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Parece que há quem não só nunca tenha lido Hayek como desconheça as contradições deste e o veja como um Papa infalível, pareça não ter lido grande coisa para além de meia dúzia de economistas e pseudo-filósofos e, pior, seja tolhido pelo dogmatismo e fanatismo redutores que fazem com que se classifique como socialismo qualquer tipo de políticas sociais, a safety net a que o próprio Hayek se refere e da qual usufruiu. O Estado Social é uma criação anti-socialista, originada por quem realisticamente percebia o que é o rastilho das revoluções e quem é que tende a ser tolhido pelo comunismo, mas para perceber isto é preciso realmente ler um bocadinho mais que meia dúzia de coisas. Talvez um dia certos liberais, especialmente os desprovidos de subtileza e intelecto para compreender o poder, percebam como é ideológica e politicamente suicida este tipo de dogmatismo.
P.S.: Aqui fica o essencial sobre Bismarck.
Viriato Soromenho Marques, "O Estado social da Europa de Merkel":
«Até o chanceler Bismarck, conservador e antissocialista, teria vergonha desta "Europa alemã", baseada na criação da discórdia e da inveja entre os europeus, com base na desinformação, promovendo o aumento da pobreza e a concentração da riqueza dentro de cada país da Zona Euro. Bismarck, muito pelo contrário, foi o pioneiro do Estado social moderno com as suas leis de 1883 (seguros de saúde), de 1884 (seguro de acidentes de trabalho) e de 1889 (seguro de velhice e invalidez). Schröder iniciou o desmantelamento dessa herança de uma política de responsabilidade social do Estado, iniciada por Bismarck. Merkel, por seu turno, pretende agora levar essa política ativa de desigualdade social ao maior número possível de países europeus. Os europeus não se devem deixar enganar. A ameaça para a paz e a prosperidade europeias não está no lado de lá das fronteiras. O perigo vem de dentro. Das elites incompetentes e egoístas - e dos burocratas que as servem cegamente, como o ministro português Gaspar - que a degradação das nossas democracias representativas segregou como uma perigosa doença. Os que querem destruir a herança de Bismarck arriscam-se a despertar, na Europa inteira, o fantasma de um marxismo de legítima defesa.»
A narrativa política europeia encontra no seu cerne, desde há décadas, o propalado Estado Social. As raízes deste datam de um dos grandes teóricos políticos da era vitoriana, Jeremy Bentham, pai do utilitarismo. Embora este fosse um defensor do laissez-faire e de um estado pouco intervencionista, o seu princípio utilitarista da “felicidade do maior número” inspirou muitos dos políticos britânicos do século XIX, contribuindo directamente para a justificação de uma crescente intervenção do estado na sociedade, acompanhada por uma expansão das suas competências administrativas.
No centro da Europa, Otto von Bismarck, feroz opositor do socialismo, aplicou programas de apoio social na Prússia e na Saxónia, e após a unificação alemã (em 1871) criou os alicerces do moderno conceito de Estado Social ao introduzir um sistema de segurança social com pensões de invalidez, doença e reforma e acesso a cuidados médicos providenciados pelo estado. O Chanceler alemão pretendia garantir a coesão social e impedir que eventuais descontentes pudessem ser ideologicamente tolhidos pelo socialismo de cariz mais radical, mas o mundo não se livrou de ver aplicados regimes políticos assentes no socialismo – fascismo, nazismo e comunismo – aquilo a que Friedrich A. Hayek chamou de “hot socialism”, por oposição ao “cold socialism” do Estado Social.
Após a II Guerra Mundial e no rescaldo da Grande Depressão, o Relatório Beveridge de 1942 propôs um amplo modelo de Estado Social que se tornou politicamente consensual, sendo perspectivado como uma terceira via entre o comunismo e o capitalismo, inspirando, portanto, a social-democracia. O princípio chave deste modelo é o conceito de justiça social que permitiu, por um lado, novas reivindicações por parte dos cidadãos em relação ao governo, mas por outro, permitiu também a este alargar discricionariamente os seus poderes em nome da justiça social.
Que o conceito de justiça social seja desprovido de sentido e se fundamente em pouco mais que a redistribuição de rendimentos para atingir propósitos políticos, é algo que não impediu que este se tornasse o mais eficaz argumento na discussão política contemporânea, servindo os propósitos de justificação de qualquer medida e rapidamente enfraquecendo a eventual oposição a esta. Acontece que, conforme Hayek assinala, ao contrário do socialismo original, o conceito de Estado Social não tem um significado preciso, e prova disto mesmo são os modelos diversificados aplicados em vários estados – assim como o debate de surdos ferido de morte pela demagogia, para o qual, em Portugal, o Partido Socialista liderado por José Sócrates contribuiu de forma determinante.
Certo é que, também de acordo com Hayek, nas sociedades industriais contemporâneas, não há razão, dados os níveis de riqueza alcançados, para não garantir um mínimo de segurança económica a todos os cidadãos, sem que tal coloque em causa a liberdade individual, até porque ao estado compete assegurar a manutenção da regras gerais de conduta e funcionamento da ordem alargada da sociedade, deixando aos indivíduos uma larga esfera de liberdade individual, mas também providenciar bens e serviços que o mercado não produz ou não pode produzir adequadamente. O problema surge quando o estado não se confina a si próprio e, legitimando e disfarçando as suas intenções sob o manto da justiça social, acaba por utilizar os seus poderes coercivos (por exemplo, a capacidade de cobrar impostos), para atingir propósitos políticos não consensuais na sociedade, reclamando ainda direitos sobre determinadas áreas da vida desta, e criando uma miríade de instituições que actuem nestas áreas. Este alargar das competências do governo fundado na distribuição de recursos e rendimentos, para além de distorcer o funcionamento da economia de mercado, levou ao enorme crescimento de um aparelho para-governamental que consiste em associações comerciais, sindicatos e organizações profissionais que tentam captar favores governamentais em troca do seu apoio político.
Foi desta forma que durante a segunda metade do século XX assistimos a um aumento exponencial de clientelas políticas e dependentes do estado e à captura deste por grupos de interesses organizados, degenerando o modelo do Estado Social em algo que vai muito para lá dos seus alegados propósitos de bem-estar social (saúde, educação, segurança social). Mais grave ainda, os defensores do intervencionismo estatal – sejam comunistas, socialistas ou social-democratas – não compreendem que foi precisamente o Estado Social que acabou por quebrar muitos dos vínculos tradicionais entre os indivíduos, tornando-os mais isolados e mais egoístas (num sentido pejorativo), e deixando-os à mercê de máquinas burocráticas que assumem crescentemente características de organizações ou sociedades de pendor totalitário.
Se queremos manter os propósitos do Estado Social, este necessita de uma refundação urgente que o resgate dos seus efeitos verdadeiramente anti-sociais e lhe dê sustentabilidade financeira. Não é financeira nem moralmente viável continuar a aumentar impostos para sustentar um modelo social degenerado. E o facto de, em Portugal, termos levado o endividamento externo (e toda a dívida estatal significa impostos futuros) a níveis que estão muito para lá do aceitável é mais que suficiente para nos fazer pensar nisto, porquanto está indelevelmente colocado em causa o princípio da solidariedade inter-geracional. Chegamos ao actual estado de coisas com a nossa liberdade cada vez mais reduzida, obrigados à submissão para que nos seja possível sobreviver, enquanto a União Europeia vai navegando à vista nesta crise das dívidas soberanas que arrisca fragmentar ou aprofundar o processo de integração europeia.
Entretanto, considerando o acordo com a Troika FMI/BCE/CE, temos uma apertada margem temporal para operar uma verdadeira reforma estrutural que diminua o peso do estado na economia e na sociedade, o que passa por extinguir milhares de organismos, institutos, fundações e privatizar ou também fechar muitas das empresas do sector empresarial estatal. Nesta matéria, o Orçamento Geral do Estado para 2012 será a prova de fogo do actual governo PSD-CDS. Simultaneamente, precisamos também de pensar o nosso lugar no Mundo. O vector europeísta da nossa política externa está cada vez mais esgotado e esta, que sempre serviu para que procurássemos no exterior recursos para nos desenvolvermos internamente, precisa de se virar para onde estes existem e onde, ainda por cima, os seus detentores nos são histórica e culturalmente próximos. O Atlântico sempre foi o principal vector desta, até 1974. Talvez esteja na altura de recuperar esta orientação para que, como escreveu Fernando Pessoa, possamos cumprir Portugal.
(Artigo originalmente publicado no primeiro número do Lado Direito, jornal da Concelhia de Lisboa da JP, conforme aqui referido.)
No verão de 68, este foi o graffiti incessantemente reproduzido em toda a Checoslováquia
Bismarck era um homem perfeitamente consciente dos perigos que o desequilíbrio de poderes representava para a Europa. Em conformidade, toda a sua política externa tendeu para a manutenção de um status quo, no qual uma Prússia engrandecida, o II Reich, ocupasse uma posição de tal forma determinante, que acabou por se tornar também, num poder colonial. Indo agressivamente contra a opinião de Moltke, do Estado-Maior do exército prussiano e do próprio rei Guilherme I, Bismarck não impôs a Viena uma paz draconiana. Após Koeniggraetz, abria-se a possibilidade dos exércitos prussianos avançarem pela Boémia e tomarem posse das terras alemãs do império dos Habsburgos. Isso teria significado uma guerra europeia, tal como mais tarde sucederia em 1914-18. Bismarck pressentia-o e via no Império Austro-Húngaro, aquela construção que aglomerando povos muito diferenciados, era dirigida por um governo imperial de forte influência germânica, convindo perfeitamente a Berlim.
Desapossar os Habsburgos do seu património ancestral nos Sudetas e na própria Boémia, poderia significar uma imensa vantagem para a Prússia, até porque a região consistia no principal foco industrial do império, ocupando simultâneamente, uma importantíssima posição estratégica no centro geográfico da Europa. No entanto, a manutenção de tão vastos domínios sob um controlo nominalmente neutral, tranquilizava Londres, Paris e São Petersburgo, evitando a sua inimizade declarada. O Chanceler de Ferro dizia que ..."quem tem Praga, domina toda a Europa Central". Não se trata de uma suposição, porque os acontecimentos subsequentes confirmam-na. A dissolução da Áustria-Hungria, significou a criação de um conjunto de Estados sucessores, fatalmente desatriculados de uma economia que tinha sido comum ao império, enquanto para sempre se quebraram aqueles laços de solidariedade internacional que décadas mais tarde, levaram italianos, checos, croatas, eslovenos, húngaros, polacos ou romenos, a marchar para a Grande Guerra, unidos em torno das bandeiras regimentais do exército de Francisco José. De facto, o desaparecimento do império danubiano, para sempre mudou a face da Europa, alçando a Alemanha como o grande poder económico e cultural, preponderante no grande espaço que vai do Reno às margens do Golfo da Finlândia e ao Mar Negro.
A partir de 1919, a profunda crise em que mergulharam as duas grandes potências da Europa Central e do Leste - a Alemanha e a Rússia -, fizeram pender a região para uma ténue e provisória influência francesa, mas a ascensão dos regimes autoritários europeus e o rearmamento alemão da década de trinta, reconduziram Praga à esfera de influência de Berlim. 1945 trouxe o Exército Vermelho ao centro da Europa e aí permaneceu até à derrocada da URSS no início da última década do século XX. Em conformidade, deixaram de ter razão os pactos militares e económicos celebrados a leste e uma vez mais, a Boémia aproximou-se da potência limítrofe, acabando por ingressar na Comunidade Europeia. Desta forma, o render da guarda aconteceu de forma natural e o estado de coisas provavelmente assim permanecerá durante longo tempo.
Os acontecimentos de 1968, consistiram na necessária reacção de Moscovo, a uma clara ameaça de destruição do cordão sanitário criado em benefício da vencedora URSS. Toda a brutalidade se justificava afinal, pela necessidade de manutenção da correlação de forças este-oeste, sem a qual se entrava decisivamente num período de "guerra iminente". Todos os protestos não passaram disso mesmo e o Ocidente acabou por aceitar o facto consumado, enquanto uma parte da esquerda ocidental, voltava a erguer as velhas e ineficazes palavras de ordem da "conspiração imperialista e reaccionária", o complexo do "cerco", as tentativas de "revanchismo fascista", etc. Para os marechais soviéticos, o que verdadeiramente importava, era a manutenção da perigosa cunha que a curva dos Sudetas representa, surgindo como uma ponta de lança pronta a desferir um mortal golpe em direcção ao Reno. Atingi-lo numa semana, eis, em súmula, o cerne da doutrina ofensiva do pacto de Varsóvia. Depois, logo se via o que a evolução dos acontecimentos traria.
Perder a Checoslováquia levava ao automático colapso do sistema criado pela força de ocupação dos vitoriosos de 1944-45, enquanto o habilidosamente tecido equilíbrio do terror, garantia a inactividade ocidental, da NATO, quanto a qualquer tipo de intervenção directa em nome do Pacto de Varsóvia plenamente submetido ao que se conheceu como "Doutrina Bezhnev".
A definitiva liquidação do sovietismo erguido em Estado, implicou o progressivo esmorecer dos confrontos intestinos entre leninistas de todos os matizes, mas o "espírito de Praga", descendente daqueles de 1938 e de 1968, permanece simbólico e atesta a afirmação de Bismarck: ..."quem tem Praga, domina toda a Europa Central". O colapso da Checoslováquia e a sua transformação em dois Estados claramente sob a influência de Berlim, confirma a suposição bismarquiana.
Na verdade, a única nota ainda digna de registo, consistirá nas graves clivagens que o tema ainda provoca nos sectores políticos geralmente muito conservadores e à mercê da ortodoxia doutrinária - protagonizados em Portugal pelo PC e pelo BE - que se reclamam "à esquerda da social-democracia", enquanto esta própria, envergonhada, alterna a profunda crítica dos eventos, com uma certa complacência oportunista, desejosa em agradar potenciais aliados de ocasião.
Em 3 de Julho de 1866, a Prússia saía surpreendentemente vitoriosa da batalha de Koniggraetz (Sadowa) e os seus exércitos deixaram os austro-húngaros à mercê de uma paz draconiana imposta por um triunfante Bismarck. Conhecedor da realidade do equilíbrio de poderes entre as grandes potências, o Chanceler de Ferro contemporizou com os vencidos e conseguiu atrair Viena para um modus vivendi na Europa Central, propiciando aquela que seria anos mais tarde, a Dreikaiserbund. Aprendera a lição de Metternich no Congresso de Viena, quando uma França derrotada e responsável por vinte anos de guerra na Europa, foi tratada com equidade e moderação.
Este curto prólogo explicita de forma sucinta, a abissal diferença entre a qualidade dos homens políticos da velha Europa, com aqueles que hoje regem os destinos de um mundo mais plural e infinitamente mais perigoso. As sucessivas administrações norte-americanas, parecem totalmente obcecadas pelo seu estreito servilismo diante dos grupos de interesses que sustentam o verdadeiro poder da potência global, fazendo tábua rasa das mais elementares regras da diplomacia que antes do mais, deve ter como sólido alicerce, o perfeito conhecimento dos potenciais adversários, das suas forças e fraquezas e dos seus interesses vitais. Nada disto parece interessar de sobremaneira e assim, os erros vão-se fatalmente acumulando, podendo num futuro não muito distante, criar uma situação irresolúvel numa região essencial para a segurança do Ocidente e do qual a Rússia é hoje parte integrante.
Os argumentos hoje esgrimidos pela Secretária de Estado Condoleeza Rice, desmentem escandalosamente todo o articulado ainda há pouco aplicado ao caso do Kosovo, quando a situação apresenta flagrantes similitudes. Isto deixa a descoberto a duplicidade da superpotência nossa aliada, causando embaraços a todos os membros da Aliança Atlântica. O regime de Moscovo vê assim perfeitamente validada toda a sua acção no Cáucaso, podendo até ir mais longe, argumentando com o princípio das nacionalidades, outra panaceia copiosamente aplicada por outro inábil do século passado, o senhor Woodrow Wilson. A história também parece repetir-se, quando um navio americano que se dirigia a um porto georgiano, decide - decerto com instruções superiores -, retroceder e não desembarcar "ajuda humanitária". Enfim, o bom senso parece finalmente prevalecer.
Ao contrário daquilo que se passou naquele famoso e já distante jantar em Ems, já não existe um único Bismarck apto a redigir um Despacho despoletador de uma guerra. E mesmo que por absurdo se encontrasse um grande homem no comando em Washington, simplesmente não podia redigir qualquer Memorando num pedaço de papel. Os tempos são outros e os recursos bélicos impensáveis, pois os efeitos da sua utilização são sobejamente conhecidos e temidos.