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O Partido Socialista vai pagar um preço ainda mais elevado pela sua delinquência ética - os amigos não são para todas as ocasiões. Parece que para os lados do Rato a amizade tem outro significado. Já ouvimos vezes sem conta aquelas balelas sobre a separação de águas, a destrinça entre a relação pessoal, de amizade e o que ocorre na vida política, pública. No entanto, as coisas não são assim. Um amigo meu que tenha prevaricado ou cometido uma ilegalidade continuará a merecer o meu respeito se for lesto a admitir a sua culpa e a procurar corrigir os desvios praticados. Já sei o que vão dizer alguns correlegionários: presunção de inocência, inocente até prova em contrário - mais treta menos treta. Das duas uma; ou os amigos aceitam a decadência ética e moral do companheiro (e equiparam-se ao mesmo, são iguais), ou definem claramente no seu espírito uma linha de demarcação. Há ainda uma extensa lista de amigos que irá fazer-se à estrada em direcção a Évora nesta época de Natal das prisões. Nos dias que correm parece haver uma grande falta de espinhas, de colunas verticais - homens capazes de escolher o caminho da correcção, do respeito por valores maiores. Quando a bola começar a rolar com maior intensidade, quero ver como vão descalçar a bota. Afinal não era amigo. Era um mero conhecido. Desculpe, conheço-o de algum lado?
Cheio de graça e força, Estêvão fazia extraordinários milagres e prodígios entre o povo. Ora alguns membros da sinagoga chmada dos Libertos, dos cireneus, dos alexandrinos e dos da Cilícia e da Ásia vieram para discutir com Estêvão: mas era-lhes impossível resistir à sabedoria e ao Espírito com que ele falava (...) depois à uma, atiraram-se a ele e, arrastando-o para fora da cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram as sua capas aos pés de um jovem chamado Saulo. E, enquanto o apedrejavam, Estêvão orava, dizendo: "Senhor, Jesus, recebe o meu espírito". Depois, posto de joelhos, bradou com voz forte:" Senhor, não lhes imputes este pecado". Dito isto, adormeceu."
Actos dos Apóstolos, 6, 8-51
A história de Estêvão, o apóstolo helenista martirizado pela sanha farisaica do judaísmo colonizado, tem vários ingredientes que, até certo ponto, assemelham o seu percurso biográfico ao de Jesus Cristo: o mesmo apostolado radical e descomprometido, a Graça divina esparramada na vocalização do exemplo evangélico, o martírio cristãmente arrostado, encarando a Morte como o passamento para a casa de Deus. Estêvão foi, com temeridade e sentido de Justiça, um dos precursores do movimento religioso que doravante cresceria em vigor e dimensão, arrastando o Império Romano na sua vaga ouriçada. A narrativa de Estêvão é, em grande medida, uma metáfora da incompreensão humana. Da incompreensão que tolhe e desquebra, da razão que falha e obscurece. O Homem, o animal racional por excelência, pouco dado amiúde às virtudes da perfeição e da ponderação, é o paradigma mais cristalino da derrota. Talvez não tenhamos sido feitos para a derrota, como disse o derrotado Hemingway, talvez a perda e o temor ao desastre não sejam mais do que um tropo do triunfo iminente, talvez nós sejamos um ameno, e escondido, princípio da Morte, talvez e muitos talvez, porém, a vida, na sua imensidão de veredas e caminhos díspares, dispõe o alvedrio do Homem no seu justo lugar. Nós escolhemos o nosso caminho, mas, nada nem ninguém, é capaz de recolher-nos do Mal. Deus fez-nos com os princípios da Vida e do Bem conglobante, mas o Homem é livre de escolher o seu projecto vital. Fá-lo, e no fundo, é derrotado. Derrotado na dureza encrespada dos desígnios gorados, na perda dos referentes orientadores de todo um percurso, no esgotamento do amor e da amizade. Estêvão, o pioneiro da martirização infligida aos esperançosos, ensinou-nos que, por mais que a derrota imponha o seu véu sobre nós, o livre alvedrio, a escolha conscienciosa e o amor descomprometido, são mais do que uma opção, são uma realidade que cabe-nos a nós agarrar e segurar. Podemos perder a partida, mas não a alfombra de dignidade que ainda nos resta. E essa dignidade é o verbo do amor e da amizade. Puras ilusões ou não, e muitas vezes são-no, com incompreensões e isolamentos inelutáveis, o amor e a amizade são a única ilusão que nos resta, porque, no fundo, a vida é, como dizia Lucas, "mais que o alimento e o corpo mais que o vestuário" (Lucas, 12, 23-24).
Uma das regras de ouro da política é saber que, como dizia o inesquecível Orson Welles, nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. A amizade e o amor podem colmatar esse sentimento, mas na política a amizade é uma mera ilusão. Às vezes nem isso. Ambição e solidão são a nossa sorte.
Montaigne, Da Amizade:
«Há, para lá de todo o meu discernimento e de tudo o que eu possa dizer esmiuçadamente, não sei que força inexplicável fixada pelo destino a servir de mediadora desta união. Procurávamo-nos antes de nos termos encontrado, por causa dos relatos que ouvíamos um acerca do outro, os quais nos abalavam emocionalmente mais que o que seria razoável esperar de relatos que se ouvem, e, creio-o, por causa de algum decreto do Céu: abraçávamo-nos pelos nossos nomes. E, no primeiro encontro, que ocorreu casualmente numa grande e muito concorrida festa da cidade, sentimo-nos tão cativados um pelo outro que desde então nunca nada passou a ser tão próximo de cada um de nós como o outro.»
dessas...
aos meus caros colegas de blogue, para daqui agradecer ao Miguel a visão dessas flores do Sião...