be the view that nationalism is a sentiment of the same order as patriotism, but to be contrasted with it because it is the wrong sort of feeling or the right sort of feeling directed at the wrong sort of object”[23].
Acresce que, estando a nação ligada à concepção moderna de Estado, não tardou muito que, a partir de um romantismo exacerbado e sentimental se passasse ao juridicismo do princípio das nacionalidades, “segundo o qual cada nação tem direito a constituir um Estado soberano”, dando corpo à proclamação de Jospeh Delos de que “a nação personaliza-se estatizando-se”[24]. Vai-se assistir a um conflito entre duas entidades distintas, Estado e nação, com nações repartidas por diferentes Estados a buscarem a unificação, e outras a buscarem a independentização face a Estados de que já faziam parte. Tendo-se gerado diversos modelos de nacionalismo (supranacionalismo, colonialismo, separatismo, regionalismo, anticolonialismo e autodeterminação), não deixa de se verificar na realidade que continua a existir uma dissonância entre Estado e nação, persistindo um paradoxo constituído por “separatismos centrífugos e unificações centrípetas: porque há povos repartidos por vários Estados (veja-se o caso dos curdos); porque há povos que procuram constituir-se em Estados (v.g. o caso da nação palestiniana); porque há povos que pretendem reivindicar o estatuto de minoria nacional institucionalizada dentro de um determinado Estado (v.g. os catalães); porque há Estados que incluem vários povos e nações (v.g. o Estado espanhol); porque há Estados que procuram construir nações (v.g. o caso de grande parte dos Estados afro-asiáticos, com fronteiras traçadas na era colonial)”[25].
Por tudo isto, o nacionalismo para além da devastação provocada com a ascensão dos totalitarismos que tentaram colocar utopias perfeccionistas em prática, esquecendo-se que os homens são imperfeitos por natureza, até porque, como afirmava Fernando Pessoa, uma “cousa perfeita deixa sempre suspeitas de não-existência”[26], nos nossos dias, de acordo com José Adelino Maltez, continua a ser a principal origem das tensões conflituais: “O conflito permanece (…) com inúmeros nacionalismos que em nome de nações pretendem alterar a configuração dos Estados existentes pela desintegração, unificação, expansionismo ou integração”[27].
Muito fica por dizer, especialmente se consideramos, como assinalámos no início, a abundante bibliografia e a falta de consenso que está na base dos mais diversos entendimentos deste que é um dos fenómenos mais prementes da Modernidade. Por isso, em jeito de conclusão, importa realçar que o “conceito de nação varia conforme o tempo, o espaço e a unidade política que o pretende invocar”, sendo cada nacionalismo “marcado pelos mais variados paradigmas, conforme as circunstâncias”. Mas, todos eles “tendem para o futuro e todos tentam acreditar numa idade de ouro passada, procurando restaurar uns quaisquer anos de glória que teriam, outrora, acontecido”. No fundo, o nacionalismo “tanto pode invocar o passado, o regresso às origens com o respectivo culto pela tradição, como provocar um construtivismo progressista e reformador. Tanto pode iluminar conservadores como revolucionários; tanto pode ser liberal como autoritarista; tanto pode pugnar pelo centralismo como pela descentralização. Os fins da unidade nacional justificam, com efeito, todos os meios e instrumentos ideológicos, pelo que, neste sentido, o romantismo nacionalista também é, paradoxalmente, maquiavélico”[28].
Porém, se o nacionalismo inspirou praticamente todas as transformações políticas desde o século XIX, tendo sido instrumentalizado para os mais diversos fins, já “o conceito de nação situa-se, com efeito, na zona de fronteira entre a história e a poesia”[29], havendo “tantos conceitos de nação quantos os sonhos desses diversos povos nacionais”[30]. “Cada nação é sempre um grupo humano mais a sua circunstância, que tanto encara mitologicamente o respectivo nascimento e crescimento, como visiona poeticamente o seu futuro. Logo, torna-se absolutamente impossível capturar racionalmente um conceito geral e abstracto de nação”, como é apanágio das diversas tentativas de ensaios jurídicos, politológicos e filosóficos que “tentam aprisionar o conceito”[31].
Nada melhor do que finalizar com o reconhecimento da nossa ignorância, como ensinavam Hayek e Popper, reconhecendo os limites da razão e relembrando a observação de Harold Laski de que “o nacionalismo é uma concepção subjectiva que escapa a qualquer definição concebida em termos científicos”[32].
Referências Bibliográficas
Bosworth, R. J. B., Nationalism, Harlow,Pearson Education Limited, 2007.
Gilbert, Paul, The Philosophy of Nationalism, Boulder, Westview Press, 1998.
Gray, John, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008.
Lara, António de Sousa, Ciência Política – Estudo da Ordem e da Subversão, Lisboa, ISCSP, 2005.
Maltez, José Adelino, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996.
Maltez, José Adelino, “Nação”. Disponível em http://maltez.info/aaanetnovabiografia/Conceitos/Nacao.htm. Consultado em 21/11/09.
Notas
[1] Cfr. John Gray, A Morte da Utopia, Lisboa, Guerra e Paz, 2008, p. 124.
[2] Cfr. R. J. B. Bosworth, Nationalism, Harlow,Pearson Education Limited, 2007, p. 1.
[3] Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 24.
[4] Cfr. José Adelino Maltez, “Nação”. Disponível em http://maltez.info/aaanetnovabiografia/Conceitos/Nacao.htm. Consultado em 21/11/09.
[5] Cfr. R. J. B. Bosworth, ob. cit., p. 5.
[6] Cfr. Idem, ibidem, p. 5.
[7] Cfr. António de Sousa Lara, Ciência Política – Estudo da Ordem e da Subversão, Lisboa, ISCSP, 2005, p. 239.
[8] Cfr. Paul Gilbert, The Philosophy of Nationalism, Boulder, Westview Press, 1998, p. 8.
[9] Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, ob cit., p. 392.
[10] Cfr. Idem, ibidem, p. 392.
[11] Cfr. António de Sousa Lara, ob. cit., pp. 240-241.
[12] Cfr. Idem, ibidem, pp. 242-243.
[13] Cfr. Idem, ibidem, pp. 243-244.
[14] Cfr. Idem, ibidem, p. 244.
[15] Cfr. Idem, ibidem, p. 246.
[16] Cfr. José Adelino Maltez, ob cit., p. 396.
[17] Cfr. R. J. B. Bosworth, ob. cit., p. 33.
[18] Cfr. José Adelino Maltez, ob cit., p. 397.
[19] Cfr. Idem, ibidem, p. 438.
[20] Cfr. Idem, ibidem, p. 438.
[21] Cfr. Idem, ibidem, pp. 392-393.
[22] Cfr. Paul Gilbert, ob. cit., p. 4.
[23] Cfr. Idem, ibidem, ob. cit., p. 5.
[24] Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 399.
[25] Cfr. Idem, ibidem, p. 399.
[26] Cfr. Idem, ibidem, p. 24.
[27] Cfr. Idem, ibidem, pp. 399-400.
[28] Cfr. Idem, ibidem, p. 441.
[29] Cfr. Idem, ibidem, p. 441.
[30] Cfr. Idem, ibidem, p. 443.
[31] Cfr. Idem, ibidem, p. 443.
[32] Cfr. Idem, ibidem, p. 443.