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Sou da geração que leu Alvin Toffler, que assistiu ao advento da Macintosh e que viu nascer a internet. Sou da geração que ainda chegou a enviar telegramas e que achava o FAX uma maravilha tecnológica ímpar. E ainda sou de uma geração que enviava postais e colava o selo com cuspo a partir de um destino de férias. A digitalização do nosso mundo, na maior parte dos casos, não se limitou a limar o presente e a forjar o futuro. Não. As tecnologias de informação foram ao passado exterminar processos arcaicos, físicos. Há inúmeros métodos tradicionais que pura e simplesmente deixaram de existir. A Suécia, considerada a madrinha do modelo de organização social, foi ainda mais longe na senda dessa extravagância modernista e aproxima-se a passos largos da visão utópica - já é quase uma cashless society. As APPs é que estão a dar. As notas monetárias e as moedas já se encontram nesse país nos cuidados intensivos, à beira da morte, em estado comatoso. Os malfeitores deste mundo, as organizações criminosas, apenas tiveram de esperar para ver onde se encontravam as fissuras informáticas dos sistemas de administração de organizações públicas ou entidades empresariais para fazerem provar do seu veneno. Os governos puseram-se a jeito. Os media que dão cobertura à epidemia de Malware e Ransomware, apenas recebem migalhas de informação respeitante aos pagamentos efectuados por administrações públicas a redes criminosas. O ataque cibernético da semana passada denominado Wannacry pôs de joelhos o NHS (National Health Service) do Reino Unido e impediu a realização de sessões de quimioterapia ou intervenções cirúrgicas, mas os media disseram que foi coisa pequena que envolveu pagamentos de apenas duas dezenas de milhar de libras. É este o estado em que nos encontramos. Estas sofisticadas organizações informáticas criminosas têm um plano meticuloso de assalto. Será apenas uma questão de tempo até que as revoluções políticas ocorram por asfixia operacional. Se uma qualquer Autoridade Tributária deste mundo for algemada por processos de Ransomware, a única coisa que têm a fazer é pagar. Se não o fizerem as receitas do Estado ficarão comprometidas. Tudo isto tem a configuração de um Matrix invertido ou de Marxismo revertido a favor de máfias planetárias intensamente capitalistas. Mas foi o que as sociedades quiseram, foi o que a cultura determinou. Embora rebuscado, arrancar as vinhas também contribuiu para este estado de arte de riqueza virtual, de meios de subsistência clean, sem terra debaixo das unhas para não envergonhar a geração seguinte formada na universidade e com diploma avançado em sofisticação. A modernidade que rebentou com a mercearia da Tia Alice e destronou o Alfredo dos biscates é a grande culpada. Corremos todos atrás da grande moda monetária, do Simplex. Mas o mal não reside no progresso. Os perigos residem na eliminação dos costumes monetários de troca directa, de pagamento em espécie, e no valor de geometria variável que nos reduz todos a plástico. Não é só na música que faz falta o sentimento. Em tudo o resto fazem falta doses imensas de bom-senso.
Quantos portugueses emigraram? Não me refiro à vaga dos últimos 3 anos. Quantos portugueses efectivamente emigraram e vivem há décadas lá fora? 5 milhões? 6 milhões? Sei que em New Bedford, nos EUA, há perto de 400.000 portugueses. Mas há mais, muitos mais, espalhados por esse mundo. Não sei se estão a ver onde quero chegar. António Costa, à falta de receitas domésticas, com a torneira do dinheiro fácil do BCE a apertar, o orçamento a dar para o torto, e a economia a estagnar, é óbvio que assine de cruz a nova modalidade que aí vem. Uma coisa são offshores, outra coisa será tributar rendimentos de portugueses no estrangeiro. Não é nada que me espante. Tenho uma opinião esclarecida e cumpridora em relação à matéria. Os norte-americanos, onde quer que se encontrem e trabalhem, são obrigados a declarar rendimentos à Autoridade Tributária dos EUA. Há aqui um filão interessante a explorar pela autoridade tributária portuguesa. Ele é contas de enfermeiros portugueses no Reino Unido. Ele é contas de técnicos informáticos portugueses na Alemanha. Ele é contas de arquitectos portugueses na Bélgica. Enfim, a oferta é grande e diversificada. Vai ser um festival. Quando se refere o controlo das contas no estrangeiro não são apenas aquelas dos portugueses. São as de todos, ou de quase todos, nessa lógica recíproca e multilateral. Queriam a União Europeia? Pois bem. Agora terão a União Tributária, sem ser uma União Fiscal. Agora terão multilateralismo, sem haver uma ideia sequer de um mecanismo comum de segurança social europeu. Agora, como sempre, será oportunismo fiscal. Deitar a mão aos rendimentos gerados por trabalhadores nacionais que se encontram noutras paragens. Pensem nisto. Eu já penso nisto há décadas. Está a acontecer. Já não há para onde fugir. Impostos. Por essa razão assim se chamam. Até os gatos percebem.
André Azevedo Alves, Os abusos do fisco não acontecem por acaso:
O problema em Portugal assume contornos particularmente gravosos e ofensivos dos mais básicos direitos dos cidadãos porque, como oportunamente salientou Nuno Garoupa na mesma discussão, o aperto da malha fiscal não foi acompanhado de quaisquer melhorias estruturais nos mecanismos de recurso e verificação disponíveis para salvaguardar os contribuintes relativamente a erros do fisco. A reforma dos tribunais administrativos e fiscais é uma das muitas que continua por fazer e assiste-se a uma impunidade generalizada relativamente aos erros e abusos praticados pela máquina fiscal do Estado. À excepção de uma pequena minoria com recursos e poder suficientes para defenderem adequadamente os seus interesses, a generalidade dos contribuintes encontra-se assim indefesa perante a ditadura fiscal.
Portugal é um imenso mar de listas VIP. A expressão Very Important Person é apenas uma outra forma de tráfico de influências, corrupção, se quiserem. Em todos os sectores da sociedade portuguesa existe uma lista VIP. Nas artes e letras, na moda Lisboa e arredores, na banca, na academia e porventura na Autoridade Tributária. E o problema que aflige a nação é que a grande maioria dos seus cidadãos deseja fazer parte da guest list. O mérito que está associado ao VIP vai, deste modo, directamente da sarjeta para o esgoto. Em quase todas as instituições que povoam este país, as práticas são ditadas pelo estabelecimento de um aparelho forte - um conjunto de insiders aprovados em sede de troca de favores e privilégios. Os VIPs tornam-se assim associados importantes para os quadros de poder vigentes. E é isto que está em causa na revisão comportamental a que o país está obrigado. Mas encaramos um grande problema. Ser VIP é fashion. É outro modo de dizer ao compatriota que se é melhor, que se tem um contacto privilegiado. É outra maneira de dar ares de estatuto social, de dinheiro, de património. É ainda um modo de dissimular a profunda ignorância que vinca as faces daqueles que não se interessam pela intelectualidade ou pela cultura, cujos pais honrados até nem sabiam ler nem escrever. Esta síndrome de Vipismo contamina o país há décadas, senão séculos. O macróbio de Castelo Branco, encarcerado em Évora, pode, se desejarmos, corporizar a expressão máxima desse mal. É um VIP ao quadrado, bestial.
Temos de admitir que existe uma certa ironia no derradeiro anúncio da Autoridade Tributária (AT). O aparelho fiscal quer dar o exemplo à FMI, e demonstrar que é possível perdoar a dívida para recuperar uma parte daquilo que era considerado totalmente perdido. Ao perdoar a dívida dos contribuintes portugueses ao fisco, os responsáveis pelas finanças nacionais piscam o olho aos credores internacionais. Como se utilizassem linguagem gestual para sugerir um perdão de dívida a Portugal. Talvez a troika e os cobradores do FMI estejam a ver e aprendam como se faz. A derradeira oportunidade fiscal, que funciona como um indulto antecipado (já é Natal?), é uma forma de escapar aos insultos das vítimas da austeridade e à perda total das quantias em causa. A Autoridade Tributária que tem sido o alvo de grande parte da ira colectiva, quer mostrar o seu lado samaritano, o seu espírito Quaker, e alterar a sua péssima imagem. Essencialmente, deseja matar dois coelhos com uma cajadada. Ou seja, recuperar algum do carcanhol e afastar a terrível fama de monstro papão. O problema desta solução, na minha taxativa opinião, é validar a tése do Isaltino - o crime compensa. Aqueles que fugiram ao fisco anos a fio, de um modo sistemático e não por questões de sobrevivência, acabam por ser premiados. E dirão: "estás a ver, afinal safei-me". A administração tributária, cheia de falsas intenções monetárias, cria um dilema moral. Divide o país entre cumpridores e prevaricadores. Valida uma matriz moral duvidosa pouco ou muito católica, conforme a missa. Confessai a sua dívida, que tereis lugar no céu dos pagadores. Quanto àqueles que durante toda a sua vida laboral foram correctos, e pagaram pela sua Segurança Social e a dos outros, que forma de justiça poderá ser concedida? Ou será que por terem sido cidadãos exemplares se encontram além da possibilidade de salvação? A única coisa que parece interessar ao governo é a receita fiscal - sacada a bem ou a mal. Não existe nada de grandiloquente nem de extraordinário neste gesto fiscal. O que está em causa é o crédito junto de certas instituições da União Europeia. Se algumas das metas não forem cumpridas, dinheiro fresco não entrará tão facilmente em Portugal e nas quantidades requeridas. A cada dia que passa, e à medida que o círculo dos compromissos orçamentais aperta, a administração central fará uso de todo o tipo de engodos para apanhar o mexilhão. O problema é que o polvo continua à solta (o de Oeiras? esse é peixe miúdo e já está dentro - queima jornais) como se nada tivesse a ver com os rombos e os assaltos aos cofres do Estado. Falo da rede que não foi lançada para apanhar os grandalhões; as divídas do BPN, do Banco Privado, de Oliveira e Costa e outros que tais. Esses e os demais que integram uma extensa lista de convidados de honra já foram perdoados. Se eu fosse devedor teria algum cuidado com estes cavalos de Tróia. Eu bem sei que a cavalo dado não se olha ao dente, mas essa parece ser a máxima lá para os lados das finanças. O que interessa é entrar. O resto são detalhes de carácter, corredores inúteis - que se lixem os valores que ainda sustentam algumas casas portuguesas, alguns indivíduos honrados.
É difícil escolher o melhor parágrafo da crónica desta semana de Alberto Gonçalves, cuja leitura integral recomendo. Fica este, pois que culmina com o que me parece ser a melhor definição deste governo:
«Os resultados do nosso trabalho já são extorquidos em quantidade suficiente e segundo métodos impossíveis de contornar. É da mais elementar lucidez resistir, dentro do possível, a extorsões adicionais. Não vou ao ponto de, à semelhança de Francisco José Viegas, sugerir que se mande os empregados do fisco "tomar no cú". O Francisco exagera nos brasileirismos: os verbos "levar" ou "apanhar" chegam e sobram para um Governo com aura liberal, hábitos socialistas e processos napolitanos.»
Quem se perde em especulações sobre a alegada constitucionalidade de multar quem não peça factura parece-me não perceber nada de nada do que está em causa. Infelizmente, não só nem tudo o que é legal é legítimo ou justo, como o direito já não está ao serviço da justiça. Apetece-me relembrar a frase de abertura de Teologia Política de Carl Schmitt, «Soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção», recordar, de acordo com Walter Benjamin, que a excepção tornou-se em regra, e ainda citar Giorgio Agamben, que nos diz que «o estado de excepção tende cada vez mais a tornar-se o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esta transformação de uma medida provisória e excepcional em técnica de governo ameaça transformar radicalmente - e já, de facto, transformou sensivelmente - a estrutura e o sentido da distinção tradicional das formas de constituição. O estado de excepção apresenta-se, pois, nesta perspectiva, como um limiar de indeterminação entre democracia e absolutismo.» No fundo, é como assinala José Adelino Maltez: «Há sinais de regresso ao absolutismo quando aquele que faz a lei decide não cumprir o que a mesma determina e trata de emitir ainda mais leis para que nenhuma se cumpra, por causa da elefantíase...»
A notícia do dia é sem dúvida a de que o Fisco tem instaurado processos de contra-ordenação a cidadãos que não exijam factura, em acções que segundo a Autoridade Tributária "podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efectivamente as facturas pelas compras realizadas". Há quem já se tenha pronunciado quanto à potencial inconstitucionalidade destas multas. Permitam-me ser muito directo: não quero saber da potencial inconstitucionalidade para nada. Todos os regimes totalitários são legais. Nem tudo o que é legal é legítimo ou justo E neste caso o Leviatã extravasou todos os limites. Já chega. Está na hora de nos unirmos contra este estado confiscatório, independentemente de ideologias, religiões ou outras divisões. Por isso criei um grupo no Facebook, aberto, ao qual todas as pessoas se podem juntar (inclusive os senhores das polícias e dos serviços de informações que me vigiam e a muitos dos meus amigos e conhecidos, estejam à vontade) com dois propósitos muito simples: i) partilha de informações quanto à localização das acções da Autoridade Tributária, para que outros as possam em primeiro lugar evitar e ii) permitir que ao se saber de uma destas operações, rapidamente várias pessoas se possam mobilizar para se deslocarem até à mesma, para que muito simplesmente, pela força dos números, possamos afrontar os agentes do Leviatã. Podem aderir aqui.
Já todos receberam mais um delirante e-mail do Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, certo? O meu parágrafo favorito é este:
«Não se esqueça de que ao exigir sempre fatura está a prestar um importante serviço a Portugal e a cumprir um dos mais importantes deveres de cidadania. O seu papel é decisivo no combate à evasão fiscal. Se o cumprir, a AT faz o resto. Não colabore com a evasão, a fraude, a economia paralela e a corrupção do sistema.»
Entretanto não sei o que é mais irritante, se o governo ter decretado a obrigatoriedade de emissão de factura em toda e qualquer transacção, se a quantidade de vezes que agora ouvimos num só dia "quer factura?"
A Autoridade Tributária descobriu finalmente o remédio para todos os males do país: exigir "fatura" (cobrar impostos é com eles, escrever português é que nem por isso). É o que basta. Não acreditam? Então verifiquem lá se não receberam este mesmo e-mail cujos delírios me escuso a comentar:
Exmo. Senhor
NIF
NOME
Assunto: Incentivo à exigência de fatura
A partir de 1 de janeiro de 2013 será obrigatória a emissão de fatura por todas as vendas de bens e serviços mesmo quando os particulares não a exijam.