Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Sem excepções, e diariamente, atravessar uma passadeira na cidade de Lisboa é um martírio. O total desrespeito pelos peões diz muito sobre o modo como o cidadão trata o seu concidadão. E pouco importa que as posições sejam revezadas - o mesmíssimo peão, que há instantes quase foi atropelado na passadeira, será o condutor seguinte a colocar em perigo a vida de outrém. Este estado de alma nacional tem muito a ver com as causas da crise, do descalabro. Tem a ver com a ideia da obtenção de vantagens sobre o semelhante. Tem a ver com atribuir maior importância à vida de uns em detrimento de outros. Tem a ver com a distorção do conceito de democracia. Tem a ver com a ditadura e a liberdade que residem no espírito de cada um. Tem a ver com a pressa de chegar a parte alguma, a um destino que pouca diferença faz. Animais. Zebra - superior no seu estado selvagem.
Cada vez que me faço aos passeios da bela cidade de Lisboa tenho medo de atropelar os carros estacionados sobre a calçada. Realmente é um perigo. A cada esquina podemos ferir com gravidade uma viatura. Ainda há dias cruzei-me com uma carrinha que havia sido abalroada por um carrinho de bebé. O automóvel ficou ferido na vista. De certeza que precisará de um oftalmologista. O olho esquerdo, junto ao queixo do Peugeot, ficou deficiente. Pela redacção desta peça jornalística luminosa, até parece que a questão dos atropelos tem mais a ver com o comportamento dos peões na estrada do que os condutores. O secretário de Estado afirma: "Quando verificamos que há 14 atropelamentos por dia em Portugal, percebemos que temos que dar a atenção a esta matéria, aos comportamentos que os peões adoptam nas estradas e aos comportamentos dos condutores em relação aos peões". Ou seja, segundo o responsável pela pasta, anda tudo trocado, incluindo o conceito de trânsito e circulação nas estradas - os peões andam na estrada? Não sei se andam. Só sei que cada vez que me ponho ao volante assisto à loucura nacional em forma de aceleras em total desrespeito pelo código de estrada e das normas de comportamento de uma sociedade em movimento. O salve-se quem puder reside na estrada. Os portugueses andam sempre a acelerar para o próximo semáforo fechado. Os condutores nacionais têm tanta pressa de chegar ao trabalho, mas não sei se têm mais vontade de se pôr a caminho, de largar o serviço se ainda tiverem a sorte de ter carro e emprego. Também não sei se trabalham rapidamente e mal nos empregos. Também não me interessa. Não é disso que aqui falo. Cada vez que não saio de carro (na maior parte dos casos) tenho um medo que me arrepio de utilizar uma passadeira. Não interessa quem vem ao volante do carro em leasing, se uma jovem mãe com o recém-nascido no lugar do morto, ou um taxista a quem deveriam trucidar a carta de condução - o perigo é constante, o inimigo é público. Não interessa qual a faixa de rodagem em questão - o comportamento é idêntico. Os peões também são uns artistas. Querem lá saber se está vermelho ou não, toca a atravessar a rua movimentada. Tudo isto somado ou subtraído, pode não parecer grande coisa, mas reflecte o profundo desprezo pelo valor da vida. Todos os dias vejo cenas com Sennas de terceira categoria a procurar a pole-position, a competir de igual para igual com um outro desgraçado e pergunto porquê? Querem demonstrar o quê? Que o meu pode ser mais barato que o teu, mas é mais rápido? Não sei a resposta para este flagelo. Talvez possamos perguntar a alguém no cemitério mais próximo.