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Um antro de animais selvagens

por Fernando Melro dos Santos, em 29.08.13

O que separa um homem apaixonado das camadas que imediatamente se lhe seguem na estratificação da mole humana? Montanhas, talvez; a sensação de magnífica e supina impunidade de, tendo galgado a pulso, com dentes e garras, à força da estupidez natural, o cume envolto na bruma da nesciẽncia poder então, lá aposto, cagar em cima de todos e de cada um dos exemplares que povoam este antro insalubre, o país clinicamente insolúvel.

 

Ou quiçá a música: canções que se revelam e descrevem evoluções tão erráticas como harmoniosas nos canais que conduzem dos olhos à alma, espelhos que Deus, em suprema sabedoria na grande urdidura do Mundo - e porque é que existe algo em vez de nada? coçai a nomenclatura e torcei-vos entre Deus e a axiomática mecanicista, que eu vos direi quando parar - quis dar-nos por ferramentas com as quais interpretar a Natureza, o seu plano e o seu rumo, e as coisas frágeis que vicejam contra a certeza da morte em cada recanto do cosmos.

 

Sucumbido à carícia irrevogável de um amor inevitável, ombreando como um Atlas que ao tempo sacudira dos ombros o lastro das coisas mesquinhas, tal homem observa com a bonomia de um bonzo o andar da paróquia, os chilreios efémeros das acanhadas criaturas cuja duração se mede pelo braço de uma ou duas estações do ano. Não quer saber? Quer, mas é-lhe convivial, demove-o por menos de uma colcheia do rumo que o coração e as mãos lhe mandam traçar por já estar imbuído, entranhado, imolado e perenemente elevado ao rol dos imperecíveis de amor.

 

Carthago Delenda Est, o que importam governos, reinos, divisas e a heráldica do cardume socializado, mesmo daqueles a quem o esclarecimento, voluntário, por ímpeto ulterior, ou até acausal, permite ler os dias com um grau de boçalidade aquém daquele de quem "manda", isto é, de políticos, encostados, profissionais da chularia, putas do Estado, controleiros e apaniguados de controleiros, e a demais cáfila que nunca entreviu nas gotas do sangue que lhes corre para a alma um grito de paixão, uma sucessão de batimentos cardíacos suspensos, o rosto impávido e insondável da criatura amada que de repente, num rasgo camaleónico, se abre de rajada em sorrisos que abarcam a geologia de todos os planetas possíveis?

 

Que mais fazer senão rir, preparar o Outono, e aceitar o mistério que subjaz à feliz partilha de habitar a dois a espuma dos dias?

 

Como vir cá fora, ainda que por instantes, fora desta onda avassaladora de hormonas, ensejos, ousadia e gratidão, onde se vive um mesmo sentir? Para quê recalcitrar na denúncia do crime, quando no adro os criminosos são supranumerários?

 

Porque apesar das trincheiras com que a acção do "colectivo social", desde mesmo que os nossos avós eram tenros petizes, tratou de dilacerar a magia, a esperança, a candura e a simplicidade com que emergimos do ventre materno, audazes no nosso terror de campeões pequeninos, apesar disso há ainda um grão de lucidez, uma chama de fúria. 

 

A música toca. As veias latejam. Embora amantes possam perder-se, o amor permanecerá. Tarda o acerto de contas mas na sua perfeição matemática o universo sabe o que faz. 

 

A nós, aqui, a montanha. 

publicado às 19:12






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